segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Teoria dos Contratos, incentivos e o Prêmio Nobel de Economia de 2016: Contribuições de Bengt Holmström e Oliver Hart


Diz a lenda que o Bar Beirute, inaugurado em Brasília em 1966, se encontrava à beira da falência no ano de 1970. Quando seus proprietários Youssef Sarkis Maaraouri e Youssef Sarkis Kaawai consideravam fechar as portas do estabelecimento, dois garçons cearenses que lá trabalhavam, Bartô e Chico, teriam convencido os donos a lhes vender o negócio, que hoje é considerado um dos restaurantes mais tradicionais da cidade…
Há alguns anos, ao concluir uma aula no Departamento de Economia da UnB, uma aluna me abordou com um grupo de colegas dizendo: “Professor, estamos estudando em grupo para o concurso ANPEC [para ingresso na pós-graduação em Economia] e queremos sua ajuda!” Pensei, naturalmente, se tratar de referências bibliográficas. A preocupação, no entanto, era outra. “Sabemos da importância da regularidade no estudo. Mesmo assim, tememos que, na ausência de um mecanismo forte, uma doença, ou o cansaço ou mesmo a preguiça,qualquer um desses fatores nos leve a faltar, comprometendo o sucesso de nosso projeto…”
A Teoria dos Contratos, que ganhou destaque esta semana com o anúncio do Prêmio Nobel 2016 para o professor finlandês Bengt Holmström e o professor inglês Oliver Hart, apresenta uma possível explicação para a mudança – de fracasso para sucesso – na trajetória do Beirute, e para a origem dos problemas que afligiam a aluna. Trata-se do modelo básico de Economia da Informação e Incentivos conhecido com o modelo “Principal-Agente”1ou “Modelo de Delegação Monitorada”e sua variação aplicada às organizações do tipo “Parceria”, como será discutido no final desta nota.
O modelo Principal-Agente ou Modelo de Delegação Monitorada estabelece que grande parte das relações entre indivíduos e instituições segue um formato comum em que um ente, chamado de Principal ou Superior, deseja que outro ente, chamado de Agente, realize adequadamente uma tarefa. A execução dessa tarefa, tipicamente, envolve custos para o Agente.Para induzir o Agente a realizar a tarefa, o Superior dispõe de um mecanismo de compensação. Por exemplo, um diretor de uma escola (o Superior), deseja que o professor (o Agente) se esforce para proferir boas aulas, estimular os alunos a estudar, elaborar provas capazes de bem avaliar o desempenho dos alunos etc. Como mecanismos de compensação, dispõe do salário, da progressão na carreira, do prestígio na escola etc. O fruto da negociação entre o Superior e o Agente é chamado de “contrato” que, segundo o Business Dictionary, consiste de “um acordo voluntário e juridicamente vinculante entre dois ou mais agentes econômicos”2.
É fácil ver que qualquer relação de trabalho3 pode ser interpretada sob a ótica do Modelo de Delegação Monitorada, em que o patrão é o Superior e o empregado é o Agente. Esse modelo, no entanto, é muito mais abrangente e pode ser usado para se analisar um sem-número de outras situações, como, por exemplo, a relação entre uma empresa de seguros de carro (Superior) e o segurado (Agente). Nesse caso, o Superior quer que, em primeiro lugar, o Agente compre seu seguro e, em segundo lugar, que dirija cuidadosamente, de forma a minimizar, na medida do possível, as chances de ter que cobrir os custos de um acidente. O mecanismo de compensação envolve o próprio custo do seguro, mas também a fixação de uma franquia4, a cargo do segurado, em caso de acidente. Pode ainda ser usado para se interpretar a relação entre eleitores (os “Superiores”) e seu presidente eleito (Agente), que desejam garantir que o presidente seja honesto e se dedique ao melhor interesse da sociedade. Nesse caso o mecanismo de compensação é a reeleição ou, mais genericamente, o sucesso na carreira política.
Bengt Holmström e Oliver Hart foram instrumentais no desenvolvimento da Teoria dos Contratos, que pode ser definida como a análise sistemática do Modelo de Delegação Monitorada, com vistas a entender essas relações hierárquicas entre agentes econômicos, bem como a sugerir quais regras e instituições podem garantir um resultado mais benéfico para todos os envolvidos. Na linguagem usada pelos economistas, busca-se aproximar ao máximo a “eficiência de Pareto”.
Em sua tese de doutorado5 submetida à Universidade de Stanford em 1977 Holmström evidencia o papel fundamental da assimetria de informação. De fato, caso o Superior pudesse observar todas as ações do Agente, ele poderia propor um contrato que compensasse o Agente apenas se ele escolhesse as ações desejadas. Se a compensação fosse adequada, então o Agente aceitaria a proposta do Superior e executaria exatamente as ações acordadas, de forma a garantir o recebimento da compensação. Portanto, o problema de delegação seria facilmente resolvido.
Suponha agora que o Superior não consiga observar a ação do Agente. Suponha ainda que a ação que o Superior deseja ser executada envolva um elevado custo para o Agente. Então está criado um conflito de interesses que pode fazer com que o Agente opte por uma ação distinta. No exemplo do diretor de escola e do professor, caso a única compensação que o professor receba seja seu salário e este independa da qualidade de suas aulas, é provável que o professor prefira não se esforçar no preparo didático, se isso lhe for custoso. Em geral, Holmström e demais pesquisadores da área mostraram que é necessário que a compensação esteja atrelada a alguma medida de desempenho para que o Agente escolha a ação que o Superior deseja. Por exemplo, se o salário do professor estiver condicionado a alguma medida de aprendizado da turma, como o resultado do ENEM ou outro teste padronizado aplicado por terceiros, então é mais provável que o professor se dedique para garantir a transmissão de seu conhecimento.
Esse achado explica porque em muitas profissões em que o sucesso depende muito da dedicação do Agente, como em vendas, os salários (compensação) tendem a depender do resultado observado (montante de vendas, a medida de desempenho).
Mais ainda, Holmström mostrou que simples medidas de desempenho baseadas em resultados são, em geral imperfeitas.Isso ocorre porque, tipicamente, o resultado é um sinal imperfeito da escolha do agente. Considere o caso de um vendedor em uma loja, por exemplo. Ele pode se dedicar para convencer os clientes potenciais, tendo sucesso moderado, enquanto um colega pouco dedicado pode ter a sorte de, sem esforço algum, receber um rico cliente procurando por um artigo específico caríssimo.
Um exemplo mais sofisticado pode ser o desempenho de um político que assume a presidência de um país produtor de commodities que se encontra com uma estrutura macroeconômica consolidada, política fiscal sob controle, política monetária atuante, e em um período de grande expansão da economia mundial. Esse presidente verá as reservas internacionais e o nível de confiança do país aumentarem ao longo de seu mandato, mesmo que não tome as melhores decisões para o país, podendo inclusive ser reeleito, uma vez que os eleitores observam o crescimento econômico (resultado) sem separar o que deve ser atribuído ao esforço do presidente daquilo que deve ser atribuído a variáveis externas à sua conduta.
O contrário pode também ocorrer, ou seja, um empregado dedicado, mas sem sucesso de vendas devido a uma crise econômica, por exemplo,pode receber uma baixa remuneração.
Aqui um paralelo pode ser feito à situação de pais que gostariam que seus filhos estudassem. O certo seria recompensá-los pelo esforço dedicado ao estudo. Como esse esforço não é claramente observado, terminam recompensando-o pelo resultado nas provas: se boas forem as notas, são louvados e, se forem baixas, são criticados, ainda que as críticas possam ser injustas. O mesmo acontece com qualquer sistema de menções em universidades, que tende a medir o desempenho em provas (observável) no lugar do esforço do aluno (não-observável).
Ainda assim, a compensação contingente ao desempenho observado gera um equilíbrio do tipo “segundo-melhor” (second best), que é uma aproximação factível do resultado eficiente que teria sido obtido caso a informação sobre a ação do Agente fosse de conhecimento público.
Em trabalho derivado de sua tese de doutorado, Holmström (1979)6 chama a atenção para o fato de que, apesar de a ação não ser observada, se existirem outras variáveismelhor correlacionadas com a ação que possam ser medidas, então o uso dessas variáveis pode ajudar a aperfeiçoar o mecanismo de compensação, tornando o resultado ainda mais próximo do eficiente. Trata-se do “Princípio do Conteúdo Informativo” (Informativeness Principle), que estabelece que a informação relevante disponível, e apenas essa informação, deva ser utilizada no desenho dos contratos de forma a melhorar os resultados.
Considere os dois exemplos discutidos acima. Existe, no comércio, uma regularidade conhecida como sazonalidade, que faz com que as vendas variem naturalmente ao longo do ano. Por exemplo, há muito mais vendas de brinquedos em dezembro, devido ao Natal, do que em janeiro. Não se deve, portanto, punir um vendedor por uma redução (dentro de padrões naturais) nesse mês de início de ano.
Analogamente, é possível se observar as vendas de commodities de um país, bem como o crescimento econômico mundial. Portanto, não se deve considerar mérito pessoal de nosso presidente fictício um bom resultado nas exportações se todos os demais países em condições comparáveis também tiverem resultados semelhantes. Um exemplo extremo dessa situação são os países que dependem quase que exclusivamente da exportação do petróleo, como a Venezuela, que pode passar de um período de extrema opulência para um de extrema penúria com as variações do preço internacional do petróleo, sem qualquer influência das ações do presidente.Nesse caso, a ação do presidente (Agente) a ser considerada pelos eleitores (Superiores) não deve ser o montante arrecadado com exportações, mas sim, por exemplo, a capacidade de criar um fundo de estabilização nos momentos de alta do preço do petróleo e usar esse fundo nos períodos de baixa desse preço.
Uma famosa aplicação para o mundo corporativo do Princípio do Conteúdo Informativo é que não se deve remunerar um alto executivo de uma empresa por lucros oriundos da sorte, alheios aos seus esforços, por exemplo.
Além da superioridade do salário condicional ao desempenho, a Teoria dos Contratos permite entender e desenhar melhores contratos em várias outras situações. Por exemplo, uma carreira mais verticalizada, com benefícios mais claros quando se é promovido, estimula o desempenho (com vistas à promoção) mais do que uma carreira mais horizontalizada em que há pouco ganho quando se é promovido.  Este pesquisador se encontra atualmente em estágio pós-doutoral no Japão e ouviu de vários colegas professores de universidades públicas a manifestação de que teriam pouco interesse na promoção à posição de professor titular pelo simples fato de que o aumento salarial é muito pequeno, enquanto as responsabilidades, em termos de participação na administração universitária, crescem muito.
Até agora foi discutida a contribuição da Teoria dos Contratos no sentido de melhor entender os contratos existentes e também no sentido de ajudar a desenhar contratos mais eficientes em ambientes em que há informação assimétrica entre o Superior e o Agente. Há ainda uma outra importante característica do mundo real que afeta a qualidade dos contratos, que é o fato de o mundo ser por demais complexo para que todos possíveis desdobramentos de um contrato possam ser previstos. Isso levou a academia à modelagem dos “contratos incompletos” (incomplete contracts), que faz uso de sofisticado instrumental matemático para incorporar o fato de existirem situações imprevisíveis no momento em que se desenha um contrato. Oliver Hart é considerado um dos principais motores do desenvolvimento dessa área de pesquisa. A teoria chama a atenção, por um lado, para a necessidade de se prever quem terá o poder de decisão em uma disputa oriunda dessas situações imprevisíveis e, por outro lado, para a grande força que ganha o ente que resulta deter o poder de decisão nessas situações.
Uma aplicação dessa teoria diz respeito à estrutura ótima da firma. Uma estrutura verticalizada, em que a firma adquire firmas menores que eram suas fornecedoras, garante o direito de decisão para a firma adquirente, afirmando sua preponderância. Por outro lado, é possível que essa integração traga consigo problemas de incentivos inexistentes anteriormente, uma vez que antes da aquisição as duas firmas interagiam por meio do mercado, que criava incentivos para que a fornecedora buscasse a eficiência por conta própria. Uma vez adquirida pela firma maior, os proprietários da antiga fornecedora se tornam funcionários e, a menos que sejam criados novos esquemas de compensação adequados para contrabalançar a perda dos incentivos à eficiência que eram gerados pelo mercado, poderá haver redução de dedicação por parte dos novos funcionários.
Esta questão nos leva de volta à discussão sobre o Bar Beirute.  A presente nota não tem a pretensão de dar uma resposta inquestionável à pergunta inicial. A Teoria dos Contratos sugeriria, no entanto, que até 1970 Bartô e Chico eram empregados da empresa, sendo necessário a construção dos incentivos adequados à sua atuação ótima, uma vez que o principal beneficiário de seu trabalho eram os proprietários. Na ausência de um bom desenho de incentivos, a empresa caminharia para a ineficiência, reduzindo seus lucros. Com a aquisição do empreendimento, os antigos funcionários se tornaram donos do negócio e, portanto, beneficiários integrais de seus ganhos líquidos. Assim, aumentou sobremaneira o incentivo à eficiência, com a feliz consequência observada. Trata-se de um resultado clássico bastante conhecido e ensinado em Teoria dos Contratos: Se você quiser garantir um nível de esforço ótimo de seu Agente, venda a ele (os direitos sobre) o negócio por um preço fixo e deixe que ele escolha o nível de esforço. Como, uma vez feito o pagamento, todo o benefício passa a ser do Agente, este escolherá, naturalmente, o nível eficiente de esforço!
E quanto ao estudo para o exame ANPEC de minha aluna e seu grupo? Trata-se também de uma estrutura amplamente estudada por Bengt Holmström que se chama “parceria” (partnership) em que não existe um Superior e sim vários Agentes que geram um resultado conjunto por meio de seus esforços individuais. No caso dos estudantes, o esforço era participar religiosamente das reuniões de estudo e o resultado conjunto era o melhor preparo de todos os membros do grupo para o exame. Observa-se a mesma estrutura quando um grupo de alunos deve elaborar em conjunto um trabalho final de uma disciplina. Firmas com vários sócios, como é comum em pequenas empresas, especialmente no ramo de serviços, também apresentam estrutura semelhante. Holmström (1982)7 mostra claramente a impossibilidade de se chegar até mesmo ao “second-best” nessa estrutura, devido à ausência de um Superior. A explicação é simples, e está associada à dificuldade de se impor uma penalização quando a ação ótima (não observada) não for tomada por algum dos membros.
Bugarin (2015)8 mostra que, quando a parceria necessita de um investimento, então o provedor do recurso pode assinar um contrato que lhe dá o direito de propriedade sobre a produção da parceria, sendo que ele deverá redistribuir essa produção à parceria se esta gerar o resultado eficiente e, caso contrário, ficará com esse retorno para si. Dessa forma, o investidor se tornará um Superior para a parceria e se retornará à solução conhecida. No entanto, caso não exista necessidade de aporte de capital, essa solução não pode ser aplicada. No caso do grupo de estudo, claramente não havia um Superior. O grupo de alunos chegou a pensar em implementar o seguinte mecanismo: Toda semana cada membro do grupo depositaria um montante na conta deste professor, montante esse que seria devolvido caso todos estivessem presentes a todas as reuniões de estudo. Caso qualquer um dos membros faltasse, o professor doaria o recurso a terceiros. Dessa forma, este professor desempenharia o papel do Superior ou, na linguagem de Holmström (1982), o papel de um “budget-breaking Principal”.  Esse mecanismo, no entanto, se mostrou de difícil implantação e nem chegou a ser usado, conforme previa a teoria, pois não havia um Superior “natural”, como no caso do investidor9.
Felizmente, a aluna não dependia da eficiência dessa parceria: Seu brilhantismo a colocou entre as melhores classificadas no concurso ANPEC. A aluna fez mestrado em um dos melhores programas do Brasil, doutorado nos Estados Unidos e hoje segue firme carreira acadêmica em universidade americana de primeira linha!

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1A tradução literal do inglês “Principal-Agent” é aqui mantida por ter se tornado amplamente aceita e ser usada universalmente. No entanto, proponho alternativamente o uso do termo “Delegação Monitorada” por razões que ficarão claras ao longo do texto.
3Até mesmo o trabalho escravo, como pode ser visto em De Castro, Steve, “Wrong incentives for growth in the transition from modern slavery to firms and labor markets: Babylon before, Babylon after”, Social & Economic Studies 53(2):75-116, 2004. Versão disponível online: http://epge.fgv.br/files/1049.pdf
4 A existência da franquia cria, naturalmente, um incentivo adicional para que o segurado se esforce em evitar acidentes.
5 “On Incentives and Control in Organizations”, Stanford University, 1977.
6“Moral Hazard and Observability”, The Bell Journal of Economics, 10(1): 74-91, 1979.
7 “Moral hazard in teams”. The Bell Journal of Economics, 13(2): 324–340, 1982.
8 “Efficiency in a Monotonic Partnership with Investment: An Endogenous Implementation of Holmström’s Principal”. Bulletin of Business and Economics, 4(3): 127-135, 2015.
9 Poder-se-ia, naturalmente, pensar no grupo punindo diretamente o faltante. Nesse caso, o mecanismo funcionaria assim: cada membro depositaria uma quantia em conta do grupo, quantia essa que somente lhe seria devolvida se ele não faltasse. Existem dois problemas com esse mecanismo. Em primeiro lugar, se o valor for muito baixo, o membro não se preocupará em perdê-lo e o incentivo desaparecerá. Por outro lado, se for suficientemente elevado, há incentivo para que os próprios membros renegociem (ex-post) a punição, cada um deles prevendo a possibilidade de ser punido no futuro. Nesse sentido, diz-se na teoria dos contratos que a regra não é “durável”. Vide, a esse respeito, o artigo de Holmström e Myerson “Efficient and Durable Decision Rules with Incomplete Information”, Econometrica 51(6):1799-1819, 1983.

Por Maurício S. Bugarin - PhD em Economia pela Universidade de Illinois. Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Diretor do Centro de Investigação em Economia e Finanças, CIEF/UnB.

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