Os massacres de
presos no Amazonas e em Roraima neste início de 2017 revelaram o despreparo e a
desarticulação do Estado para lidar com a crise do sistema carcerário e deram o
start no jogo de empurra que marca, invariavelmente, a busca por responsabilidades.
O ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que instituiu os mutirões
carcerários no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), avalia o desempenho e os
desencontros dos poderes no enfrentamento das crises recorrentes no sistema
prisional.
'Isso mostra que as
autoridades como um todo não estão preparadas para lidar com o tema, embora o
assunto esteja presente e se saiba que essa crise é permanente', afirmou o
ministro em entrevista ao JOTA.
Enquanto o Estado
demonstra sua inabilidade, organizações criminosas e facções se articulam. 'A
desorganização do Estado abre espaço para o crescimento de organizações
criminosas e facções dentro dos presídios', acrescentou.
A responsabilidade,
enfatiza o ministro, deve ser assumida por todos: 'Problema grande é problema
de todos. Não adianta fingir que filho feio é do outro'.
Leia abaixo a
entrevista na íntegra.
Por quais caminhos passam a solução ou mitigação dos
problemas do sistema carcerário brasileiro?
Primeiro: esse tema
tem que ser colocado na agenda. Temos que reconhecer que ele existe. E não é um
problema que pode ser tratado de forma isolada. Toda essa questão vem se
tornando mais complexa e ela não pode ser dissociada do tema da segurança
pública. As gangues e as organizações criminosas, com toda a sua capacidade de
articulação, como se viu nos últimos tempos, exige que o tema seja tratado no
âmbito da segurança pública. Aqui percebemos que é um terreno meio que de
ninguém. Há essa disputa: a União não tem competências específicas para segurança
pública; ao mesmo tempo é a União que legisla sobre direito penal, direito
processual penal, execução penal, é a União que tem a incumbência de fiscalizar
as fronteiras que é por onde passa droga, passa arma. Aí há sempre esse jogo:
'a responsabilidade é do Estado porque a Constituição assim o disse.
Os Estados
obviamente dispõem de condições menores de fazer esse enfrentamento
especialmente do crime internacional, do crime mais organizado, do crime
interestadual (hoje se organiza uma operação de repressão no Rio de Janeiro e
eles fogem para o Espírito Santo). Isso já exige uma atuação mais coordenada do
ponto de vista federal. Em suma: esse terreno de ninguém é propício para que
tenhamos um quadro em que o Estado se mostra desorganizado e o crime vai se organizando.
Portanto, isso exige que o tema seja colocado na agenda e que seja tratado
dessa maneira global, holística.
E os poderes, como têm atuado?
Há também esse bate
cabeça. O Judiciário costuma dizer que não tem nada a ver com o problema dos
presídios. Como não tem nada a ver se cabe ao juiz inspecionar a execução
penal? Além do que, só ele manda prender e soltar. Se temos essa massa de
presos provisórios hoje de quase 50% da população carcerária, é porque o
Judiciário mandou prender e não conseguiu condenar ou absolver. Então, a
responsabilidade do Judiciário é imensa. Ao mesmo tempo, parece um mundo de
fantasia. Eu vi a informação de que o procurador-geral da República (em
exercício) pediu informação ao Ministério da Justiça sobre os presídios. Ora,
eles têm o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). É função do
Ministério Público fiscalizar os presídios. Parece um mundo de estrangeiros. É
cada qual querendo imputar responsabilidade ao outro. É a primeira coisa que se
tem que fazer: reconhecer que o problema existe e tentar definir
responsabilidades. No final da minha gestão, no CNJ, lançamos a Estratégia
Nacional de Segurança Pública, que era uma tentativa de estabelecer
responsabilidades, como fazer com que os inquéritos fossem instaurados e
terminassem, fazer com que a denúncia fosse oferecida e que fosse julgada. Tudo
isso precisa ser organizado.
Como o senhor vê a necessidade ainda hoje de se fazer
um censo para saber o número de presos?
Falar em censo é
algo chocante. Não sabemos quem está preso?!
Os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional
são de 2014. É impossível pensar uma política pública sem dados, não é?
Pois é. E o que
estão fazendo esses órgãos aí – CNJ e CNMP? Eles custam caro. Certamente custam
mais de R$ 100 milhões por ano. Nós somos o país que faz as eleições mais
céleres do mundo. Nós temos capacidade para isso. Não somos um país de
botocudos. E não conseguimos minimamente fazer uma organização! É no mínimo
negligência e muito relaxamento.
O senhor considera necessária a revisão da lei de
drogas para reduzir a superlotação nos presídios?
Não sei se
alteração. É claro que se fizermos descriminalização do uso não poderemos fazer
isso dissociado do tratamento dessas pessoas. Esse é o modelo português, que
vem se mostrando exitoso. Mas não podemos nos esquecer de que Portugal é um
país de 10 milhões de habitantes. Isso corresponde a uma cidade brasileira. Por
outro lado, há um problema sério que é a ausência de paradigmas confiáveis.
Cada juiz decide de um jeito. Sequer a legislação é trabalhada numa
perspectiva, não de uma hermenêutica única, mas de uma hermenêutica com alguma
coerência. O que acontece? A lei veio para atenuar o tratamento penal daquele
pequeno traficante, para o usuário que também se faz traficante. Mas em vez de
aliviar a situação houve um recrudescimento do tratamento penal, porque o
sistema não estava preparado para isso. Fez-se a legislação, mas não se
preparou quem ia executar. É aquela falta de comunicação com os russos. O
Ministério Público e o juiz não foram avisados que o sistema mudou e continuam
interpretando a lei com os olhos no retrovisor. Por outro lado, não há política
pública. O Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde não coordenaram esse
processo. E o juiz do interior, o que ele faz? Manda prender, como sempre fez.
Essa modificação
tinha que ser mais no plano da execução do que no plano da legislação. A mim me
parece que talvez possa ter que alterar a lei, mas ela não precisa ser radical.
Minha percepção não é somente em relação à política de drogas apenas, mas em
relação a qualquer política criminal. Às vezes o Congresso aprova uma lei, mas
não acompanha a execução. Eu já sugeri que o CNJ criasse um processo de
treinamento para que os juízes se atualizassem. Num caso como esse, de política
de drogas, não houve acompanhamento da execução da lei. Precisamos nos
articular para não ficarmos só no discurso. Os alemães chamam isso de 'discurso
de domingo': você fala uma coisa no domingo e na segunda já não tem mais
compromisso com o que falou. A gente tem que coordenar essas ações.
O senhor concorda com a tese, baseada inclusive em
números, de que há uma cultura superencarceradora no Brasil? E como mudar essa
cultura?
Tenho impressão de
que sim, tanto é que um dos trabalhos que fizemos na minha gestão no CNJ foi
das medidas alternativas à prisão, o célebre artigo 319 do Código de Processo
Penal. Mas repito: é preciso que, quando se adota uma nova política criminal
como esta, conscientize os agentes que vão aplicar a lei que existe uma nova
política e que se dê instrumentos para isso. Por outro lado, lança-se uma nova
legislação como essa, cujo cerne é dar alternativas à prisão preventiva, e que
tem como mecanismo tecnológico básico as tornozeleiras eletrônicas. Mas os
Estados, pasmemo-nos todos, não têm as tornozeleiras eletrônicas! Então, como o
juiz vai aplicar essa nova política?
Nós temos um modelo
que, ao fim e ao cabo, se revela esquizofrênico. Nós fazemos a lei, apostando
no seu simbolismo, mas não pensamos a aplicação.
Como o senhor vê o argumento de que a responsabilidade
maior é dos Estados?
Esse discurso foi
muito bom ao longo dos anos para a União, porque ela ficou numa doce
irresponsabilidade. Nesse sentido, faça-se justiça agora ao governo Temer. O
governo admitiu o problema, colocou-o na agenda e assumiu a responsabilidade da
sua parte. Mas ao longo dos anos esse foi sempre o discurso: 'ah, esse tema a
Constituição diz que é dos Eestados'. E essa tese ignora que a União tem uma
série de responsabilidades. É a União que tem o exército, que tem a Polícia
Federal….
Mas, no começo, as
reações do governo Temer flertaram com essa tese de que o problema era do
Estado. Porque essa tese é muito atrativa, porque normativamente é sustentável,
mas é ilusória. Toda a questão de combate ao crime organizado é de
responsabilidade da União: crime interestadual, tráfico, questão das fronteiras
A ministra Cármen
Lúcia assumiu o CNJ no ano passado, mas ainda não temos uma política clara
sobre sistema carcerário. Qual deveria ser a participação do CNJ, fosse na
gestão que fosse, neste problema carcerário?
Essa é uma das
funções centrais do CNJ. Porque essa é uma função central do próprio Judiciário
no que diz respeito à segurança pública. Como percebemos, este tema ao longo
dos anos foi negligenciado. O que se imaginava era que o Judiciário nada tinha
a ver com o sistema carcerário, porque seria da gestão do Executivo. Não é
verdade isso, afinal só há presos porque o juiz determina que uma pessoa seja
presa. Nós percebemos que os juízes não conseguem julgar em tempo adequado. Por
isso temos também a superlotação. Então, quem pensar em falar de sistema amplo
de segurança pública não pode deixar de falar de Judiciário e do Ministério
Público.
Todas essas falhas
que temos hoje no sistema resultam da participação ou da falta de participação
do Judiciário. Por isso o papel do CNJ é importante. Por isso que se deu ao CNJ
a competência de monitorar o sistema carcerário.
O senhor fala do Departamento de Monitoramento e
Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF), que é do CNJ?
Isso. O
departamento deve monitorar o coordenar esse trabalho que já está na legislação
de que o juiz tem que supervisionar a execução penal, de que ele é o responsável.
Então, me parece que essa é uma das tarefas fundamentais do CNJ no sentido de
executar uma boa política nesse campo prisional. E isso tem sido negligenciado.
Há ações imediatas que podiam ser feitas, como mutirões carcerários, e temos
questões de médio e longo prazos. O Supremo, por exemplo, numa questão que
estava sob minha relatoria, determinou que houvesse o cadastramento nacional de
presos para saber em que estágio cada qual está e para que se possa acompanhar
a execução penal. Isso não é difícil de fazer, mas exige a participação de
todos os governos, do CNJ e CNMP. Por isso, creio que devemos resgatar a ideia
do CNJ e do CNMP como órgãos de formulação e também de execução de políticas
públicas de caráter judicial.
Neste caso ainda, ministro, há uma questão de fundo. O
CNJ é órgão formulador, mas a cada dois anos muda de presidente e muda
completamente sua diretriz. É como se o CNJ se confundisse com o rei que o
governa. Com isso, não há política definida, de longo prazo do Conselho para
este e tantos outros pontos. Como resolver isso?
Por isso eu tenho
falado que é preciso melhorar a indicação dos conselheiros. É preciso mandar
gente com maior densidade para o CNJ. O Conselho é órgão de composição
assimétrica. O presidente do CNJ é presidente do Supremo. O corregedor é futuro
presidente do Superior Tribunal de Justiça. E depois vem aí outros e, nos
tempos atuais, temos os 'famosos quem'. Veja as candidaturas que aparecem. Elas
mostram que o órgão entrou numa decadência muito precoce. Câmara e Senado mesmo
começaram a indicar pessoas com pouca representatividade. O que faz com que se
dê maior força para a posição do presidente do Supremo, que já indica o
representante do STF no Conselho e, muitas vezes, indica delegados seus,
pessoas que serão seus títeres, e também influencia na indicação de outros
tribunais. Então tem-se uma composição dócil ao presidente. Talvez tenhamos de
discutir isso. Mas é preciso que a própria sociedade acompanhe isso.
Recentemente estive na Câmara, onde os deputados querem discutir forma de
indicação para o Supremo, e perguntei se estavam satisfeitos com as indicações
que fizeram para o Tribunal de Contas da União e para o CNJ. Eu disse a eles
que parecem ter indicado pessoas (para o CNJ) apenas para tirar selfies com o
presidente.
Como o senhor vê o CNJ hoje?
Virou um órgão
corporativo, que aprova questões de vencimentos para os juízes. Isso até irou
tradição no CNMP, mas o CNJ havia passado ao largo disso. Mas agora também
virou isso.
Por quê?
Pela visão dos
presidentes que passaram pela CNJ. Alguns não dedicaram atenção ao CNJ. Outros
tinham visão de que era preciso acabar com o Conselho. O lamentável é ver o
potencial do CNJ e de sua legitimidade e ver quão pouco ele faz.
Passados quatro meses de gestão, a ministra Cármen
Lúcia não indicou um novo diretor para o DMF.
Pois é. Isso
precisa ser tratado. A sociedade precisa acompanhar o CNJ, a imprensa precisa
cobrar e mostrar os problemas.
O que revelam as declarações desastradas – para dizer o
mínimo – de agentes públicos após o massacre do Amazonas? Como interpretar
aquele jogo de empurra de responsabilidades?
Mostra que as
autoridades como um todo não estão preparadas para lidar com o tema, embora o
tema esteja presente e se saiba que essa crise é permanente. Esse tema tem sido
negligenciado ao longo dos anos por ser complexo, por ser de difícil
encaminhamento, porque exige uma engenharia política que outros temas não
exigem. É um tema que exige concertação do Legislativo, Executivo, Judiciário,
do MP e dos Estados. É complexo. Mas é um dos temas mais vitais para a
população, pois diz respeito à segurança pública. Eu tenho a impressão de que
as autoridades queriam que este tema não existisse. O problema existe e sempre
se coloca. As autoridades não estão preparadas para lidar com o tema. Elas não
se prepararam no momento de entressafra para trabalhar a questão. Não é preciso
ser advertido de que pode acontecer uma tragédia dessa nalgum presídio. Não é
preciso! Porque a tragédia vai ocorrer. Sem dúvida! E não adianta mais ficar
com o jogo de empurra. Problema grande é problema de todos. Não adianta fingir
que filho feio é do outro. Não quer enfrentar o problema? Não assuma a função
pública!
As declarações do secretário de Juventude do governo federal–
de que deveria ter um massacre por semana nos presídios – não parece descolada
do que vemos, ouvimos e lemos nas redes sociais. Eu queria que o senhor
explicasse para o cidadão comum didaticamente por que o Estado tem que proteger
os presos.
Essa é uma premissa
básica do próprio Estado de Direito. O preso perdeu o direito à liberdade. Não
perdeu outros direitos. A própria Constituição define quais são os direitos do
preso. Por outro lado, a premissa básica do próprio sistema repressivo é a
ideia de ressocialização e reeducação. Se olharmos de forma geral, os países
que chegaram a índices de criminalidade aceitável, os governos conseguiram isso
porque cumpriram esse princípio de ressocialização e reeducação. No Brasil, os
processos de ressocialização são vistos como coisas 'dos caras de política de
direitos humanos, que não pensam nas vítimas'. É o contrário. Política de
ressocialização, que aposta na não reiteração de crimes, é política de
segurança pública. Não é, como alguns veem, uma política piegas de direitos
humanos, é uma política de segurança pública. É preciso passar isso para a
população.
No CNJ, fizemos uma
pesquisa sobre o que a população pensava dos presídios, o que queria dos
presos. Chegou-se ao resultado de que a população não queria necessariamente
que o preso fosse morto, mas que ele desaparecesse, que ele fosse enviado para
Marte. A manifestação desse secretário revela esse pensamento geral.
Falta a percepção
também sobre o risco de reincidência.
Nós temos um dos
maiores índices de fracasso: a reincidência está entre 70 e 80% se os dados
foram confiáveis. Então, o sistema se realimenta. É preciso dar tratamento
digno ao preso para permitir a ressocialização tal como almejada pela
Constituição.
O senhor proferiu um voto muito categórico no ano
passado dizendo que o governo não poderia contingenciar o Funpen. No final do
ano passado, o governo Temer liberou os recursos, mas a Medida Provisória
permite o uso do dinheiro para gastos com custeio e despesas com segurança
pública, portanto fora do sistema penitenciário. O que pensa disso?
Aqui há uma série
de problemas. Sabemos da dificuldade para se construir presídios. É preciso
destravar esse sistema. As pessoas não querem presídios. Os governadores não
querem construir, porque manter um presídio custa o mesmo valor gasto para a
construção. É extremamente caro. Eu não sei, até, se não seria o caso de pensar
em ter um grande presídio federal para cada Estado, caminhar para uma
semifederalização do sistema. Usar o Funpen para compra de tornozeleiras é
razoável, porque você evita a entrada de novas pessoas no sistema carcerário.
Agora, as outras discussões são necessárias. Daqui a pouco se está usando o
recurso do Funpen para outras finalidades e distorcendo o sistema.
E o espaço aberto para facções e grupos criminosos por
essa desarticulação do Estado em relação ao sistema carcerário?
Enorme…É
supreendente que tudo isso ocorra. Se pensássemos o sistema prisional de
maneira global, pensando que no presídio deveria ter chance de aprendizado,
educação profissional, seria mais difícil para as organizações criminosas se
enraizarem como se enraízam. O preso seria menos dependente desse poderio das
fações. Mas o sistema é absolutamente negligenciado. E as organizações
criminosas se articularam, inclusive para se defender inicialmente. A partir
daí passaram a ajudar os presos com assistência jurídica. Veja: nós temos uma
deficiente assistência jurídica para essas pessoas. Nós só temos 5 mil
defensores públicos no Brasil. Em geral, a família faz de tudo para pagar um
advogado, mas caem nas mãos de advogados pouco hábeis ou pouco interessados.
Que solução daria para isso?
A ideia de
advocacia voluntária deveria ser revisitada neste momento. O grande número de
bacharéis em Direito no Brasil poderia ajudar nesse trabalho. A assistência
jurídica que não é dada pelo Estado, é dado pelas organizações criminosas.
Penso que é preciso discutir isso com o Ministério da Educação. Talvez pensar
numa forma de um estágio, de pensar numa forma de dar crédito para o estudante
que participa desses serviços.
Por Felipe Recondo,
no Jota/SP
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