quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O Santo Graal - II


"Hoje, existe uma espécie de menosprezo por essa coisa tão simples que antes era falar com propriedade. Quando eu era trabalhador, sempre tinha as ferramentas limpas e em bom estado. Não conheço uma ferramenta mais rica e capaz que o idioma. E isso significa que se deve ser elegante na dicção. Falar bem é um sinal de pensar bem".
Saramago


O homem jamais se conformou com suas atividades instintivas. As reações efetuadas de forma mecânica - que dispensam o aprendizado e a reflexão crítica - como os atos de respirar, comer, defecar e se arrastar jamais satisfizeram o Homo sapiens.

Desde os primórdios sentiu a premência de avançar, de evoluir, de comunicar a experiência vivida, incorporando um discurso significativo. E neste contexto a aprendizagem está para a evolução da humanidade assim como o Santo Graal está para algumas seitas religiosas.

Aprender a dominar o fogo; dar novas formas à pedra, lascando-a; captar a forma de lidar com a argila, o ferro, o cobre, o aço... E transmitir o conhecimento adquirido, se diferenciando das demais espécies porque o que acumulou e acumula diuturnamente não depende exclusivamente das informações genéticas e do comportamento que se desenvolve automaticamente de sua relação com a natureza.


Portanto, uma característica fundamental do homem reside na capacidade de aprender, de processar as experiências e conhecimentos que recebe dos antecedentes e das antigas gerações para transmitir para os contemporâneos e para os que virão. É esta especial característica que elevou a espécie, possibilitando exercer completo domínio sobre o planeta, e que decorre da habilidade de criar sistemas de símbolos - sobretudo a linguagem - mecanismos de que se utiliza para dar significado às experiências vividas, transmitindo-as aos seus semelhantes.


Por esta razão, no planeta terra, tão somente ao Homo sapiens é dado pensar.


Todavia, no decorrer da evolução humana parece que modificações genéticas acometeram indivíduos e grupos deles, criando uma sub-espécie que cultua a mediocridade, a ignorância e a delinqüência intelectual. É deste grupo de pessoas – hoje tão numerosos que em alguns extratos sociais, amplamente majoritários – que se refere Saramago. De uma forma sentida, dolorida, num incontido desabafo, dá testemunho dos que menosprezam o idioma, a fala, o pensamento...


Porque a escalada dos que são incapazes de pensar e falar bem, parece não ter fim. Como pragas de vampiros vão galgando posições, ocupando todos os espaços, sugando todo o sangue e energia disponível à volta. São os dráculas modernos, arrogantes e presunçosos, artificiais e preguiçosos ao extremo, incapazes de ler um bom livro, freqüentar uma boa escola, encantar-se por um museu, um teatro ou um cinema.

Não desenvolveram a habilidade de escutar, de ouvir. Simplesmente simulam prestar atenção ao interlocutor porque todas as respostas já estão predefinidas, na ponta da língua, pronta para a erupção que exala estultícia, tolice.

Os néscios compõem uma caterva de malandros que avacalha o idioma, sempre testando nossa paciência para administrar o insuportável, o que afronta a harmonia e desequilibra, o que agride a lógica e aos ouvidos, o que distorce e desfigura a verdade.


Incapazes de compreender as virtudes do diálogo diplomático, discreto e de conteúdo, estão sempre como prolixos papagaios, repetindo citações imbecis e o que já foi dito e reiterado inúmeras vezes, falando alto e com estardalhaço.

Como não têm o poder da palavra, não dominam o idioma e ignoram a lógica, jamais alcançam o pensamento, o raciocínio, a reflexão. Então utilizam a verborragia dos retardados e, conseqüentemente, não convencem. Daí, para vencer, só pela força.

Como cansa escutar alguns políticos, alguns intelectuais, alguns professores,...broncos que infestam todas as categorias profissionais.


Jamais compreenderão o poder do silêncio, do instante mágico para processar o que se escutou, o que se viu, o sentimento que emergiu, quando as coisas se revelam em sua verdadeira intensidade. 

Quando sentimos a doce presença de Deus.


Artigo de Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de teatro Mané Beiçudo. 

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O artigo acima postei já faz algum tempo. Mas o artigo de Santiago Kovadloff, publicado no La Nacion, mostra cabalmente que sua atualidade incomoda. Abaixo trechos do artigo:


A interdependência entre linguagem, moral e política se mostra, desde sempre, como um fato indiscutível. George Steiner pôde constatar "as pressões exercidas pela decadência cultural sobre a linguagem". Desde o início dos anos 60, advertiu que "os imperativos da cultura e da comunicação de massa têm forçado a linguagem a desempenhar papéis cada vez mais grotescos." A obscenidade do grotesco consiste em sua ostentação; na exposição da vulgaridade como um bem.


Líderes políticos incorporam em seu vocabulário a grosseria e a insolência como se não fossem ou, ainda pior, como se fossem dignos de divulgação. Abertamente e com frequência cada vez maior, fazem eco deste fascínio pela grosseria verbal, esforçando-se em apresentá-la como uma garantia de autenticidade e proximidade com seu público. A brutalidade, o ordinário e o grotesco foram pavimentando o caminho para algo ainda pior: o movimento progressivo de todos os tipos de violência verbal.


E a chamada classe política não hesitou em fazer sua própria contribuição para esse exercício irresponsável da palavra, transformando o adversário em inimigo e a discordância com sua própria opinião em um insulto. A deterioração da linguagem tem uma forte influência sobre a força das idéias. Como bem observado por Steiner, à medida que esta deficiência se acentua "a linguagem deixa de configurar o pensamento avançando para a brutalização." Sejamos claros: quando a linguagem se corrompe, algo mais do que a linguagem está corrompido. O lixo em que se transforma, inevitavelmente contamina o pensamento.


O caso da atual liderança do partido governista é, neste sentido, patético. Ter adversários os repugna e acabam definindo-os como sendo seres insignificantes. Os maus-tratos que lhes são impostos não têm limites. Com isso, política conhecida tende a desaparecer. Em vez disso, tem seu lugar ocupado pelo despotismo. A intenção por trás dele não esconde seu propósito. A demagogia e a intolerância andam de mãos dadas. A pluralidade de critérios horroriza sua propensão para o monólogo.


Assim não incentiva o debate, mas sim o maniqueísmo. A discordância necessária se transforma, sob o seu peso, em confrontação. E o confronto, em seu caso, em uma prática voltada para o extermínio do adversário. A degradação do idioma, em boa parte dos políticos, reflete a magnitude alcançada pela perda do valor das investiduras. Tão difundida é essa degradação que seria injusto supor que o oficialismo tem o monopólio da degradação da linguagem. Mas é inegável que em suas fileiras esta prática encontra uma maior aceitação.


É indubitável que a meta para a qual se encaminha, na política, a degradação da palavra, é a subordinação forçada de toda dissidência a uma vontade despótica. Uma nova raça de excluídos começa ser forjada pela intolerância do poder. Os membros são aqueles que desejam continuar exercendo o pensamento crítico. Assim, a insegurança conhecida se acrescenta uma nova.


Andar pelas ruas, avenidas e vias é, há muito, um risco radical. Freqüentar livremente o caminho das palavras começa a ser também. Duas formas de crime se complementam na Argentina para multiplicar uma mesma desolação.