domingo, 20 de novembro de 2016

Contadores temem efeitos de 'delação


Os contadores estão em polvorosa diante de uma nova norma internacional de conduta profissional que entra em vigor a partir de julho do ano que vem na maior parte dos países.
Embora a norma tenha sido editada em julho deste ano, depois de seis anos em discussão, foi uma nota sobre o tema publicada no Valor na semana passada - e que teve mais de 15 mil compartilhamentos nas redes sociais - que acordou a classe contábil e as empresas para um assunto que já estava ocupando a agenda dos líderes da profissão no país. Ao todo, são 530 mil profissionais da área no Brasil.
Na teoria, a tarefa parece simples. Diz a norma: quando souber de algum descumprimento relevante de lei ou regulamento em uma empresa para qual preste serviço, e que comprometa o interesse público, o contador deve denunciar o fato às autoridades, caso a própria companhia não tome providências.
Novo código de ética da profissão permite quebra de sigilo em caso de descumprimento de lei ou regulamento
É a postura que se espera de qualquer pessoa. E que agora será incorporada ao código de ética dos contadores, que deixam de ser obrigados a guardar sigilo sobre ilegalidades cometidas pelos clientes ou pelas empresas nas quais sejam empregados.
Mas nada como a vida real para mostrar que até mesmo as boas causas podem ser de difícil aplicação - não por falta de vontade dos profissionais, mas diante dos riscos que isso representa.
Os contadores, especialmente aqueles que trabalham internamente nas empresas, estão temendo as consequências que podem sofrer se e quando fizerem denúncias do tipo. Consequências essas que poderiam ser não apenas financeiras, em caso de perda do emprego, como também no que diz respeito à própria integridade física.
Neste momento, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), que é o órgão que responsável que regulamenta a profissão no Brasil, e o Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon) vêm iniciando o debate com reguladores e entidades locais, bem como consultando advogados, para saber como - e até se é possível - aplicar a norma no país sem mudança na legislação.
"Estamos neste momento traduzindo a norma e checando as diferenças em relação à legislação local", afirma Idésio Coelho, presidente do Ibracon.
Ontem estava agendada uma reunião com a Comissão de Valores Mobiliários e outra com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Amanhã, haverá um evento pequeno na sede do Ibracon, em São Paulo, do qual participarão representantes da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) e da Apimec (associação que reúne analistas de mercado e investidores).
Devem ser chamados para futuras conversas, entre outros órgãos, a Receita Federal, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e o Ministério da Transparência - até porque a norma profissional também se aplica a contadores que atuam no setor público.
Desde 2014, escritórios de contabilidade que prestam serviços externamente para empresas, e também os auditores independentes, já são obrigados a reportar transações suspeitas de lavagem de dinheiro ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
O que a norma internacional traz de novo é ampliar bastante o escopo das ilegalidades ou suspeitas de ilegalidade que devem ser reportadas - como pagamento de propina, evasão fiscal e descumprimento de regras ambientais, por exemplo - e também a inclusão dos contadores empregados por empresas entre aqueles que devem fazer as denúncias.
Outra diferença clara é que a comunicação ao Coaf é requerida pela lei federal 12.283, que dá segurança jurídica e prevê sigilo sobre o denunciante.
Já a norma de conduta, a princípio, viria apenas por resolução do Conselho Federal.
É esse tipo de amparo legal, que tem a regra do Coaf, que os contadores gostariam de ter para que a nova versão do código de ética seja adotada em sua plenitude no Brasil, afirma Zulmir Breda, vice-presidente técnico do CFC. "Temos que debater que tipo de proteção jurídica haverá. Não podemos colocar o contador em posição de risco", diz ele.
Breda reforça que a o CFC reconhece a norma como de elevado interesse público, mas entende que o ambiente para sua aplicação precisa ser adequado, até mesmo para que ela não vire letra morta, caso os contadores não se sintam seguros para reportar. "O CFC não é contra. A norma é boa para o país. Mas precisamos lidar com a realidade do Brasil e sem isso [mudança de lei e mecanismos de proteção ao contador] fica difícil implementar na prática", afirma.
O Ibracon reconhece que a norma é mais fácil para ser cumprida por firmas de auditoria externa de grande porte, que já são obrigadas a fazer comunicações semelhantes a CVM, Banco Central e Securities and Exchange Commission (SEC) em casos específicos (mas não tão abrangentes como os previsto na nova norma), do que por um contador pessoa física que trabalha na própria empresa denunciada.
Mas a entidade também compartilha da visão de que é preciso mexer na legislação para implementação plena da norma no Brasil. "Se não houver proteção legal, o contador corre o risco de ser processado e até de ameaça física", afirma Coelho.
O presidente do Ibracon destaca ainda que, se houver o entendimento de a lei precisa mudar para o código ser aplicado, os contadores locais não poderão ser acusados de descumprir a regra.
O grego Stavros Thomadakis, presidente do órgão internacional que edita as normas éticas da profissão contábil (Iesba, na sigla em inglês), esteve em Brasília nesta semana, exatamente para esclarecer dúvidas sobre a nova norma. Ao todo, 104 países devem adotar a regra a partir de julho do ano que vem, sendo que 20 já incorporaram ao menos parte do texto à legislação.
Em entrevista ao Valor, ele defendeu que a norma é "equilibrada" e argumenta que o próprio texto já diz que o contador deve considerar o ambiente e os riscos no processo de tomada de decisão sobre reportar ou não uma não-conformidade às autoridades. "O Brasil não está sozinho com essa preocupação. E a norma não está acima da lei local", enfatizou Thomadakis.
Entre os pontos que devem ser levados em conta estão a avaliação sobre a gravidade e impacto no interesse público do problema identificado, seja para a sobrevivência da própria empresa (em caso de descoberta do problema) ou para a comunidade, como na venda de produtos que causem danos à saúde da população, por exemplo.
Thomadakis chama atenção ainda para o fato de que o comando da norma é para o contador reportar primeiro à administração da empresa ou para os órgãos de governança da entidade. E somente quando não houver resposta apropriada que deve se considerar romper o contrato, em caso de prestador de serviço externo ou auditor, e também de denúncia às autoridades.
No caso da aplicação no Brasil, caberia ao Conselho Federal de Contabilidade especificar quais seriam os órgãos que receberiam as denúncias. cada país tem uma estrutura de controle. Mas o que se sugere é que irregularidades fiscais sejam informadas à Receita, que descumprimentos de leis ambientais ao órgão responsável pela área e assim por diante.
A norma tampouco prevê quais seriam as sanções impostas aos contadores que não seguirem as regras, como suspensão ou perda de registro, embora se presuma que cada regulador local estabeleça as penas, segundo Thomadakis.
Ainda a norma preveja a possibilidade de não se fazer a denúncia, o presidente da Iesba lembra que ela requer, nos dois casos, que todo o processo de decisão seja documentado pelo profissional.

Por Fernando Torres, em Valor Econômico 
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