segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Podemos justificar o Fies com base nas falhas do mercado de crédito?



Por Paulo Springer e Fernando Meneguin*

A teoria econômica tradicional nos ensina que um ambiente perfeitamente competitivo e sem falhas de mercado gera uma situação eficiente, definida como aquela em que não se pode melhorar a situação de um agente econômico sem piorar a de outro (ou, no jargão econômico, um ótimo de Pareto). O fato de os mercados competitivos e sem falhas de mercado gerarem uma situação eficiente é uma visão idealizada do sistema. Na realidade, entretanto, os pressupostos de concorrência perfeita e ausência de falhas de mercado são frequentemente violados na vida real, o que impede que ocorra uma alocação que seja ótima de Pareto (sobre “falhas de mercado” ver, neste site, o texto “Por que oGoverno deve Interferir na Economia?”).
Neste artigo iremos discutir algumas dessas falhas no mercado de crédito, que impedem (ou dificultam) o atingimento de uma alocação que seja Pareto-eficiente. A principal falha em questão é a assimetria de informações, ou seja, o emprestador não conhece bem as características do potencial tomador de empréstimo.
A assimetria informacional pode ser vista sob duas perspectivas: seleção adversa  e risco moral.
O fenômeno da seleção adversa acontece porque os bancos não têm pleno conhecimento da capacidade de pagamento dos tomadores. Por exemplo, duas pessoas físicas, que trabalham em uma mesma empresa e ocupam cargos semelhantes. Uma pode estar em vias de ser demitida e outra não. Ambos os funcionários conhecem (ou, pelo menos, têm uma noção razoável) de sua probabilidade de ser demitido, mas o banco não tem acesso a essa informação e por isso não têm como selecionar o indivíduo que terá maior capacidade de pagamento de um empréstimo no futuro próximo. Podemos também utilizar um exemplo de dois microempresários, suponhamos duas padarias. Uma é reconhecida em seu bairro pela boa qualidade do pão que produz, a outra não: a boa padaria tem melhores perspectivas financeiras futuras, mas o banco não detém essa informação. O mesmo raciocínio é válido para grandes empresas. A empresa conhece melhor que o banco emprestador os lançamentos que pretende fazer nos próximos anos ou a chance de ser bem sucedida em uma negociação envolvendo a transferência de terrenos para a construção da planta industrial.
O problema de seleção adversa surge, portanto, da incapacidade de o banco conhecer bem o tomador do empréstimo. Já o risco moral, a segunda forma de assimetria de informações que estamos analisando, deriva do fato de o tomador do empréstimo passar a se comportar de forma diferente – e mais arriscada – justamente porque conseguiu o empréstimo. Expressões como “muito grande para quebrar” refletem uma situação de livro-texto de risco moral. O tomador sabe que, se quebrar, poderá criar uma cadeia dedefaults, com consequências desastrosas para a economia. Como o nome sugere, o risco moral nesse caso é mais alto para grandes tomadores, sejam países ou grandes corporações. Os bancos, cientes de que o não pagamento da dívida por parte desses tomadores pode gerar forte prejuízo, acabam se sentindo obrigados a renegociar as condições do financiamento.
Mas o risco moral também envolve pequenos tomadores. Por exemplo, uma empresa está endividada e se defronta com duas alternativas de investimento. Uma pouco arriscada, mas com retorno baixo, e outra muito arriscada, mas com retorno elevado. Se utilizasse o capital próprio, a empresa poderia optar pela estratégia menos arriscada. Mas, se o capital é de terceiros, ela pode optar pelo investimento mais arriscado pois, se ganhar, paga o empréstimo e obtém um lucro elevado, se perder, perde os recursos de outrem, que eventualmente serão cobrados em juízo, mas não necessariamente pagos ou pagos com defasagem e de forma parcial, conforme decisão judicial.
Seja qual for a causa da informação assimétrica, se seleção adversa ou risco moral, não há como um banco discriminar cada tomador, cobrando-lhe a taxa de juros de acordo com o risco específico que esse tomador traz. Sem conhecer bem o cliente, resta ao banco fixar a taxa de juros em conformidade com um risco médio, esperado para aquele tipo de cliente. Isso faz com que bons pagadores, que mereceriam pagar juros mais baixos, sejam onerados mais fortemente. Dependendo de quão elevado for esse custo extra, o bom pagador pode desistir de contrair o empréstimo. No limite, o mercado de crédito ficaria só com os maus pagadores, que seriam aqueles dispostos a pagar taxas mais altas, pois já têm em mente que não vão pagar o empréstimo tomado. Mas essa não seria uma situação de equilíbrio, pois, se há somente maus pagadores, a taxa de juros deveria refletir o risco máximo. No limite, se há somente “maus pagadores” para os quais o credor não consegue recuperar nada do valor emprestado, então a taxa de juros deveria ser infinita, e o mercado de crédito deixaria de existir1. De uma forma geral, contudo, o mercado encontra uma taxa de juros de equilíbrio, em que o prêmio de risco exigido pelo credor não é tão elevado a ponto de afugentar os bons pagadores do mercado.
Como resolver os problemas da seleção adversa e do risco moral? No caso da seleção adversa, um passo inicial é tentar conhecer melhor o cliente. No caso de pessoas físicas, os tomadores preenchem cadastros em que suas diversas características – estado civil, posição na ocupação, tempo na atividade, tamanho da família, idade, etc – são avaliadas e permitem ao credor inferir o risco de crédito associado àquele indivíduo. Para firmas, os credores podem analisar balanços e contar com análises setoriais. Quanto maior for o tomador, maior será o interesse do credor para analisar em profundidade as características de quem está demandando crédito.
Pesquisas cadastrais e outras formas de análise do tomador contribuem para reduzir, porém não eliminar o problema da seleção adversa. Em primeiro lugar, porque há um trade-off. Informação custa dinheiro, portanto, há um limite de recursos que o credor está disposto a despender para obtê-las. A partir de determinado nível, é mais eficiente manter-se desinformado.
Em segundo lugar, porque a habilidade de pagamento de um tomador depende de uma série de fatores não mensuráveis, que dificilmente são capturados em questionários. Anteriormente demos alguns exemplos de tais fatores, como a probabilidade de perder o emprego, a qualidade do produto ou a perspectiva de novos lançamentos.
Diante da incapacidade de resolver o problema de assimetria de informações, a solução para os credores vem com a exigência de garantias. As instituições financeiras passam a solicitar, na maioria dos tipos de empréstimos, garantias para uma futura perda da capacidade de pagamento dos tomadores. Quanto mais sólida for a garantia, menor será a taxa de juros cobrada.
Esse procedimento, aliado a outros como securitização da dívida, cria mecanismos de proteção para o credor. Via de regra, é solicitado do tomador de empréstimo de 100% a 200% de garantias sobre o valor financiado. Se o empréstimo é para a aquisição de um bem, normalmente este próprio bem é a garantia, como exemplo a compra de um automóvel, que, se não for pago, é incorporado ao patrimônio do credor.
A garantia para um empréstimo tomado pode ser pessoal ou real. Na garantia pessoal, um garantidor se comprometerá em arcar com a dívida, caso o devedor principal não o faça. São exemplos de garantia pessoal: aval e fiança. Na garantia real, o devedor apresenta um bem que poderá ser vendido pelo credor caso haja o inadimplemento da dívida. São exemplos de garantia real: penhor, hipoteca, anticrese e alienação fiduciária.
A questão que se coloca é: o mercado é capaz de encontrar soluções pareto-eficientes para resolver o problema da assimetria de informações? A resposta é negativa. Se a solução via mercado envolve algum tipo de garantia, aqueles indivíduos ou empresa que são potencialmente bom pagadores podem ficar sem crédito se não dispuserem de garantias suficientes.
Por isso, o Governo muitas vezes entra para oferecer crédito sem a exigência de garantias ou com garantias menores do que as que seriam pedidas pelo mercado. Isso seria uma típica intervenção pública para corrigir uma falha de mercado: a incapacidade do mercado privado de conceder crédito para bom pagador que não disponha de garantias para oferecer. Vamos analisar, como exemplo, o problema do crédito estudantil.
Vários países adotam programas de crédito subsidiado para estudantes que, por estarem em uma fase da vida em que não produzem renda, ou têm empregos de tempo parcial, não contam com garantias a oferecer. Ademais, tendo em vista que a elevação do capital humano decorrente dos estudos elevará a renda futura do indivíduo, supõe-se que ele será capaz de, no futuro, pagar o empréstimo que financiará seus estudos.
No Brasil, o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) concede crédito estudantil em condições bastante privilegiadas. Até 2015, a taxa de juros era de 3,4% a.a, com período de carência de 18 meses após a conclusão do curso e o período de amortização era de três vezes o período de duração regular do curso, acrescido de doze meses. A partir do segundo semestre de 2015, a taxa de juros subiu para 6,5% ao ano. Mesmo essa taxa é extremamente baixa se considerada a taxa Selic, atualmente em mais de 14% a.a. e a inflação, que nos últimos anos têm se situado em torno de 6% anuais, sendo que, em 2015, provavelmente ultrapassará os 9%.
A questão que se coloca é, com base nas falhas de mercado, justifica-se a concessão de crédito subsidiado para a educação superior? Usualmente os estudantes são jovens e não possuem ativos para oferecer como garantia. A única garantia que poderiam oferecer é o próprio trabalho (futuro). Vários países (incluindo o Brasil), entretanto, impõem restrições legais para o indivíduo comprometer parte da renda futura para pagamento de dívidas. Além de restrições legais, comprometer a renda futura pode gerar incentivos incorretos, por questões de risco moral: o indivíduo tenderá a preferir ocupações por conta própria ou outras em que a verificação da renda é mais difícil de ser verificada.
Diante das restrições institucionais e do risco moral, é justificável criar programas de crédito educativo? Que características do mercado de educação o tornariam diferente do mercado de crédito para adquirir outros bens ou serviços? Nos outros mercados, de venda de sapatos, móveis ou pacotes turísticos também há assimetria de informações. Por que, via de regra, não se advogam intervenções governamentais no mercado de móveis e utensílios domésticos, por exemplo2?
Há algumas respostas para isso. Em primeiro lugar, o risco de crédito pode ser excessivamente alto para o financiamento estudantil (ausência de garantias, longo prazo para pagamento, dificuldade de conhecer melhor o tomador), a ponto de inviabilizar o mercado. No caso dos móveis, o conjunto de tomadores de crédito é formado por indivíduos sobre os quais é possível inferir com maior acurácia a probabilidade dedefault. São pessoas já inseridas no mercado de trabalho, que já possuem alguns bens, já há um histórico de adimplência, etc. Ou seja, a assimetria de informação é substancialmente menor para os demais mercados, tornando mais provável haver uma taxa de juros que o equilibre.
Em segundo lugar, observe-se que a interferência governamental não contribui para reduzir o risco. O que a interferência do governo consegue fazer, no máximo, é transferir o risco, do pool de tomadores para outrem (mais especificamente, para os contribuintes de uma forma geral). No caso do mercado de móveis de nosso exemplo, é difícil encontrar justificativa para transferir para o contribuinte a responsabilidade pelo pagamento do risco de crédito.
Já para a educação, argumentos baseados em igualdade de oportunidades e externalidades positivas geradas pela educação podem ser facilmente utilizados.
Desse raciocínio, temos a terceira justificativa para a criação de programas de crédito educativo. O mercado financeiro pode ser pouco competitivo, levando a uma taxa de juros muito alta. Em países com forte concentração de renda, como o Brasil, a educação tende a oferecer uma taxa de retorno muito mais elevada do que a taxa básica da economia. Se o mercado financeiro for pouco competitivo, os estudantes estariam dispostos a pagar até o limite do retorno obtido com a educação. Nesse caso, contudo, todo o incremento de renda que obteriam em função de fazer um curso superior seria apropriado pelo sistema financeiro. O governo, ao oferecer crédito subsidiado (digamos, cobrando taxa de juros igual à Selic), está, em verdade, dando ao estudante o valor presente correspondente à diferença entre o retorno que obtém com os anos a mais de estudo e a taxa Selic. Novamente, argumentos de igualdade de oportunidade podem justificar essa política.
Observe-se que essa política não sai de graça para o contribuinte. Quanto maior for o volume de crédito subsidiado, maior o endividamento do governo e, portanto, maior deverá ser a taxa Selic. Na prática, o impacto sobre a taxa Selic deve ser marginal, mas como esse impacto incide sobre toda a dívida pública, o valor do subsídio pode não ser tão insignificante. Mesmo assim, a sociedade pode estar disposta a pagá-lo, em nome da igualdade de oportunidades e do aumento do capital humano, que aumentará a produtividade futura da economia.
Em quarto lugar, tomar empréstimos envolve riscos. Um tomador mais avesso ao risco pode optar por não se financiar (e não estudar), mesmo que seja, potencialmente, um excelente aluno. Mais uma vez, pode-se utilizar o argumento de igualdade de oportunidades: aversão ao risco é uma boa justificativa para negar a alguém o acesso à universidade?
Pode-se, portanto, construir argumentos defendendo a intervenção governamental no mercado de crédito educativo. A questão seguinte é: uma vez garantida a oferta de crédito, qual deve ser a taxa de juros? Cabe pensar em subsídio? Deve-se embutir um prêmio pelo risco?
Se pensarmos exclusivamente sobre a questão do crédito, o ponto de partida deve ser a taxa básica de juros da economia. Se o retorno privado do investimento em educação for inferior ao da taxa básica de juros da economia, então não deveria haver financiamento. Essa conclusão pode ser alterada caso se entenda que a educação superior gera externalidades suficientemente elevadas, de forma que o retorno social da educação seja superior à taxa de juros da economia, ainda que o retorno privado seja menor. É reconhecido que educação traz externalidades, embora elas sejam mais elevadas para os níveis iniciais de ensino, enquanto o crédito educativo concentra-se no ensino superior.
O subsídio atual do Fies (mensurado como a diferença entre a taxa Selic e a taxa de juros cobrada dos participantes do programa), em torno de 8% ao ano, parece ser bastante elevado, muito acima do que seria justificável pelas externalidades3. É claro que não se pode descartar a existência de externalidades significativas, mas, diante da magnitude dos valores, entendemos que o subsídio não deveria ser concedido sem um estudo mais aprofundado sobre a relevância das externalidades geradas.
Não se pode também descartar a possibilidade de se fixarem taxas diferenciadas, com custo mais baixo para cursos em que, por alguma idiossincrasia qualquer, gere mais externalidades do que outros. Alternativamente, pode não ser necessário conceder subsídios para cursos que geram alto retorno privado, mesmo que gerem externalidades relevantes. Nesse caso, a demanda pelos cursos seria relativamente inelástica aos subsídios.
Partindo da Selic como base, a segunda questão que se coloca é o prêmio de risco. Quem deve pagar pelo risco, o tomador do empréstimo ou o contribuinte? Para responder a essa pergunta, devemos dividir o risco em dois grupos: os riscos idiossincráticos e os não idiossincráticos.
Os riscos não idiossincráticos são aqueles que são comuns a todos os tomadores de crédito e estão fora do controle do indivíduo. Por exemplo, o estudante pode vir a falecer antes de poder pagar o empréstimo. A economia pode entrar em colapso durante o período de amortização. A profissão associada à formação escolhida pode se tornar obsoleta. Do ponto de vista social, o custo do financiamento deve ser entendido como o custo da taxa básica da economia acrescido do risco não idiossincrático. Por esse motivo, são os estudantes que deveriam pagar por esse risco. Do contrário, a sociedade estaria financiando uma atividade que, do ponto de vista social, traria menos retorno do que o valor investido.
Em relação à alocação dos riscos idiossincráticos, a resposta dependerá das preferências da sociedade. Riscos idiossincráticos são aqueles que decorrem da capacidade de o indivíduo pagar o empréstimo em decorrência de características pessoais. Essas características envolvem habilidades natas e adquiridas, atitudes em relação ao trabalho, disposição para honrar compromissos, etc.
A forma mais simples de entender como se processaria o pagamento pelos riscos é imaginar que há um fundo, que faz um chamamento de recursos sempre que uma prestação não é paga. Os recursos desse fundo podem ser aportados pelos tomadores ou pelo Tesouro. No primeiro caso, dizemos que o risco idiossincrático é pago pelos participantes do Fies. No segundo caso, pelos contribuintes. Conforme explicamos anteriormente, se os riscos forem não idiossincráticos, entendemos que são os participantes do Fies que devem fazer os aportes necessários. E para os riscos idiossincráticos?
Para facilitar a resposta a essa pergunta, podemos reformulá-la da seguinte forma: quem deve pagar pelo mau pagador, o bom pagador ou o contribuinte?
A resposta pode não ser simples. Suponhamos que a sociedade seja dividida entre pobres e ricos, sendo que somente esses últimos pagariam impostos. Os pobres não teriam acesso à universidade se não dispuserem de crédito educativo. É justo exigir do pobre bom pagador que arque com os custos do pobre que não é bom pagador? Por outro lado, é justo exigir dos ricos que paguem os custos do pobre que não é bom pagador?
É bom lembrar que, dado o ambiente de informação incompleta, necessariamente alguém arcará com os custos do pobre mau pagador. No exemplo dado, não necessariamente é melhor que os ricos paguem. Por exemplo, os impostos já podem estar sendo utilizados para pagamento de outros programas sociais considerados mais prioritários, como apoio à educação básica ou transferências de renda. O pobre bom pagador pode ter, inclusive, já se beneficiado de um desses programas.
Não é nosso objetivo sugerir quem deve arcar com o risco idiossincrático. Mas deveria haver transparência em relação a isso. Em dezembro de 2014, o banco Morgan Stanley divulgou relatório afirmando que a inadimplência do Fies estava em torno de 10%, mas poderia chegar a 27% em 20174. O governo contestou os números e afirmou que a inadimplência estava em torno de 3% ou 4%5. Independentemente dos números exatos, é importante avaliar melhor qual o nível de inadimplência do Fies e como ele deve ser alocado. Também entendemos que, independentemente de como é feita a alocação de riscos, o subsídio embutido nas taxas de financiamento do Fies nos parece excessivamente generoso. Certamente os 6,5% ao ano atualmente cobrados são muito inferiores à taxa Selic esperada para a média dos próximos 10 ou 15 anos (prazo de duração dos contratos) ajustada pelo risco não idiossincrático.
Por fim, há que se considerar quem efetivamente se beneficia do subsídio creditício. Um programa que ofereça um grande volume de crédito elevará a demanda por crédito educativo e, consequentemente, por matrículas em universidades privadas. Esse aumento de demanda pode resultar em elevação dos valores reais das mensalidades. O resultado seria a apropriação, pelas escolas privadas, do subsídio creditício, via mensalidades mais elevadas. O forte aumento das cotações em bolsa dos principais grupos empresariais ao longo da primeira fase do Fies, e o desabamento dessas cotações quando dos cortes orçamentários implementados em 2014-15, indica que a possibilidade de captura do subsídio pelas escolas não é mera especulação intelectual. Assim, um programa de crédito educativo deve se preocupar, também, em não adquirir dimensões que afetem os preços praticados no mercado de educação.
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1A situação de default total é extrema. Muitas vezes o mau pagador é somente aquele que atrasa as prestações ou que renegocia os débitos, permitindo que o credor recupere parte substancial do capital empatado.
2Em verdade, o Programa Minha Casa Melhor, extinto no final de 2014, financiava, a juros subsidiados, itens de mobiliário e eletroeletrônicos. Poucos analistas, contudo, consideram que aquele programa era justificável.
3 Em verdade, o cálculo correto do subsídio deveria considerar a diferença entre os 6,5% a.a. que o Fies cobra e a taxa Selic durante toda a vigência do contrato, e não somente o valor atual. Ainda que o subsídio possa a vir cair no futuro, é pouco provável que a taxa Selic fique abaixo de 6,5% ao ano nos próximos dez anos.



Paulo Springer e Fernando Meneguin

1) Doutor em Economia. Professor do Programa Mestrado em Economia do Setor Público, do Departamento de Economia da UnB. 2) Doutor em Economia.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Ambiente de negócios, investimentos e produtividade.



Por Luiz Ricardo Cavalcante*

Ambiente de negócios é o nome genericamente atribuído às condições que circunscrevem, em um determinado país ou em uma determinada região, o ciclo de vida das empresas. De uma forma geral, o ambiente de negócios diz respeito aos níveis de complexidade associados, por exemplo, aos procedimentos de abertura e fechamento de empresas ou de recolhimento de tributos. A melhoria do ambiente de negócios está associada, portanto, a ações de simplificação e desburocratização desses procedimentos. Em virtude de sua própria natureza, o ambiente de negócios é uma variável de difícil mensuração. Ainda assim, o Banco Mundial procura capturar aspectos relativos ao ambiente de negócios com base em uma metodologia conhecida como Doing Business, que “mede, analisa e compara as regulamentações aplicáveis às empresas e o seu cumprimento em 189 economias e cidades selecionadas nos níveis subnacional e regional”.

Esses indicadores são amplamente empregados por formuladores de políticas para orientar ações de simplificação e desburocratização e por empresários para avaliar os países ou regiões onde pretendem investir. Por essa razão, é razoável assumir que há uma associação direta entre a qualidade do ambiente de negócios e os níveis de investimento. Ao contribuírem para a elevação do estoque de capital (total de máquinas, equipamentos e demais instrumentos de produção), os investimentos, por sua vez, estão diretamente associados à produtividade do trabalho (leia mais sobre produtividade neste blog clicandoaquiaqui ou aqui). Dessa forma, há uma associação entre a qualidade do ambiente de negócios, os níveis de investimento e a produtividade do trabalho.
Ainda que a associação proposta entre a qualidade do ambiente de negócios, os níveis de investimento e a produtividade do trabalho seja intuitiva e de difícil contestação, há escassas evidências quantitativas sobre o tema, especialmente quando se trata de um modelo sequencial dessa natureza. Neste trabalho, estimam-se os coeficientes que relacionam ambiente de negócios, investimentos e produtividade com base em um painel de dados referente a 81 países no período entre 2005 e 2011.
Um estudo estatístico (regressão) buscou identificar as seguintes relações:
·         Como o ambiente de negócios afeta o estoque de capital da economia; e
·         Como o estoque de capital afeta a produtividade.

Em ambos os casos, outros fatores podem contribuir para explicar o comportamento do estoque de capital e da produtividade. No primeiro caso, por exemplo, fatores como renúncias fiscais e créditos subsidiados podem contribuir para maiores níveis de investimentos e, portanto, para a elevação do estoque de capital por trabalhador. No segundo caso, aspectos como qualificação da mão de obra ou investimentos em P&D podem interferir no nível de produtividade alcançado. Para levar em consideração o efeito das variáveis omitidas, no exercício estatístico foram usadas técnicas que permitem a comparação dos países antes e depois das alterações no ambiente de negócios isolando-se o efeito de outras variáveis.1
A associação entre o ambiente de negócios e o estoque de capital por trabalhador pode ser facilmente percebida no gráfico 1 a seguir, para cuja elaboração se empregaram os dados referentes aos 81 países que compõem a amostra durante o período entre 2005 e 2011.
Gráfico 1: ambiente de negócios e estoque de capital por trabalhador, 2005-2011

O gráfico evidencia que um melhor ambiente de negócios, ao estimular o investimento, tende a exibir uma correlação positiva com o estoque de capital por trabalhador. Em particular, o Brasil exibe um estoque de capital por trabalhador superior ao que seria predito por seu ambiente de negócios. Isso decorre de fatores idiossincráticos do país (por exemplo, a presença de incentivos ao investimento por meio de créditos subsidiados).
Com base no coeficiente estimado, pode-se simular o estoque de capital por trabalhador no Brasil para diferentes valores assumidos pela variável que mede a qualidade do ambiente de negócios. A título de ilustração, simulou-se o crescimento percentual do estoque de capital por trabalhador se o Brasil tivesse, em 2011, os níveis de Doing Business dos seguintes países: Estados Unidos e Canadá (países desenvolvidos de grandes dimensões); China, Índia, Rússia e África do Sul (que, juntamente com o Brasil, formam os BRICS) e Argentina, México e Chile (latino-americanos de referência para o Brasil). Ainda que esses resultados devam ser interpretados com cautela, os valores indicados sugerem incrementos significativos na maioria dos casos. Esses incrementos são da ordem de 80% se o Brasil alcançasse os níveis dos Estados Unidos e do Canadá, superiores a 40% na comparação com o Chile e o México e não desprezíveis na comparação com a maior parte dos BRICS e com a Argentina.

Esses dados não querem dizer que uma elevação súbita do Doing Business no Brasil poderia motivar um crescimento imediato do estoque de capital por trabalhador. De fato, um crescimento percentual de, por exemplo, 15% no estoque de capital por trabalhador (e, portanto, do estoque de capital para um número fixo de pessoas ocupadas) implicaria um nível de investimentos, em um único ano, de mais do que o dobro do que aquele efetivamente observado. Na verdade, um melhor ambiente de negócios permite uma elevação cumulativa dos investimentos. Para levar em conta esse aspecto, estimou-se a elevação percentual anual dos investimentos requerida para que, em um intervalo bastante longo (entre 1970 e 2011), o estoque de capital atingisse aquele estimado em diferentes ambientes de negócios.

Considerando os valores observados em 2011, estimam-se incrementos percentuais de cerca de 2% no investimento para cada ponto adicional de Doing Business no Brasil. Apenas como ilustração, incrementos dessa natureza podem ser comparados com a participação dos desembolsos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na formação bruta de capital fixo (FBCF), que alcançou, segundo estimativas do próprio banco, 15% em 2014. Um salto dessa magnitude seria alcançado, de acordo com os coeficientes estimados, caso a pontuação brasileira alcançasse, aproximadamente, 56,75 em 2011. Isso significaria, naquela ocasião, um salto de cerca de trinta posições no ranking do Doing Business, colocando o ambiente de negócios no país em um patamar semelhante ao da China (57,77), por exemplo. Um incremento de 30% no total dos investimentos requereria, por sua vez, que a pontuação brasileira alcançasse 63,41. Com isso, a posição relativa do país no ranking do Doing Business subiria cerca de 70 posições, colocando o país em uma posição inferior, porém próxima, à da Turquia (65,37) ou da Polônia (65,70), por exemplo. Finalmente, caso o ambiente de negócios no Brasil alcançasse 69,41, colocando o país em níveis próximos aos do México (71,03) ou do Chile (71,04), o incremento percentual dos investimentos alcançaria 45%, correspondentes a três vezes a participação dos desembolsos do BNDES nesse tipo de investimento em 2014. Para isso, entretanto, seria preciso que o país subisse, naquela ocasião, cerca de cem posições no ranking do Doing Business.2
Os resultados de uma regressão para a relação entre o estoque de capital por trabalhador e a produtividade do trabalho indicam que o coeficiente é significativo a mais de 99% de confiança. Assim, há uma forte relação estatística entre o estoque de capital e a produtividade do trabalho. Os resultados mostram que uma elevação de 1,0% no estoque de capital por trabalhador leva a um aumento de cerca de 0,5% na produtividade do trabalho. Especificamente nas condições indicadas acima (incrementos estimados de 15%, 30% e 45% nos investimentos, correspondentes a elevações no estoque de capital por trabalhador de 13,45%, 26,90% e 40,35%), estimam-se ganhos de produtividade de 6,58%, 12,78% e 18,67%, respectivamente.
Os resultados obtidos neste trabalho reafirmam que, ao lado de ações voltadas para o incentivo ao investimento através de renúncias fiscais e de créditos subsidiados, a melhoria do ambiente de negócios (que envolve custos fiscais reduzidos) exerce um impacto significativo no nível de investimentos e na produtividade do trabalho no país. Especialmente em um contexto de restrições ao uso de renúncias fiscais e de créditos subsidiados como forma de incentivar investimentos, será preciso identificar e remover as restrições políticas e institucionais que se colocam para a melhoria do ambiente de negócios no país. Preliminarmente, pode-se associar essas restrições aos seguintes fatores: i) ausência de coordenação entre órgãos de governo e entre entes federados (que colocam demandas muitas vezes repetitivas para as empresas e tornam excessivamente complexas tarefas associadas, por exemplo, à conformidade com a legislação tributária); ii) presença de eventuais grupos de interesses que podem obter vantagens da complexidade do ambiente de negócios no país; iii) incentivos para que os servidores públicos adotem precauções para autorizar ações do setor produtivo em virtude do risco de responsabilização; e iv) reduzido rule of law, que induz à imposição de uma excessiva e rigorosa fiscalização ex ante diante das escassas possibilidades de aplicação de sanções ex post mais severas em caso de descumprimento de algum normativo. As ações voltadas para a solução de problemas dessa natureza envolvem os poderes executivo, legislativo e judiciário e podem, indiscutivelmente, concorrer para a melhoria do ambiente de negócios no país.

1 As regressões foram feitas em painel com efeitos fixos. Essa opção faz com que aspectos idiossincráticos de cada país invariantes no tempo sejam capturados na regressão.
2 O salto de cerca de cem posições diz respeito ao ano de 2011 e aos valores da distância até a fronteira calculados para aquele ano. Em 2015, as posições do Brasil (120º) e do Chile (41º) são mais próximas.

Este texto corresponde a um extrato de CAVALCANTE, L. R. Ambiente de negócios, investimentos e produtividade. In: DE NEGRI, F.; CAVALCANTE, L. R. Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes. Brasília: Ipea, 2015. v. 2 (determinantes). O autor agradece os comentários e sugestões de Bruno César Araújo, C. Alexandre A. Rocha, Fernanda De Negri, Lucas Ferreira Mation, Marcos Mendes e Simone Uderman. Agradece também à equipe do Ipea com quem teve a oportunidade de discutir uma versão preliminar deste trabalho. Erros e omissões são de responsabilidade do autor.

*Luiz Ricardo Cavalcante - Consultor Legislativo do Senado Federal.


terça-feira, 13 de outubro de 2015

Devemos tirar a Petrobras da condição de operadora única no Pré-sal?



Por José Mauro de Morais

Encontra-se em discussão no Senado Federal o Projeto de Lei nº 131/15, do Senador José Serra, que busca retirar a obrigatoriedade de que a Petrobras seja a única empresa com a função de operar as atividades de exploração e produção de petróleo no pré-sal. Essa foi uma imposição da Lei de Partilha de Produção (Lei nº 12.351/10, art. 4º), instituída em 2010 para normatizar as explorações e a produção de petróleo no pré-sal. No regime de Partilha vence uma licitação a empresa ou o consórcio de empresas que oferecer a maior parcela de excedente em óleo (lucro) à União. Ao vencer um leilão de área exploratória, a empresa deve, necessariamente, formar um consórcio com a Petrobras e com a empresa estatal Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), de acordo com o artigo 20 da Lei de Partilha. No consórcio, a Petrobras assume a função de operadora das explorações de petróleo e gás (a empresa operadora é a encarregada, em um campo de petróleo, de contratar e executar todas as atividades econômicas e tecnológicas relacionadas às explorações e à produção; as demais empresas que com ela participam do consórcio atuam como investidoras, detendo pouco poder de decisão).

Observe-se que a própria Petrobras nunca foi completamente favorável ao dispositivo da lei que a obriga a ser a operadora do campo, pois se uma determinada área petrolífera não estiver entre suas prioridades, ou apresentar menor interesse geológico, ainda assim ela será obrigada a assumir a operação da área, tendo de alocar recursos financeiros, equipamentos e pessoal especializado nas explorações, que poderiam ser mais produtivamente aplicados em outras áreas de seu maior interesse. Além disso, eventualmente, terá de trabalhar com sócios que não escolheu e honrar e operar uma proposta econômica vencedora de uma licitação em que ela não participou de seu planejamento.

A exigência de operador único já havia, antes mesmo da atual crise que envolve a Petrobras, diminuído a atratividade para a participação de outras empresas petroleiras na exploração do pré-sal, em razão das limitações que encontram para compartilhar, com maior capacidade de decisão, dos diversos aspectos envolvidos na condução das explorações de um campo de petróleo. Isso é bem ilustrado pelo leilão do campo de Libra, em outubro de 2013, em que não houve competição, pois apenas um consórcio de empresas participou da licitação. Assim, o modelo de operador único, além de não atender aos interesses da própria Petrobras, não atrai número expressivo de empresas petroleiras para os leilões, situação que não potencializa maiores excedentes em óleo oferecido à União. Se for eliminada a obrigatoriedade de que a Petrobras atue como operadora única, como pretende o PLS nº 131/2015, maior número de petroleiras nacionais e estrangeiras, privadas ou estatais, serão incentivadas a participar das licitações, trazendo também suas tecnologias, recursos físicos e financeiros e novo impulso na produção de petróleo e na arrecadação de impostos. E a Petrobras poderá decidir, segundo seus próprios interesses, se participa ou não de uma determinada licitação.

A Lei de Partilha determina ainda que a Petrobras deve participar do consórcio vencedor de cada licitação com recursos financeiros equivalentes a, no mínimo, 30% do capital do consórcio. Sabendo-se das atuais dificuldades financeiras da Companhia – que em razão do alto grau de endividamento foi obrigada a reduzir seus investimentos, nos próximos cinco anos, de US$ 206,8 bilhões para US$ 130,3 bilhões, e diminuir seus campos de petróleo que receberão investimentos, de 30 campos inicialmente planejados para 22, entre 2015 e 2020 – dificilmente terá fôlego financeiro para assumir mais compromissos além dos que ela já tem no pré-sal e em outras áreas. Isso é mais verdadeiro depois que sua nota de crédito foi rebaixada pela Standard & Poor’s, ocasionando a perda do grau de investimento e dificultando o levantamento de novos empréstimos no mercado financeiro. Em razão das limitações financeiras e da necessidade de diminuir o elevado endividamento, a Petrobras decidiu concentrar seus investimentos no desenvolvimento de campos de petróleo já descobertos, visando ao aumento da produção, e reduzindo, ao mesmo tempo, os investimentos em explorações. Essa decisão da Petrobras é bastante coerente, uma vez que suas reservas de petróleo e gás, provadas ou estimadas, já alcançam o expressivo montante de cerca de 45 bilhões de barris, localizadas nos campos antigos e nos novos campos que descobriu no pré-sal. Esse volume de reservas é suficiente para a Petrobras produzir combustíveis e demais derivados em suas refinarias por mais de 40 anos.

Assim, novas licitações no pré-sal, no regime de operador único, ficam completamente dependentes da capacidade da Petrobras de mobilizar recursos para participar e arcar com todos os volumosos investimentos envolvidos nas explorações. Exceto pela crescente produção que já vem sendo obtida no pré-sal pela Petrobras e empresas a ela consorciadas, as demais reservas potenciais brasileiras permanecem ociosas, inexploradas, sem gerar renda e empregos. Isso ocorre num momento em que o Brasil precisa criar fatos novos na área econômica, para incentivar o aumento dos investimentos e colocar em produção novas reservas do pré-sal para a geração de impostos, a serem aplicados na educação e na saúde, como determinam as novas normas de aplicação dos royalties do petróleo (Lei nº 12.858/2013).

Enquanto isso, no mundo, as explorações avançam em novas fronteiras petrolíferas, pois as empresas petroleiras realizam seu planejamento olhando muitos anos à frente, na expectativa de que os preços do petróleo já terão se elevado quando novos campos descobertos estiveram em produção, daqui a cinco ou mais anos. Exemplos do prosseguimento das explorações mundiais, mesmo com os preços internacionais do petróleo abaixo de US$ 60, encontram-se no Golfo do México, onde foram realizadas ofertas, em agosto deste ano, para 33 blocos exploratórios localizados em águas profundas de até 3.340 metros na parte norte-americana do Golfo.

Também na seção do Golfo pertencente ao México foram realizadas este ano duas licitações de áreas exploratórias, após o recente processo de abertura da indústria do petróleo do país aos investidores privados, depois de 75 anos de monopólio da empresa estatal Pemex.

Na Inglaterra, a autoridade de petróleo do país anunciou, em julho, a concessão de 41 novas licenças de exploração no Mar do Norte, em um programa de explorações com gastos no valor total de 4 bilhões de euros para revitalizar a produção de petróleo naquela região. Outros países que realizaram licitações de áreas exploratórias este ano foram a Bulgária, para procurar gás natural no Mar Negro, como forma de se livrar da dependência do gás fornecido pela Rússia, e a Irlanda, entre muitos outros.

O Brasil, que somente descobriu petróleo em 1939 (em Lobato, na Bahia), com atraso de 80 anos após o início das explorações comerciais no mundo (na Pensilvânia, em 1859), deveria refletir sobre esta experiência da história: em 1871, o governo imperial de dom Pedro II, para incentivar as explorações de petróleo e outros minerais, expediu o Aviso nº 53, do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, definindo que os depósitos minerais localizados em terras particulares constituíam propriedade do Estado e, portanto, podiam ser explorados por aqueles que recebessem licenças de exploração do governo “uma vez que não era de conveniência pública que as riquezas do mencionado solo jazam sepultadas nas entranhas da terra, quando empreendedores ativos e capitais suficientes aparecem para as aproveitar eficazmente” (Mattos Dias e Quaglino, A Questão do Petróleo no Brasil – Uma História da Petrobras, 1993).

Da mesma forma, atualmente, segundo a Constituição Federal, e de acordo com a Lei de Partilha, as reservas de petróleo são de propriedade da União, e mesmo depois que jazidas de petróleo ou gás são descobertas pelas empresas, as reservas continuam de propriedade da União. As empresas exploradoras têm o direito de receber uma parte do petróleo que produzirem, correspondente aos custos incorridos, aos royalties pagos e a uma parcela dos lucros. Para garantir informações seguras sobre os volumes produzidos pelas empresas, as operações de produção de petróleo são supervisionadas pela estatal PPSA, encarregada da gestão dos contratos de exploração firmados pelas empresas com a União, e com poder de veto sobre as decisões das empresas relativas às explorações e à produção. Ou seja, os instrumentos regulatórios e o monitoramento da produção por órgãos do governo já atendem aos interesses do Brasil no pré-sal.

A alteração proposta pelo PLS 131/2015 pode contribuir para dinamizar o setor de petróleo, desde que haja continuidade nos leilões de áreas no pré-sal, e aumentar a participação de empresas de capital nacional nas explorações, em associação com empresas estrangeiras ou com a própria Petrobras, que poderia participar das licitações como uma decisão livre, sem a imposição de que atue como operador único. Novas áreas exploratórias elevam a demanda para os equipamentos submarinos e os diversos serviços de instalações submarinas que passaram a ser oferecidos no Brasil para atender à Política de Conteúdo Local, além dos novos estaleiros implantados para a construção de navios e plataformas de petróleo. Novas áreas em exploração aumentam ainda a procura pelos serviços de pesquisa fornecidos pelo grande número de centros de pesquisa e tecnologia que se instalaram na Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, e em outros estados, especificamente para atender aos desafios tecnológicos do pré-sal.

Numa visão de longo prazo da indústria de petróleo no Brasil, observa-se que desde o primeiro leilão de áreas exploratórias, em 1999, empresas brasileiras e de vários países vêm investindo no setor, sejam como operadoras ou como investidoras. No período 1999/2013, nos 12 leilões realizados, as petroleiras estrangeiras venceram 129 vezes, e  as nacionais, 88 vezes. Como resultado, entre as atuais 10 maiores empresas produtoras operadoras de petróleo encontram-se a Petrobras, 6 empresas estrangeiras e 3 brasileiras de capital privado. Entre os motivos para a menor presença das empresas de capital nacional encontra-se o longo período do monopólio, que impediu o surgimento de petroleiras nacionais, pois somente após a abertura do setor de petróleo, em 1995, começaram a ser organizadas para atuar no setor. A própria Petrobras desenvolve parcerias com dezenas de empresas nacionais e estrangeiras e nem sempre ela é a operadora: de um total de 82 acordos de parceria que ela detém nas explorações, em 24 parcerias ela não é a operadora, participando apenas como investidora nos campos de petróleo; porém, sua hegemonia na indústria do petróleo é um fato inconteste, pois ela produz atualmente 92% de todo o petróleo extraído e 99% de todos os derivados de petróleo produzidos no País.

*José Mauro de Morais - Economista; autor de "Petróleo em Águas Profundas" e "Petrobras: Uma História das Explorações de Petróleo em Águas Profundas e no Pré-sal".

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Por que a economia brasileira foi para o buraco?



Por Marcos Mendes

Até poucos anos atrás havia grande otimismo em relação à economia brasileira. Chegamos a crescer 7,6% em 2010. Os salários cresciam, o desemprego ia para zero, a pobreza e a desigualdade caiam. A ascensão da classe C era festejada com a ampliação do consumo. De repente tudo mudou: a economia entrou em recessão em meados de 2014. As previsões para os próximos anos, coletadas junto ao mercado pelo Banco Central, são sombrias: uma recessão de 2% esse ano e crescimento zero em 2016. E mesmo quando a luz no final do túnel aparecer, o que se espera são medíocres taxas de crescimento do PIB de, no máximo, 2% ao ano. A taxa de desemprego calculada pelo IBGE não para de subir, passando de 4,3% em dezembro de 2014 para 7,5% em julho de 2015. Os dados sobre o déficit e a dívida do Governo Federal só mostram deterioração: festejados programas de governo, como o Fies e o Pronatec, tiveram que ser encolhidos por falta de dinheiro. A inflação disparou. Alguns governos estaduais não conseguem sequer pagar o funcionalismo, e estão parcelando os contracheques. Afinal, o que aconteceu para que caíssemos do nirvana para o buraco tão rapidamente?

A crise econômica atual tem causas antigas, que remontam ao início do atual  período democrático (iniciado em 1985), bem como causas recentes, ligadas a uma política econômica equivocada e inconsistente, adotada por volta  de 2005/2006 e aprofundada a partir de 2011.

As causas antigas

Quando o Brasil transitou de um regime ditatorial para uma democracia, em 1985, surgiram fortes pressões sociais para expansão do gasto público. Isso levou ao aumento do déficit público e exigiu a expansão da carga tributária. Esses fatos estão na base da nossa crise atual, como veremos a seguir. Vejamos, primeiro, porque o gasto público passou a crescer após à transição para a democracia.

Houve um acúmulo de necessidades sociais não atendidas ao longo dos 21 anos de regime militar. Praticamente não havia políticas públicas para atendimento aos mais pobres. Os indicadores sociais e educacionais estavam em níveis africanos.

Durante a ditadura os governantes não se sentiam premidos a atender a população mais pobre pelo simples fato de que o direito de voto era restrito. Havia eleição direta apenas para os cargos de senador, deputado e prefeitos de pequenas cidades. Ter uma carreira política de sucesso em muitos casos não dependia de ter votos. Com a redemocratização e a instituição de eleições diretas em todos os níveis, a sobrevivência de um político no poder passou a depender diretamente do voto.

Sendo os pobres a maioria do eleitorado (lembrando que até mesmo os analfabetos passaram a ter direito a voto), nada mais natural de que os políticos no poder passassem a oferecer políticas públicas a favor dos mais necessitados. Houve uma explosão de políticas de assistência social, educação e saúde pública. Diversos indicadores sociais passaram a melhorar, ainda que muito dessas políticas sejam caras e pouco eficientes.

Ocorre que não apenas os pobres se beneficiaram. A classe média também encontrou maior espaço para reivindicação. Afinal, com a redemocratização recobrou-se o direito de greve e o direito de associação em sindicatos e outras instituições formadas por pessoas com interesses comuns (associações de aposentados, de consumidores, de pacientes de doenças raras, etc.). Esses grupos passaram a ter grande poder de pressão para reivindicar políticas públicas a seu favor.

Frente ao ganho de poder político dos pobres e da classe média, seria de se esperar que os mais ricos perdessem espaço no orçamento público, com o governo direcionando os recursos antes gastos em favor deste para programas voltados aos pobres e à classe média. Mas isso não aconteceu. Os mais ricos também ganharam poder de reivindicação. Afinal, eleições custam caro, e alguém tem que financiá-las. Por meio do financiamento eleitoral, grandes empresas (em especial aquelas que têm contrato com o poder público) passaram a garantir o atendimento de seus interesses.

Ou seja, com a redemocratização, o Estado brasileiro passou a ser pressionado para atender aos pobres, à classe média e aos ricos. Com vários segmentos sociais tendo acesso aos recursos públicos, instituiu-se um cenário de forte disputa pelos recursos orçamentários. Para que isso não resultasse em expansão da despesa pública, teria sido necessário criar regras eficazes de limitação do gasto público: um orçamento consistente, que refletisse a real expectativa de receitas e despesas; limites legais para o déficit público; vedação ao financiamento do Tesouro pelo Banco Central.

Essas regras fiscais ou não foram instituídas, ou foram contornadas. Criaram-se, também, regras na direção contrária ao controle fiscal. Na nossa frágil democracia, pressionada por diferentes grupos sociais e de interesses, foram sendo construídas regras que protegiam a fatia do bolo dos grupos que conseguiam fazer mais pressão sobre instâncias decisórias do poder público. Assim, foram criadas regras que instituíam despesa mínima para os setores de educação e saúde, regras benevolentes de aposentadoria, crédito subsidiado para grandes empresas por meio de bancos públicos, regras de aumento real para o salário mínimo, etc.

Ou seja, em vez de haver regras fiscais que impusessem um limite ao gasto público total e forçassem os políticos a fazer escolhas entre beneficiar o grupo A ou o grupo B, o que se criou foram regras que obrigavam o setor público a beneficiar todo mundo, ao mesmo tempo, o tempo todo. Como bem sabe qualquer pessoa que administra um orçamento doméstico, uma hora a despesa fica maior que a receita e o endividamento explode.

No caso de governos, ao contrário dos orçamentos domésticos, há uma saída (perigosa) para evitar o endividamento: emitir moeda para pagar a despesa. E foi isso que se fez entre 1985 e 1994. O resultado foi a hiperinflação. Como os grupos sociais não conseguiam chegar a um consenso sobre o controle dos gastos públicos e como não havia regras fiscais que garantissem um orçamento equilibrado, a inflação fazia o serviço, corroendo o valor real dos gastos públicos e da renda das pessoas.

O problema é que a inflação tem efeitos perversos: além de incidir mais fortemente sobre os mais pobres (que não têm acesso a bancos, para proteger seu dinheiro por meio de aplicações financeiras), ela cria um ambiente de incerteza e insegurança que desestimula o investimento, levando a baixo crescimento econômico. Tivemos uma década perdida, em que tentamos nos livrar da inflação. Tentávamos fazê-lo sem abrir mão da prodigalidade fiscal. Queríamos resolver o problema (inflação) sem extinguir a causa (déficit público).

O esgotamento fiscal induziu a realização de algumas reformas. A principal delas foi o Programa Nacional de Desestatização, iniciado em 1990, que afastou o setor público da gestão de empresas então deficitárias e operadas de forma ineficiente em vários setores, como siderurgia, telefonia e mineração. Essas empresas funcionavam como um segundo cofre do Tesouro e como ferramenta de política econômica, muitas vezes sendo induzidas a tomar decisões que prejudicavam seu desempenho. Tomavam empréstimos no exterior quando era necessário fechar as contas do balanço de pagamentos; tinham os preços de seus produtos congelados, para segurar a inflação; etc.

Embora importantes, as privatizações não foram capazes de mudar o deficitário regime fiscal brasileiro. Passamos quase uma década, de 1985 a 1994, em que sete planos de estabilização da moeda falharam, porque não conseguiram impor limites ao gasto público. Somente em 1994 tivemos um plano de sucesso. O Plano Real correu o mesmo risco de dar errado, como os seus antecessores, pois não foi acompanhado de medidas para controlar os gastos públicos. Mais uma vez os esforços de ajuste fiscal não foram suficientes para equilibrar as contas públicas. Destaca-se nesse período a criação, em 1994, do Fundo Social de Emergência (posteriormente rebatizado de “Desvinculação de Receitas da União” – DRU), para tornar a despesa orçamentária menos rígida e viabilizar a redução de despesas obrigatórias (Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994). Esse é o exemplo típico de ajuste fiscal limitado, fazendo-se aquilo que as restrições políticas permitiam fazer: ajustes marginais, jamais reformas amplas, que assegurassem o equilíbrio fiscal e a solvência de longo prazo das contas públicas.

Novas crises de balanço de pagamentos surgiram em 1997 e 1998, nas quais a frágil situação fiscal brasileira somou-se ao contágio de crises ocorridas em outros países emergentes. Naquele momento ficou claro que o sucesso da estabilização dependia de mudanças profundas no regime fiscal brasileiro. As crises econômica e política forçaram os agentes políticos a aceitar limitações fiscais. Ajudou o fato de que um empréstimo do FMI ficava condicionado a medidas de ajuste fiscal: se os diversos grupos sociais e políticos do país não conseguiam se entender sobre como conter o gasto público, uma imposição externa ajudava a formar o consenso.

O ajuste fiscal “meia boca”

O país começou, então, a trilhar um caminho de mais responsabilidade fiscal. Assim, aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal no ano 2000. Um pouco antes, entre 1997 e 1998, fez-se uma importante renegociação da dívida dos estados e municípios junto ao mercado financeiro. Essa dívida era impagável e alimentada por déficits crônicos desses governos. O Governo Federal assumiu a dívida e passou a pagá-la em dia aos credores privados. Em troca disso, os estados e municípios se comprometeram a pagar o débito de forma parcelada ao Governo Federal ao longo de trinta anos. Para conseguir pagar essa dívida, foram forçados a ajustar suas contas. Quem não pagasse em dia, tinha as suas receitas confiscadas pelo Governo Federal. O esquema deu certo, e os estados e municípios se ajustaram rapidamente. Pela primeira vez na história recente começamos a ouvir palavras como “eficiência”, “gestão” e “equilíbrio fiscal” no âmbito dos governos estaduais e municipais. Tudo isso porque estava fechada a porta ao socorro federal: ou os estados e municípios se ajustavam ou quebravam.

Mais medidas foram tomadas visando ao equilíbrio fiscal. Estabeleceram-se metas de resultado primário e de redução da dívida nos três níveis de governo. Pouco depois se propôs uma reforma da previdência, com foco no regime dos servidores públicos (Emenda Constitucional nº 20/1998).

A aprovação dessas reformas ajudou bastante, mas não alterou o modelo instaurado nos anos 1980: continuava a pressão por aumento dos gastos públicos. A aprovação de cada reforma representava grande custo político para o Governo, em especial devido à aguerrida resistência dos interesses estabelecidos, apoiada pelos partidos de oposição da época. Não havia nada próximo a um consenso social em torno da reforma do Estado. Somente a visão da beira do precipício, representada pelas ameaças e concretizações de crises cambiais, é que davam estímulo e cacife ao Poder Executivo Federal para propor, e ao Legislativo para aceitar, pequenos avanços na agenda de reformas.

Em função dessa resistência, não  se reformou a previdência do setor privado ou o processo de elaboração e execução do orçamento federal. Para piorar, foram tomadas medidas fiscais em direção contrária, das quais se destacam a aceleração dos reajustes do salário mínimo (que tem grande impacto na despesa da previdência) e a vinculação das despesas em saúde ao ritmo de crescimento do PIB (Emenda Constitucional nº 29, de 2000). O apelo eleitoral desse tipo de medida é evidente.

Naquele momento a carga tributária ainda não era tão elevada. Em 1998, por exemplo, estava na casa de 27% do PIB. Por isso, havia espaço para fazer o ajuste fiscal via aumento de receitas. E assim se fez, com a criação de novos tributos e a majoração dos antigos, para dar conta do crescimento acelerado da despesa. Para a classe política era mais fácil dispersar o custo entre todos os contribuintes do país, do que comprar brigas com grupos organizados que defendiam seu quinhão no orçamento. Ademais, cada aumento de impostos vinha embalado com uma nobre causa a ser atendida: a CPMF era para financiar a saúde, o aumento das contribuições sociais era para financiar as aposentadorias, etc.

Passamos, então, de um regime cronicamente inflacionário (devido ao alto déficit público) para um regime de gastos públicos altos financiados por alta carga tributária. Já não tínhamos mais a hiperinflação, mas a economia não conseguia crescer, sufocada pela alta carga tributária.

Outra característica do nosso ajuste fiscal foi o radical corte nos investimentos públicos. A criação de regras de despesas obrigatórias em diversos setores, como educação, previdência e saúde, não foi acompanhada de regras de despesa mínima em infraestrutura. Estas ficaram expostas a cortes, para que se pudesse ampliar despesas que beneficiavam diretamente grupos bem organizados. A infraestrutura do país tornou-se cada vez mais precária, passando a representar um gargalo adicional para o crescimento econômico.

E o problema não estava só nas contas públicas

O fato de a nossa jovem democracia não ter conseguido construir instituições para conter o poder de influência dos diferentes grupos de interesse (ricos, pobres e de classe média) sobre as decisões públicas criou outros problemas além do desequilíbrio fiscal crônico, que passaram a minar a nossa capacidade de crescimento. Assim como reivindicavam gastos públicos ou benefícios tributários a seu favor, cada um desses grupos organizados também lutava por regulação econômica que protegesse suas rendas. E isso se fazia à custa da eficiência e competitividade da economia, resultando em menor potencial de crescimento.

A indústria conseguiu influenciar a política comercial do país, mantendo altas barreiras à entrada de produtos estrangeiros. Isso diminuiu a entrada de novas tecnologias no país, reduzindo o ritmo de inovação e de ganho de produtividade. Ademais, deu sobrevida a empresas ineficientes que, não tendo que competir com estrangeiros, conseguiram se manter vivas. Essas empresas utilizam recursos produtivos (mão de obra, capital, financiamentos) que poderiam ser mais bem empregados em empresas mais produtivas, gerando mais renda e produto.

Os sindicatos de empregados de empresa do setor formal conseguiram manter regras trabalhistas rígidas, que garantem benefícios a quem está empregado, mas que induzem as empresas a contratar menos. Assim, tais benefícios têm, como contrapartida, perdas para os trabalhadores que não conseguem emprego formal, e se mantêm no setor informal, sem acesso aos benefícios. Com regras trabalhistas rígidas, as empresas não têm flexibilidade para se ajustar a variações no ritmo da economia. Muitas, para evitar entrar no radar dos órgãos de fiscalização, optam por se manter pequenas, sem registrar seus trabalhadores. Perde-se oportunidade para que empresas talentosas cresçam, pois empresas informais não têm acesso a crédito e têm poucos incentivos a treinar seus trabalhadores. Mais uma vez, prejudica-se o crescimento econômico.

Os servidores públicos e seus sindicatos, com crescente influência, conseguiram obter ou manter diversos benefícios para as diferentes categorias, colocando em segundo plano o interesse dos usuários de serviços públicos. Greves intermináveis, nunca punidas com demissões ou desconto de remuneração, passaram a paralisar escolas, universidades, policiamento, vigilância sanitária, justiça e serviços de saúde. Os serviços públicos terceirizados, em uma comunhão de interesses das empresas concessionárias e de seus empregados, passaram a paralisar frequentemente os transportes públicos, a coleta de lixo e serviços funerários.

A justiça morosa sempre beneficiava quem tinha mais tempo e dinheiro para ingressar em juízo e manter causas de longa duração. O respeito aos contratos, em tal situação, fica ameaçado, o que desestimula investimentos.

Em função dessas dificuldades, o país navegou, entre 1994 e 2003, com baixa capacidade de crescimento, mas com estabilidade de preços, garantido pelo ajuste fiscal precário, baseado em aumentos de impostos.

As sucessivas crises externas, associadas a esse equilíbrio instável das contas públicas, infraestrutura deficiente e regulação econômica ineficiente, não abriam muito espaço para o crescimento.

E o ajuste fiscal necessário não se concretizava

Nos primeiros anos do novo século já estava clara a necessidade de reformas que mudassem o padrão de crescimento do gasto público. Projeções de especialistas em previdência social mostravam que os sistemas dos servidores públicos e do setor privado estavam em rota de déficit crescente. Os gastos em programas sociais cresciam de forma acelerada. A rigidez da despesa com pessoal, saúde e educação também aumentava. O processo de elaboração do orçamento era frágil: as receitas superestimadas, as despesas subestimadas e o controle fiscal feito “na boca do caixa”. Tornou-se lugar comum a frase segundo a qual “o orçamento público, no Brasil, é uma peça de ficção”.

Ou seja, mais de uma década atrás já era evidente que o regime fiscal brasileiro não seria sustentável no longo prazo. Obviamente, a carga tributária não poderia crescer para sempre, pois chegaria um momento em que sufocaria os contribuintes e as possibilidades de crescimento econômico e da própria receita. A crônica falta de investimento em infraestrutura reduzia o potencial de crescimento do PIB e da receita pública. Enquanto isso a despesa crescia, sempre a taxas superiores ao PIB, como pode ser visto no gráfico abaixo. Em 2001, já havia rompido, no caso específico do governo central (Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social), a barreira dos 15% do PIB. Tudo isso projetava um futuro em que a dívida pública cresceria mais que o PIB e, em algum momento, se tornaria impagável.

Gráfico 1 – Despesa Primária do Governo Central: 1997-2014 (% do PIB)

Chegamos, então, a 2002 com um regime fiscal capenga e insustentável. A associação desse fato com a eleição de Lula para a Presidência da República desencadeou um movimento de temor sobre qual seria a política econômica do PT. O passado recente de oposição à Lei de Responsabilidade Fiscal, às reformas da previdência e a toda e qualquer medida de controle de gastos indicava que se teria um governo populista, que aceleraria o ritmo de deterioração das contas públicas. Em função desse temor, houve fuga de capitais e, mais uma vez, o país se viu em uma crise de balanço de pagamentos, sem dólares para pagar os compromissos externos do governo e das empresas privadas. A cotação do dólar ultrapassou a marca dos R$ 4,00 e  a inflação acelerou-se: nos três últimos meses de 2002 o IPCA acumulou 6,5%, equivalente a uma taxa anualizada de 29%.

Ao tomar posse em meio a forte crise econômica, o Presidente Lula surpreendeu e adotou um conjunto de medidas de ajuste fiscal que confrontava todo o discurso oposicionista do PT. Mandou para o Congresso e aprovou, ainda que de forma mitigada, uma reforma da previdência do setor privado (Emendas Constitucionais nº 41/2003 e nº 47/2005). Controlou com mão de ferro as despesas não obrigatórias e os reajustes do funcionalismo público. Manteve a escalada da carga tributária. Ou seja, intensificou o padrão de equilíbrio fiscal do governo anterior: algumas reformas, supressão do investimento público e elevação da carga tributária.

Assim como no caso do Governo FHC, não conseguiu abrir mão de políticas de alto retorno eleitoral, como os aumentos reais para o salário mínimo. Tampouco reformou o frágil processo orçamentário. O controle da despesa continuava na boca do caixa, a base de “decretos de contingenciamento”. Obteve-se alguma melhoria na qualidade do gasto público ao se reformar um conjunto de programas sociais, criando-se o Bolsa Família.

Outras reformas, fora da área fiscal, foram realizadas com o objetivo de aumentar a eficiência da economia. Destaquem-se a Lei de Falências, a introdução do sistema de crédito consignado e a melhoria das garantias em operação de crédito, facilitando a execução de garantias. Isso melhorou o ambiente de negócios e estimulou o crédito e o investimento.

Já se começava a discutir o aprofundamento das reformas fiscais, visando zerar o déficit público. Aí veio o Mensalão…

O Mensalão e o Maná que Caiu do Céu

Essa orientação de política econômica duraria pouco. Em 2005 estourou o escândalo do Mensalão e a popularidade do Presidente Lula caiu fortemente, ameaçando a sua reeleição. Para costurar uma nova rede de apoio político, o Presidente deu uma guinada na política fiscal. Os cofres públicos foram abertos e generosos aumentos de remuneração foram concedidos a praticamente todas as carreiras do funcionalismo federal. Foram ampliadas as verbas públicas destinadas à UNE, aos sindicatos e confederações de trabalhadores, às universidades, aos estados e municípios, às emendas parlamentares, às campanhas publicitárias do governo.

Tudo indicava que teríamos uma recaída fiscal e voltaríamos para o padrão de crises cíclicas. Porém um fenômeno externo veio em socorro ao Brasil. O forte crescimento da economia chinesa elevou a demanda por commodities no mercado internacional. Os preços de nossos produtos de exportação, como minério de ferro e soja, cresceram sobremaneira. Do final de 2002 até o final de 2010 o preço médio das exportações brasileiras, em dólares, subiu 146%, enquanto o das importações cresceu apenas 85%. Um “maná vindo dos céus” (ou melhor, da China) aumentou fortemente as receitas de exportações e barateou as nossas compras de produtos industrializados – produzidos, em sua maioria, na própria China.

O Brasil, assim como todos os demais exportadores de commodities do mundo e, em especial, da América Latina, passou a acumular grandes superávits comerciais. As reservas internacionais cresceram. O fantasma da crise cambial foi afastado. O aumento de renda nacional decorrente das exportações a preços elevados se traduziu em ganhos de arrecadação de tributos. A receita do Governo Federal passou a crescer a inacreditáveis 7% ao ano, em termos reais. O desemprego caiu. A criação de regimes tributários simplificados estimulou a formalização do emprego, o que contribuiu para melhoria das contas da previdência.

Paralelamente, havia um excesso de liquidez no mercado financeiro internacional. Investidores estrangeiros passaram a aplicar seus recursos nos países emergentes. O Brasil, com boas perspectivas econômicas e uma taxa de juros atraente, passou a ser destino preferencial. Essa entrada de poupança externa, somada às melhorias institucionais no mercado interno de crédito, ajudou na forte expansão dos financiamentos de imóveis e bens de consumo.

Essa lufada de boas notícias afastou o inferno astral político do Presidente Lula, que recobrou a sua popularidade e se reelegeu. O ambiente de bonança abriu espaço para que o PT finalmente adotasse os seus ideais históricos de política econômica, baseados na crença de que é possível estimular o crescimento econômico através de um governo grande, que tenha ingerência nas decisões dos agentes privados, para orientar o mercado em direção ao crescimento.

O governo tomou como sendo permanente o ganho de renda proporcionado pelo boom de commodities. Qualquer pessoa que já gastou trinta segundos olhando um gráfico da evolução histórica da cotação de commodities sabe que esse mercado se caracteriza por alternar períodos de alta e de baixa, com a transição de um para outro se dando de forma abrupta. No entanto, a crença era de que a melhoria do quadro econômico era consequência da política interna, nada tendo a ver com o presente vindo da China. Assim, não havia que temer qualquer reversão do quadro externo.

A ordem, agora, era estimular a economia, acelerando-se o gasto público. Trocou-se a equipe econômica e criou-se, em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), baseado no desarquivamento de projetos de investimento do setor público e de empresas estatais, que passaram a ter prioridade e não seriam contabilizados como despesa pública para fins de apuração do déficit público.

Esse mecanismo de não contabilizar investimentos como desepesas, para fins de apuração do déficit público, havia sido instituído anteriormente, a partir de um acordo com o FMI. Nesse acordo criou-se o Programa Piloto de Investimentos (PPI), no qual alguns projetos, previamente selecionados com base em sua qualidade e retorno econômico, ganhavam esse privilégio. A ideia era que bons projetos de infraestrutura tendem a acelerar o crescimento e, com isso, melhorar as contas fiscais no longo prazo.

Com o advento do PAC, generalizou-se a prática de retirar os investimentos do cálculo do déficit. Não importava se os projetos fossem antigos e de baixa qualidade, tampouco se teriam algum impacto econômico relevante. Subverteu-se, portanto, um mecanismo que, se fosse usado com temperança, poderia ajudar a melhorar a infraestrutura e o crescimento econômico.

Não havia foco, nem prioridade nos investimentos: tudo teria que ser feito ao mesmo tempo. Certamente o Brasil precisava ampliar seus investimentos públicos, após décadas de supressão desses gastos em nome do equilíbrio fiscal. Mas fazê-lo dessa forma dificilmente colaboraria para melhorar a eficiência da economia.

Em 2006 o Brasil foi escolhido para ser a sede da Copa do Mundo de 2014. Em 2007 candidatou-se para sediar os jogos Olímpicos. Duas empreitadas de vulto, que exigiriam fortes investimentos em arenas esportivas, previsíveis elefantes brancos de alto custo de construção e manutenção.

A primeira rodada de aumentos reais de remuneração dos servidores públicos, ocorrida em 2006, desencadeou um movimento de reivindicação por parte das carreiras inicialmente não contempladas. Houve aumentos generalizados e os servidores nunca ganharam tanto. Em 2007, os gastos primários do governo central, retratados no gráfico 1 acima, já se aproximavam dos 17% do PIB, quase dois pontos percentuais acima do nível de 2005. Mas não se via problema nisso, pois a receita estava “bombando” e a carga tributária, reforçada pelos aumentos de impostos do período 2002-2004 e pelo crescimento da base de arrecadação, já chegava a 33,2% do PIB.

Os erros de política econômica que agravaram os problemas estruturais

Em 2008 eclodiu a crise no mercado financeiro norte-americano, com a quebra do banco Lehman Brothers. A atividade econômica mundial caiu fortemente e isso, obviamente, teve consequências sobre o Brasil. No ano de 2009 o PIB brasileiro caiu 0,23%. A equipe econômica decidiu, então, que precisava fazer uma “política anticíclica”: aumentar os gastos públicos e reduzir tributos para estimular o consumo e reativar a economia.

Política anticíclica é, por definição, algo passageiro: expande-se o gasto apenas enquanto a economia está precisando de incentivos. À medida que a economia sai da crise, e a capacidade ociosa das indústrias diminui, o governo deve retirar os estímulos.

Porém, a política anticíclica aqui adotada aumentou gastos difíceis de reverter posteriormente, como, por exemplo, a remuneração do funcionalismo e o salário mínimo. E as desonerações tributárias, que poderiam ser revertidas, não o foram em função da pressão política de seus beneficiários. Tornaram-se, isso sim, definitivas, mediante a edição de uma medida provisória posteriormente convertida na Lei nº 13.043, de 2014.

Já em 2010 a economia apresentava forte crescimento, mas os estímulos fiscais não foram retirados. Na verdade, o boom de commodities continuava intenso, pois a China manteve elevado ritmo de crescimento e continuou fortemente compradora no mercado internacional, apesar da crise que afetava os EUA e a Europa.

A partir de 2011, animado com o elevado crescimento de 2010 (que nada mais foi que a recuperação da queda de 2009 e não o prenúncio de um novo patamar de crescimento), a política anticíclica transmutou-se em um conjunto de medidas que veio a ser batizado de “Nova Matriz Econômica”.

Essa “nova” política consistia em forte intervenção governamental na economia visando estimular o investimento privado e o consumo. A ideia básica era de que, havendo mais consumo, as empresas se interessariam em investir e produzir mais. Ao mesmo tempo, se os investimentos fossem incentivados e subsidiados, o ciclo se fecharia, com as empresas ampliando investimentos e produção. A taxa de crescimento se aceleraria. Não seria preciso se preocupar com equilíbrio fiscal, pois o crescimento decorrente da política de estímulos faria a receita pública crescer e fechar as contas do governo.

Também fazia parte do cardápio a redução da taxa de juros básica da economia. Considerada pelos gestores da política econômica como instrumento ineficiente de controle da inflação, ela precisaria ser reduzida para diminuir os custos financeiros das empresas e dos consumidores. A queda dos juros no mercado internacional, em função da crise financeira de 2008, parecia uma oportunidade e tanto para baixar as taxas domésticas.

Outro pressuposto da Nova Matriz era de que o governo sabia melhor do que as empresas quais seriam os bons investimentos para o país. Partia-se do pressuposto de que era preciso proteger e subsidiar as empresas nacionais, para que novos setores produtivos, escolhidos pelo governo, florescessem no país e/ou se tornassem multinacionais de sucesso. Com isso, deixaríamos de ser um simples exportador de commodities e agregaríamos valor à produção nacional.

Essa política estava baseada em diagnósticos errados. Sua pressuposição básica era de que o aumento do consumo das famílias e do governo desencadearia imediato aumento dos investimentos e, consequentemente, do crescimento econômico. Porém, entre o aumento do consumo e a ampliação da capacidade produtiva há grandes obstáculos: o país tem sérios problemas de infraestrutura; o custo do trabalho subiu muito desde o início do século (aumento do salário mínimo e redução da oferta de trabalho decorrente de mudança na composição etária da população); os trabalhadores têm baixa qualificação; fornecedores não conseguem ofertar insumos de qualidade e no prazo demandado (em função da política de proteção e exigência de conteúdo local); a justiça é lenta e o cumprimento dos contratos sistematicamente desrespeitado; há um excesso de burocracia para se abrir e gerir uma empresa; as regras trabalhistas são rígidas; as regras tributárias complexas e requerem alto custo para serem cumpridas. Ou seja, produzir no Brasil é caro, arriscado e não resulta em produtos de qualidade.

Ademais, há uma inconsistência entre aumentar o déficit público e aumentar o investimento privado ao mesmo tempo. Ambos são financiados pela poupança agregada da economia. Se o déficit público aumenta, o seu financiamento (a venda de títulos pelo Tesouro) vai absorver uma parcela maior da poupança disponível, sobrando menos recursos para financiar o investimento privado.

É verdade que podemos recorrer à poupança externa. Mas a entrada de capital externo acaba gerando um excesso de dólares na economia, valorizando o real. Quando o câmbio se valoriza, a indústria nacional fica menos competitiva em relação aos produtos importados. O aumento do consumo, em vez de estimular mais produção doméstica, vai estimular mais importações. E foi o que ocorreu. Apesar de todo discurso de incentivo ao investimento da indústria nacional, essa teve a sua participação no PIB sistematicamente encolhida nos últimos anos. Em 2010 ela estava na faixa de 15% do PIB, chegando a apenas 11% em 2014.

Não bastasse isso, é preciso reconhecer que, entre o aumento do consumo e a ampliação da produção, existe um hiato de tempo, no qual as empresas precisam constatar que o consumo subiu, acreditar que isso é permanente, tomar a decisão de investir e, finalmente, construir e começar a operar as novas unidades produtivas.

Por todos os motivos acima, apesar dos estímulos e desonerações fiscais, a indústria não conseguiu suprir a expansão do consumo. Os ganhos de renda, advindos da expansão fiscal e da bonança no comércio exterior, levaram ao aumento do consumo de bens importados, dada a incapacidade da indústria em prover bens com preço e qualidade capazes de concorrer com os produtores internacionais. Viajar a Miami, para comprar pela metade do preço, virou esporte nacional.

Ao mesmo tempo, os ganhos de renda elevaram o consumo de serviços (construção e reforma, serviços pessoais, refeições fora de casa). Como esses serviços não podem ser importados, os produtores nacionais não enfrentam concorrência externa, e o aumento de demanda elevou seus preços. Isso teve impacto sobre a inflação e sobre a competitividade da indústria: a absorção de mão de obra pelo setor de serviços aumentou os salários de equilíbrio em toda a economia, reduzindo a margem de lucro da indústria. Aumentou, também, o custo de outros serviços consumidos pela indústria, como alugueis, logística, consultoria e fretes.  Ainda que houvesse incentivo fiscal ao investimento, a menor margem de lucro e a baixa eficiência não permitiam à indústria vislumbrar oportunidades de negócios. Ademais, o crédito barato não era para todos, mas apenas para os escolhidos do Governo.

A redução da taxa Selic “na marra” levou ao descontrole da inflação. Ficou evidente mais um erro de diagnóstico: uma política monetária prudente tem sim efeito sobre a taxa de inflação. A atuação sobre os juros não se fez apenas via taxa básica. Houve determinação política para que os bancos públicos reduzissem os juros cobrados em suas operações de crédito e expandissem os seus empréstimos. A ideia era de que isso acirraria a concorrência com os bancos privados e os induziria a reduzir os juros de seus financiamentos. Na prática, os bancos privados não entraram nessa disputa. A carteira de crédito de instituições públicas, como Caixa Econômica e Banco do Brasil, se expandiu e perdeu qualidade (aumento do risco de inadimplência). O custo dessa maior inadimplência já aparece nas perdas provisionadas por esses bancos e, cedo ou tarde, virará gasto público, quando o Tesouro for chamado a fazer um aumento de capital para compensar as perdas. Criou-se um “esqueleto fiscal” a ser pago no futuro. Como, aliás, já aconteceu em diversos momentos da história do país.

O subsídio ao crédito teve sua expressão máxima nos empréstimos subsidiados do Tesouro Nacional ao BNDES, em montante que atingiu inacreditáveis 10% do PIB. A ideia, mais uma vez, era conceder crédito subsidiado a empresas e estimular o investimento. Ocorre que, para emprestar ao BNDES, o Tesouro tem que tomar emprestado dos poupadores nacionais. Afinal, o Tesouro é deficitário e não tem dinheiro sobrando para emprestar a ninguém. Ao tomar dinheiro em mercado, o Tesouro tirou a oportunidade de que aquele dinheiro fosse emprestado por outros bancos a outros tomadores. Ou seja, os créditos criados via BNDES não eram créditos novos dentro da economia. Eram simples realocações da poupança privada, em que o Governo decidiu, via BNDES, escolher quem receberia os créditos, na suposição de que o Governo tem mais capacidade que o mercado para alocar o crédito de forma eficiente.

Há pelo menos dois problemas nessa política. Primeiro, o crédito não é concedido aos melhores projetos (aqueles que têm mais chance de sucesso e de gerar crescimento econômico), mas sim aos projetos que têm maior conexão política. Segundo, o subsídio embutido no crédito aumenta o déficit público e, com isso, a pressão do Tesouro para se financiar no mercado, reduzindo a poupança disponível para financiar outros investimentos. A taxa de juros (preço da poupança disponível) sobe, prejudicando a viabilidade de todos os outros projetos que não têm acesso a juros subsidiados.

Efeito similar tiveram as diversas medidas de proteção das empresas nacionais. A cadeia produtiva de óleo e gás, por exemplo, foi submetida a crescentes exigências de compra de insumos fabricados internamente. Houve grandes estímulos para a instalação de estaleiros em território nacional. Isso se traduziu em insumos mais caros, de pior qualidade e entregues fora do prazo. E tudo isso bancado por mais subsídios públicos. Também daí decorrem baixa produtividade e redução da capacidade de crescimento.

Sempre que o Governo tenta proteger um dos elos da cadeia produtiva (por exemplo, a indústria naval), ele desprotege o elo seguinte (produção de petróleo), pelo simples fato de que obrigará esse setor a comprar insumos mais caros e piores. Não é possível proteger todos os setores da economia nacional ao mesmo tempo. A menos que importemos o modelo econômico da Coréia do Norte.

Numa demonstração de que o controle fiscal era secundário e que o importante era estimular a empresa nacional, a Lei de Licitações foi alterada, para permitir aos órgãos públicos pagar até 25% a mais nas licitações, quando o ofertante fosse empresa nacional. A aquisição de medicamentos pelo SUS deixou de ter como objetivo único atender as necessidades dos pacientes. Acoplou-se a ela uma política industrial de produção de medicamentos nacionais, mantida a base de fortes subsídios públicos, que, obviamente, consumiam recursos que poderiam ir para o atendimento final dos pacientes. Aguardemos para ver os resultados em termos da expansão da tecnologia e da capacidade nacional para produzir medicamentos…

Não menos problemática foi tentativa de induzir a Vale (empresa privada, mas com grande participação de entidades estatais) a investir no beneficiamento de minério (atividade de baixo retorno e excesso de produção internacional) em vez de se concentrar na mais lucrativa atividade de exploração e exportação de minério. A Petrobras fez uma série de maus negócios, desde compra de refinaria a preço superfaturado até construção de refinarias sem viabilidade econômica. Tudo a título de migrar da exploração de recursos naturais para atividades supostamente mais sofisticadas.

No conjunto de interferências equivocadas no processo produtivo merece destaque a mudança do marco regulatório do petróleo. A título de extrair maiores rendas de petróleo para o governo, e reduzir o lucro das petroleiras, foi proposta a mudança do regime de concessão (que vinha funcionando bem) para o regime de partilha (ver mais sobre esse tópico aqui). Aproveitou-se para estabelecer uma reserva de mercado para a Petrobrás, que seria a operadora única dos campos e sócia obrigatória, com pelo menos 30% do capital em cada campo.

A discussão do novo marco regulatório paralisou o setor. Foram quatro anos sem novas licitações para exploração de petróleo. Bilhões de reais de investimentos deixaram de ser feitos, em um período em que o preço do barril superava os US$ 100 e, portanto, as petroleiras estavam dispostas a dar lances elevados pelas concessões. Agora, com o petróleo a US$ 50, o interesse por investir nos campos (de alto custo) do pré-sal caíram bastante. Enquanto o Brasil gastava quatro anos discutindo as regras do pré-sal, o desregulamentado mercado dos Estados Unidos viu florescer o óleo de xisto, tornando-se o maior produtor de petróleo do mundo.

Ademais, a reserva de mercado concedida à Petrobrás se tornou um veneno para a empresa. Endividada, em função de inúmeros investimentos equivocados, interferência governamental e má governança decorrente de corrupção, a empresa não tem capital para participar com 30% de todo o capital da exploração do pré-sal. Por conta disso, atrasa-se ainda mais o cronograma de investimentos do setor, freando o crescimento econômico.

Ainda no setor de combustíveis, destaca-se o congelamento do preço da gasolina. A medida teve por objetivo controlar, “na marra”, a expansão da inflação, após o equívoco em se tentar controlar, “na marra”, a taxa de juros fixada pelo Banco Central. Ou seja, lançou-se mão de uma medida errada (o controle de preços), para corrigir outra medida errada (o controle dos juros). Os efeitos não se compensaram: somaram-se a amplificaram seus efeitos negativos sobre a economia. Como diz o velho ditado: um erro não justifica o outro.

De fato, a intervenção teve diversos efeitos negativos. Em primeiro lugar, arruinou as finanças da Petrobras, que foi obrigada a importar gasolina a um preço mais alto do que vendia no mercado interno (o que também prejudicou o balanço de pagamentos). Em segundo lugar, inviabilizou todo o setor de produção de etanol, que ficou menos competitivo em relação à gasolina, levando usinas à falência. Em terceiro lugar, criou uma inflação reprimida, que os agentes econômicos sabiam que iria aparecer (como de fato apareceu) em 2015, no momento em que se permitisse um reajuste corretivo dos preços: as expectativas inflacionárias ficaram mais rígidas, exigindo política monetária mais restritiva.

A expressão mais evidente do fracasso do novo marco regulatório do petróleo foi o leilão do megacampo de Libra, em 2013. Com reservas estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris, o maior campo já licitado no Brasil e um dos maiores do mundo obteve o interesse de apenas um consórcio, que o arrematou pelo preço mínimo. O que gerou esse resultado pífio foram as regras de exploração, que espantaram os potenciais investidores.

No setor elétrico, a intervenção do governo não foi mais feliz. Às vésperas de um período seco, com os reservatórios das hidrelétricas em nível crítico, foi decretada uma redução de tarifas de energia. Estimulou-se o consumo quando se sabia que a oferta não daria conta de maior demanda. O risco de racionamento elevou-se e só não se concretizou porque a economia entrou em recessão e o consumo caiu. Mas não escapamos de uma correção de preços que, em poucos meses, aumentou em 50% a tarifa de energia.

O desarranjo no setor elétrico foi além do problema das tarifas. Uma medida provisória (MP 579) buscou induzir as geradoras de energia a dar desconto no valor da energia produzida. Para tanto, prometia a renovação antecipada das concessões que estavam para vencer nos próximos anos. As geradoras ligadas à Eletrobrás foram induzidas a aceitar o acordo e tiveram perdas de receitas (criando mais “esqueleto fiscal” a ser transferido para o Tesouro no futuro). Outras importantes geradoras não aceitaram o acordo. O seu suprimento de energia deixou de ser vendido em contratos de longo prazo, a crise de abastecimento se agravou e os preços explodiram. Para quem desejava reduzir o custo da energia, o governo conseguiu um belo resultado, porém com o sinal trocado!

A tão necessária recuperação da infraestrutura não escapou do equivocado pressuposto de que o governo conhece e pode mais que as empresas e o mercado. Ao mesmo tempo em que ofereceu ao setor privado a oportunidade de construir e administrar concessões de estradas e aeroportos, o governo decidiu tabelar o lucro máximo que essas empresa poderiam obter. A ideia era fornecer infraestrutura barata para que os usuários pudessem deslocar sua produção a baixo custo e as famílias não fossem oneradas pelos custos de pedágio. Ocorre que esse tabelamento de lucros atraiu empresas de baixa qualidade para a gestão das estradas, inviabilizou a concessão de outras tantas rodovias e diminuiu a concorrência nas concessões aeroportuárias.

Ainda no setor aeroportuário, a insistência em manter forte intervenção governamental, por meio da participação da Infraero como sócia de todos os consórcios, reduziu a agilidade dos consórcios administradores e onerou o erário, uma vez que a Infraero tem que participar com 49% (sua participação no negócio) de todo o custo de investimento na reformulação e ampliação dos aeroportos.

Outra conta que foi jogada para o contribuinte, no âmbito das concessões, foi o subsídio creditício dado nos financiamentos aos consórcios vencedores. Para que a tarifa aos usuários não fosse elevada, dava-se crédito barato aos concessionários. Ou seja, a conta que o usuário dos serviços (eletricidade, rodovias e aeroportos) não pagava, era repassada ao contribuinte. Mais despesa pública em um país com as contas estressadas.

Não menos desastrada foi a política de desoneração da mão de obra. Com o intuito de reduzir os custos das empresas, substituiu-se a base de cálculo da contribuição para a previdência social. Em vez de se calcular a tributação com base na remuneração de cada empregado, passou-se a calculá-la com base no faturamento das empresas. O resultado imediato foi a indução de contratação de mais mão de obra, pois agora a inclusão de mais empregados na firma não aumentava o custo de contribuição previdenciária. Para um mesmo nível de faturamento, não importava se a empresa tinha 10 ou 100 funcionários, a contribuição seria a mesma. Mas isso foi feito em um momento em que o país estava em pleno emprego. Estimular a contratação em uma situação como essa significa induzir aumentos de salários, pois a demanda por mão de obra cresce e a oferta de mão de obra não acompanha, pois há poucos desempregados buscando colocação. Em vez de reduzir custo das empresas, a medida representou aumento salarial: mais uma estocada na capacidade competitiva das empresas frente aos concorrentes externos, que também gerou perdas substanciais de arrecadação tributária.   (em outro artigo há mais detalhes sobre isso).

A falsa sensação de que o Brasil estava engrenando um longo período de crescimento (criada pela renda extra vinda de fora, sob a forma de altos preços e alta demanda por commodities e pelo dinheiro barato circulando no mercado financeiro internacional) levou a grande relaxamento da política fiscal. Um país que, como vimos, permaneceu por  décadas na corda bamba do déficit, equilibrando-se à base de aumento de carga tributária e cortes de investimentos, de repente descobriu-se sem restrições fiscais. Na educação, por exemplo, os gastos federais aumentaram de R$ 14 bilhões em 2004 para R$ 94 bilhões em 2014: um crescimento real de 294%! (mais sobre esses números aqui)

Como um contágio da baixa responsabilidade fiscal, o Governo Federal passou a estimular os estados e municípios a se endividar. Estes aproveitaram a oportunidade para expandir suas folhas de pagamento.

Em suma, houve uma primeira guinada de política econômica em 2005-2006, motivada pelo Mensalão e custeada pelo boom de commodities. Em seguida estabeleceu-se uma política de expansão fiscal com o pretexto de se fazer política anticíclica, posteriormente transformada em “Nova Matriz Econômica”. Tal “matriz”, além de aprofundar a lassidão fiscal, introduziu novos elementos que prejudicariam o bom funcionamento da economia e sua capacidade de crescimento: escolha pelo governo dos setores a serem estimulados, proteção a empresas nacionais ineficientes, interferência na estratégia de investimento das grandes empresas, congelamento de preços de insumos básicos (energia elétrica e gasolina), relaxamento da política monetária, paralisia das licitações de campos de petróleo, elevação do risco de racionamento de energia elétrica e aumento do risco regulatório (a hiperatividade do governo, interferindo em vários mercados, tornava as empresas receosas de investir).

Esses efeitos negativos, contudo, não foram sentidos de imediato. O aumento da renda real, o baixo desemprego, a expansão do consumo ajudada pelo crédito barato, as estatísticas de redução da pobreza e da desigualdade, tudo isso fazia a população crer que seu nível de vida havia mudado definitivamente para melhor.

Como uma cigarra feliz, o Governo Federal estimulou os brasileiros a consumir com vontade toda a renda extra que veio dos ganhos do boom de commodities e do crédito barato vindo do exterior. Impossível não chamar a Nova Matriz Econômica pelo seu nome verdadeiro: “populismo”.

Em 2013 a maré baixou e os problemas começaram a aparecer

Em 2013 o ritmo de crescimento da economia chinesa começou a diminuir. Os mercados de commodities esfriaram. A atividade econômica no Brasil sentiu o baque e os problemas acumulados com os erros da nova matriz, somados à nossa histórica fragilidade fiscal e aos demais problemas estruturais, passaram a cobrar seu preço: o nível de endividamento dos consumidores brecou a expansão do consumo; a escalada da inflação corroeu a renda; acabou o dinheiro que estava bancando o crescimento  insustentável dos gastos primários; os subsídios creditícios dados pelo Tesouro elevaram a dívida bruta e o seu custo; a queda do preço do petróleo somou-se aos escândalos de corrupção e ao previsível fracasso dos produtores nacionais de equipamentos de exploração, colocando a Petrobras na berlinda; as expectativas se deterioraram; as desonerações fiscais ajudaram a derrubar a receita pública e ampliaram o déficit.

O governo passou a maquiar as contas para esconder o déficit, deteriorando ainda mais a confiança e as expectativas dos agentes econômicos em relação à consistência da política econômica. O gráfico abaixo mostra como o resultado primário despencou em 2014. Isso sinaliza para um rápido crescimento da dívida pública e descontrole da inflação.

Gráfico 2 – Resultado Primário do Governo Federal


O Banco Central, que perdeu credibilidade ao baixar os juros e deixar a inflação escapar da meta, está se defrontando com taxas na casa de 10% ao ano. Para recobrar a credibilidade e fazer as pessoas acreditarem que pretende trazer a inflação de volta para a meta de 4,5% ao ano, ele precisa “comprar credibilidade”, e o faz com uma elevação de juros bem mais forte do que a que seria necessária caso os agentes econômicos não tivessem perdido a fé nas intenções da Autoridade Monetária. A recessão necessária para colocar os preços nos eixos terá que ser maior.

Diversos programas públicos estão sendo reduzidos ou extintos pela simples falta de dinheiro. Vedetes da propaganda oficial, como Fies, Pronatec, Minha Casa Minha Vida, Minha Casa Melhor e Ciência sem Fronteira estão encolhendo. Mas os desafios fiscais não param. A elevação da inflação fará com que os reajustes futuros do salário mínimo, corrigidos pelos índices passados mais o crescimento real do PIB, sejam altos, realimentando os gastos públicos e a pressão sobre as empresas.

Apesar da evidente crise fiscal, sucessivos aumentos de gastos presentes e futuros têm sido aprovados, com destaque para a meta de se gastar 10% do PIB na área de educação, a fixação de um piso para o gasto em saúde equivalente a 15% da receita corrente líquida da União, a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares ao orçamento, a substituição do fator previdenciário por critérios mais frouxos de acesso a aposentadorias.

A sociedade brasileira e as lideranças políticas parecem ter se acostumado com os anos recentes, em que a receita pública crescia a 7% ao ano, e não conseguem se adaptar à nova realidade, em que a receita está caindo em termos reais.

As agências de avaliação de risco já sinalizaram o iminente rebaixamento da nota de crédito do país. Esse rebaixamento iminente já está expresso nas elevadas taxas de juros cobrados de empresas e governos brasileiros que buscam crédito no exterior. Quando consumado, o rebaixamento fechará o acesso do país a recursos de fundos de investimento internacionais, cujos estatutos proíbem investimentos em países sem qualificação de crédito. A tendência será a desvalorização adicional do real, mais pressão inflacionária e maior dificuldade para equilibrar o balanço de pagamentos.

Só não vamos para uma crise clássica, de falta de liquidez para pagar nossos compromissos externos, porque acumulamos mais de US$ 350 bilhões em reservas internacionais. Entretanto, o uso extensivo de swaps cambiais está aumentando a exposição do governo ao risco cambial, bem como o custo de manutenção das reservas. Em um cenário de stress, o Banco Central pode ser obrigado a vender parte substancial das reservas, aproximando-nos de uma clássica crise de balanço de pagamentos.

Como toda política populista, a “nova matriz” era inconsistente e termina em crise. Tivemos a oportunidade de usar o período do boom de commodities para fazer reformas fiscais e regulatórias que removeriam fragilidades e entraves ao crescimento da economia. Preferimos a fórmula fácil de torrar a renda extra pela via do gasto público em políticas questionáveis ou de eficiência não comprovada, além de multiplicar o crédito subsidiado.

Temos problemas estruturais, que vêm de longe e precedem a política econômica dos últimos oito anos. Mas esta, sem dúvida, agravou em muito os fundamentos da economia brasileira.

Feita essa longa digressão, estamos em condições de discutir indagações que frequentemente surgem nesse momento de crise e de mudança de rota da política econômica. No próximo post será apresentado um F.A.Q. da crise.



O autor agradece os comentários de Alexandre Rocha, Paulo Springer de Freitas e Pedro Fernando Nery, isentando-os de responsabilidade por erros eventualmente contidos no texto.

Marcos Mendes
Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Editor de Brasil, Economia e Governo. Autor de "Por que o Brasil cresce pouco? Desigualdade, democracia e baixo crescimento no país do futuro". Ed. Elsevier.