quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O déficit da Previdência Social e a pós-verdade


O ano que passou foi o ano da "pós-verdade". Votações como a de Trump levaram o dicionário Oxford a escolhê-la como a palavra do ano, depois de homenagear novidades como selfie e emoji. No final de 2016, ganhou popularidade uma tese que pode ser a versão brasileira mais perigosa de pós-verdade: a de que não existe déficit na Previdência.
A pós-verdade se refere a situações em que os fatos objetivos perdem a importância e a opinião pública é mais influenciada por emoções e crenças pessoais. Uma característica essencial da pós-verdade é a informação "parecer verdade". Os psicólogos a relacionam ao raciocínio motivado: acreditamos no que queremos acreditar. As redes sociais são férteis para as pós-verdades, como as de Trump. "There's no deficit da Previdência", ele poderia bradar.
A tese de que há dinheiro sobrando na Previdência não é nova, mas ficou mais conhecida com a proposta de reforma. Ela suscita discussões oportunas, como o papel dos benefícios rurais ou o financiamento da Seguridade, um debate que também aconteceu em outros países no momento das reformas. Entretanto, a tese é candidata a pós-verdade se usada para esconder o problema, adiar ajustes inevitáveis e criar um cenário de grave instabilidade econômica e social.
A indústria de litígio, que faz do INSS o maior litigante do Brasil, depende das distorções das regras vigentes
O argumento de que o déficit é falacioso se baseia em alguns mitos e em algumas confusões. Dentre os mitos, estão o que diz que o INSS paga benefícios assistenciais, trabalhistas ou de servidores (não paga); de que a Previdência urbana é superavitária (não é, só o foi por alguns anos); de que contabilidade atual da Seguridade é forjada pelo governo (não é, é validada pelo TCU); de que o orçamento da Seguridade - incluindo também saúde e assistência -- é superavitário (não é, segundo o próprio fórum tripartite do governo Dilma que debateu o problema); e de que o dinheiro da Seguridade é usado para pagar juros (não é, já que o país terá déficits primários até o fim da década).
Dentre as confusões, há a mistura dos conceitos da Seguridade com Previdência: o primeiro engloba o segundo e também saúde e assistência, áreas carentes que neste argumento deveriam transferir recursos para a Previdência. Existe ainda a visão de que o financiamento da Seguridade estabelecido em 1988 foi alterado inconstitucionalmente, quando o que houve de fato foram sucessivas emendas constitucionais, que o Congresso Nacional tem a legitimidade para aprovar.
Chegamos assim à principal controvérsia deste argumento: a de que o governo usa a Desvinculação de Receitas da União (DRU) para retirar verbas da Seguridade. Nesta discussão, ironicamente, os verdadeiros perdedores com a DRU, muitos em situação de calamidade financeira, não surgem reivindicando suas perdas: são os Estados e municípios. Inicialmente como FSE e FEF, a DRU foi o mecanismo usado pela União para burlar o federalismo fiscal pactuado em 1988.
Precisando aumentar a arrecadação de seus tributos, o governo federal tinha duas opções ruins: aumentar impostos e obrigatoriamente dividi-los com os entes, ou aumentar contribuições e obrigatoriamente usá-las na Seguridade. A solução foi aumentar as alíquotas e base de contribuições como Cofins e CSLL desobrigando o seu uso na Seguridade: a DRU.
É claro que isso não proíbe que a DRU seja desfeita e a arrecadação seja vertida para a Seguridade, mas duas observações precisam ser feitas. Uma é que receitas desvinculadas pela DRU não são "revinculadas" a nenhuma despesa, e estes recursos já podem voltar à Seguridade. A outra é que desfazer a DRU implica cortar bilhões de outras despesas primárias e ninguém até agora teve a coragem de especificar quais devem ser as vítimas.
A tese de que o déficit é uma farsa não é inofensiva, não só pelas consequências da inação na Previdência, como pela origem do argumento. A teoria da conspiração que circula no Whatsapp de que o governo desvia dinheiro da Previdência é criação de funcionários públicos que podem gozar de aposentadorias sem idade mínima ou fator previdenciário, com valor integral do maior salário da vida independentemente das contribuições e aumentos acima da inflação que não existem no INSS. A reforma ameaça um pouquinho esses privilégios e o argumento do mito do déficit é seu mecanismo de defesa.
Outro grupo que divulga esse argumento é um instituto científico composto por advogados donos de escritórios. A indústria de litígio que faz do INSS o maior litigante do Brasil depende das distorções das regras vigentes (como a que deu margem para a desaposentadoria). Ter déficit na Previdência prejudica os honorários e a reforma afeta diretamente o objeto do ramo: a lei.
É certo que a reforma da Previdência traz mudanças importantes em curto prazo, tangíveis, com benefícios prometidos em longo prazo, intangíveis. É natural que nestes temas surjam tentativas de negar a necessidade de mudança, como no aquecimento global (uma invenção da China para Trump). Não fosse o argumento de superávit, seria outro.
Debater o financiamento do INSS é pertinente. O que incomoda é perceber um esforço de contrainformação nas redes se aproveitando da desconfiança da população com a Corrupção na política e criando genuínas lendas urbanas. Incomoda em especial o abuso da confiança da sociedade por parte de especialistas que usam o argumento para defender interesses próprios.
Com o teto de gastos, em 15 anos todo o orçamento do governo federal seria usado somente para pagar benefícios. Nos Estados, o déficit atuarial, de trilhões, ameaça a prestação de serviços básicos. Aceitar que existe um desequilíbrio grave e crônico na Previdência não significa aceitar toda a proposta de reforma do governo. No entanto, se a tese de superávit em vez de servir para discutir um país mais justo servir apenas para esconder o problema, ela passa a ser mais um episódio de contabilidade criativa. Mais uma pedalada.

Por Pedro Fernando Nery, no Valor Econômico/SP

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