terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Banco Central deve ser independente?



O cenário político recente despertou novamente o debate sobre independência (ou autonomia) do Banco Central do Brasil (BCB). Uma diversidade de argumentos, teóricos ou ideológicos, vem sendo utilizada para defender, de um lado, um maior controle do Poder Executivo sobre as decisões do BCB, ou, de outro, um maior isolamento do órgão com respeito a oscilações políticas. Neste texto, entregamos uma análise sobre o papel do Banco Central na sociedade e esclarecemos argumentos em defesa da sua independência.

Primeiramente, é preciso clarificar o que é (e o que não é) independência do Banco Central.

Independência pode ser entendida como um arranjo institucional em que estão presentes mecanismos de insulação do órgão em relação a intervenções discricionárias do governo. Dito de outra forma, a independência representa um desenho das regras do jogo de modo a deixar o BC livre de influências políticas que prejudiquem o cumprimento da sua missão como guardião da estabilidade da moeda – leia-se, inflação sob
controle.
Que mecanismos garantem independência na prática? Como exemplos, podemos citar:
• Período de tempo predefinido para o mandato do presidente e da diretoria do órgão, assim como critérios alternativos de escolha da direção (que não a nomeação direta por parte do governo), são regras que evitam a interferência do governante.
• A autonomia orçamentária é tida como outra forma de reforçar a independência do órgão, já que o governo poderia exercer pressão sobre o órgão retendo recursos orçamentários ou obstruindo contratação de funcionários.
Antes de discutirmos os benefícios de um BC independente, é preciso quebrar alguns mitos por vezes disseminados ao público geral a respeito deste tema.
Independência não é entregar o galinheiro a comando da raposa, como argumentam alguns veículos na mídia1. De fato, o quadro de funcionários do BC precisa de pessoas com experiência com bancos e com o mercado financeiro, inclusive na diretoria, devido ao nível técnico exigido pelo trabalho que é desempenhado no órgão. Todavia, o desenho de instituições como o BC certamente não ignora a possibilidade de conflitos de interesse, informação privilegiada, nem a possibilidade de captura da agência pública por interesses privados, os quais representam comportamentos abusivos em prejuízo da comunidade. Para esses problemas, há dispositivos especialmente criados no design institucional, como o período de quarentena profissional dos ex-diretores, a subordinação do presidente a conselhos de administração e a auditoria externa.
Independência não significa abrir mão da determinação dos objetivos de política pela nossa democracia representativa. Até mesmo um BC com operação independente precisa respeitar a lei existente e seguir as diretrizes de política estabelecidas por instâncias superiores, como o Congresso. Para prevenir condutas que se desviem dessas diretrizes, há dispositivos como a avaliação independente e incentivos para a responsabilização (accountability). Vide, por exemplo, o sistema de accountability do Banco Central Europeu, um BC independente com o desafio de harmonizar objetivos de política de dezoito nações2.
Mas por que a independência de uma instituição pode ser desejável?
1. No caso de alguns órgãos, não é bom que o seu desempenho seja contaminado por preocupações de curto prazo do governo de situação. Seja porque o horizonte temporal relevante vai além dos ciclos eleitorais, seja porque o objeto da atuação do órgão é sensível politicamente (por exemplo, se trata de medidas impopulares ou medidas com benefícios somente para a geração futura).
2. Em outros casos, o objetivo do órgão precisa de credibilidade para ser cumprido. Assim, o único modo de os agentes envolvidos acreditarem no comprometimento do órgão é se houver insulação dos humores da política.

Dito de outra forma, em alguns setores a estabilidade das regras e dos procedimentos é peça central para se alcançar o objetivo almejado.
São exemplos de entidades cuja independência é desejável aquelas que lidam diretamente com a regulação dos agentes, como, por exemplo, o Poder Judiciário, as Agências Reguladoras, o CADE, a CVM. Outro exemplo são os órgãos de fiscalização da própria ação do governo, como o TCU, o Ministério Público e a Polícia Federal.
O Banco Central mistura elementos desses dois tipos de órgão. Sua missão, conforme declarada em seu estatuto, é dupla: (i) manter a estabilidade de preços e (ii) assegurar um sistema financeiro sólido e eficiente. A segunda tarefa está ligada à formulação de regras e à fiscalização da atividade bancária com o objetivo de controlar o risco sistêmico e evitar fraudes e crimes como lavagem de dinheiro. Só esta missão já justificaria a independência do banco para assegurar sua credibilidade e a segurança jurídica.
No entanto, a primeira missão é a mais sensível, especialmente no caso do Brasil. A estabilidade do poder de compra da moeda (ou seja, a inflação sob controle) tem no Banco Central o seu principal guardião, devido, principalmente, à eficácia da atuação desse órgão para influenciar a macroeconomia, por meio da política monetária.
O Brasil tem um histórico de coexistência com altos e persistentes níveis de inflação, um problema crônico denominado pelo historiador econômico Gustavo Franco como ‘inflacionismo’3. Este fenômeno consiste na incapacidade do governo de se financiar via aumento de impostos no presente ou no futuro (via emissão de dívida), e está intimamente relacionado com a instabilidade política do Estado aliada a uma estrutura extremamente desigual de distribuição de riqueza. Sendo assim, somente através do aumento da inflação o governo consegue expandir seus gastos politicamente direcionados e, dessa forma, garantir o apoio político de grupos diversos para se sustentar no poder. O lado perverso disso é que o financiamento inflacionário do Estado funciona como um imposto regressivo, incidindo de forma mais acentuada sobre os mais pobres e piorando a estrutura distributiva.
Entretanto, com a redemocratização dos anos 1980 e a consequente emergência das demandas sociais, o controle da inflação se tornou claramente uma prioridade de política pública. Após várias tentativas fracassadas nos primeiros governos democráticos, o Plano Real conseguiu, em 1994, lançar as bases para uma inflação estabilizada. Além de prescrever uma série de ajustes macroeconômicos, como controle do déficit público e âncora cambial, o Plano tinha um pilar central: a credibilidade do governo no compromisso com a estabilidade de preços.
Essa credibilidade afeta a raiz das expectativas dos agentes da economia (produtores, consumidores, bancos), os quais, tomando suas decisões de forma descentralizada, determinam conjuntamente a evolução dos preços.

Porém, o Plano não poderia depender, para sempre, da credibilidade dos indivíduos à frente da condução da política naquela época. Seus proponentes estavam cientes da inconsistência de programas de controle da inflação que dependessem da discricionariedade do governo, fato consolidado na literatura econômica 4 5.
Por isso, o programa de controle da inflação inaugurado pelo Plano Real foi transformado, a partir de 1999, em um mecanismo de caráter institucional: o Sistema de Metas para a Inflação. Neste sistema, o BCB se compromete institucionalmente a utilizar os instrumentos à sua disposição para manter a inflação anual projetada dentro de uma meta centrada em 4,5%, com 2 pontos de tolerância para mais ou para menos (ou seja, entre 2,5 e 6,5).

Além disso, para o sistema funcionar bem, é necessário que o BC opere com absoluta transparência e que seus objetivos de política sejam de amplo conhecimento do público. O resultado deste modelo é claro: os níveis de inflação foram consistentemente mais baixos desde 1994 [veja o gráfico].
 
Inflação anual medida pelo IGP-DI (Fonte: BCB)

O funcionamento do Sistema de Metas, porém, depende criticamente da credibilidade do Banco Central. Apesar de operar com relativa autonomia, qual seja, uma relativa liberdade para decidir os meios e instrumentos para implementar as metas e diretrizes estabelecidas pelo governo, o BCB não possui independência de fato. As dúvidas quanto à credibilidade do Banco podem ser evidenciadas pelo fato de que, nos anos recentes, rumores de que o Governo estaria pressionando o presidente do BC no sentido de ser menos rigoroso com o cumprimento da meta, por si só, contribuíram para o aumento da expectativa de inflação, que hoje beira o teto da meta (6,5%) no acumulado de 12 meses.
A atual geração jovem pouco vivenciou o caos e a aflição causados pela inflação fora de controle, mas ouviu histórias sobre como era difícil o planejamento e a vida econômica naquela época. Os dados e a literatura também ensinam sobre os efeitos perversos da inflação sobre as camadas de menor renda, bem como sobre o potencial de desenvolvimento da nossa economia.
Esses fatos nos levam a crer que a estabilidade de preços figura como senão a mais valiosa conquista econômica da nossa jovem democracia.


Para saber mais:
Para uma abordagem didática sobre como funciona a política monetária, recomendamos o artigo de Carlos Góes sobre independência do BC para não-economistas: http://mercadopopular.org/2014/09/o-que-e-autonomia-do-banco-central-um-manual-para-nao-economistas/
Texto originalmente publicado em: http://economiadependrive.wordpress.com/2014/09/07/sobre-a-independencia-do-bc/
____________
1 http://www.cartacapital.com.br/economia/o-banco-central-independente-e-os-20-centavos-8002.html
2 Banco Central Europeu. Organização > Responsabilização. Acesso em 07/09/2014. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/ecb/orga/accountability/html/index.pt.html
3 Franco, Gustavo. “Auge e Declínio do Inflacionismo no Brasil.” In: Fábio Giambiagi, André Villela, Lavinia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.) Economia Brasileira Contemporânea 1945/2004, Capítulo 10, p.258-283. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004.
4 Kydland, Finn E.; Prescott, Edward C. “Rules rather than discretion: the inconsistency of optimal plans.” Journal of Political Economy Vol. 85 No. 3., p.473-492, 1977.
5 Bernanke, Ben S. “Central Bank Independence, Transparency and Accountability.” Speech at the institute for monetary and economic studies international conference, Bank of Japan, May 25th 2010. Disponível em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/bernanke20100525a.htm
Autores:
Alexandre Balduino Sollaci, André Victor Doherty Luduvice, Andressa Castro, Bruno Ricardo Delalibera, Diego Martins Silva, Fernando de Barros Jr, Gustavo Lôpo Andrade, Gustavo de Cicco Pereira, João de Faria, João Vitor Almeida, Kym Ardison, Leticia Nunes, Luiz Brotherhood, Luiz Gustavo Moza, Marcel Cortes Peruffo, Rafael Amaral Ornelas, Raphaela Mattos Gonzales, Rodrigo Bomfim de Andrade, Vinicius Barcelos e Vinicius Pecanhasão, pós-graduados e pós-graduando dos programas de Mestrado e Doutorado da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (EPGE/FGV).