quinta-feira, 10 de setembro de 2020

SEM SOLUÇÃO - UM ESTADO SURREAL



Os bastidores da falência do Rio de Janeiro, onde a corrupção ergue e derruba governos — e sobrevive

 

Era noite de sexta-feira, dia 11 de outubro de 2019, quando o carro oficial do estado do Rio de Janeiro e batedores de giroflex ligados deixaram o então governador Wilson Witzel (PSC-RJ) no Palácio Laranjeiras. Dirigindo-se à varanda, cumpriu a rotina de descompressão que costumava praticar às quintas ou sextas-feiras. Afrouxou a gravata e contemplou a mesa de jantar na varanda, em que uma toalha branca de linho abrigava uma caixa de charutos cubanos da marca Cohiba, queijos e vinhos. Entre uma tragada e outra, acompanhado da mulher, Helena Witzel, e de dois convidados, passou três horas divagando sobre o cenário político nacional, quase sem se referir a assuntos ligados à administração de seu estado.

Na conversa que invadiu o início da madrugada, Witzel externava delírios. Dizia ser o político mais popular do Brasil em razão de seu governo não ter apresentado escândalos de corrupção e celebrava o reconhecimento notado em suas visitas a outros estados. Dava como certa a chegada ao Planalto em 2022 e, quem sabe um dia, brincava, ao posto de secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Por fim, comemorava sem pudores a hipótese de o presidente Jair Bolsonaro não completar o mandato diante do avanço das investigações envolvendo a vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL).

Menos de um ano depois, o futuro vislumbrado pelo ex-juiz apresenta-se com sinais trocados. O envolvimento da família presidencial no homicídio foi completamente descartado pela Polícia Civil fluminense, a despeito da euforia inicial na cúpula do governo do Rio com o caso. Além disso, a possibilidade de Bolsonaro tornar-se alvo de um processo de impeachment passou a ser remota diante de sua aliança com o centrão, minuciosamente cultivada à base de cargos e liberação de recursos — sem contar o impulso dado pelos R$ 600 a sua popularidade. Contra todas as expectativas de Witzel expostas naquela noite de outubro, quem corre sério risco de sucumbir é ele próprio.

Na quarta-feira 2, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou seu afastamento do cargo por 180 dias após o Ministério Público Federal (MPF) acusá-lo de corrupção e lavagem de dinheiro. O movimento pode tornar-se definitivo caso a Assembleia Legislativa do Rio aprove o impeachment nas próximas semanas e uma comissão composta com o Tribunal de Justiça do Rio confirme a decisão — o que provavelmente ocorrerá devido a sua falta de apoio popular e base parlamentar. Assume agora o cantor católico Cláudio Castro (PSC-RJ), seu vice e até outro dia um desconhecido ex-vereador gago. Ele também é investigado pela Lava Jato e já foi alvo de busca e apreensão por suspeitas de também estar envolvido em corrupção.

O estado que viu seus últimos quatro governadores serem presos assiste ao ex-juiz que se elegeu na esteira do discurso de combate à corrupção enrolar-se em trama parecida, numa demonstração de que os esquemas que imperam no Rio de Janeiro transcendem partidos, ideologias e personagens da política. Da mesma forma que os antecessores Anthony e Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, Witzel está sendo acusado por procuradores de coordenar um esquema de desvio de recursos valendo-se do mesmíssimo tipo de gente e método que saqueou bilhões de reais dos cofres públicos em administrações passadas. Um “túnel do tempo”, como descreveu o procurador Eduardo El Hage, chefe da Operação Lava Jato no Rio e responsável pela denúncia contra o governador afastado.

O personagem-símbolo que une os tristes enredos ao longo de duas décadas de roubalheira é o empresário Mário Peixoto, nome conhecido da política fluminense devido aos contratos milionários que suas empresas abocanhavam no setor público desde o início dos anos 2000 na área de fornecimento de mão de obra terceirizada. Somente no atual governo, seus negócios com o estado chegavam a cerca de R$ 900 milhões. Segundo a Lava Jato, Witzel se beneficiou enquanto entregava licitações para Peixoto. Entre as demonstrações mais cristalinas de vantagens obtidas pelo governador está o fato de o escritório de advocacia de sua mulher, Helena, ter fechado três contratos de cerca de R$ 260 mil, sem comprovação de prestação de serviços, com empresas ligadas ao empresário. A delação premiada do ex-secretário de Saúde do Rio Edmar Santos guiou a rota do dinheiro.

Desde a campanha de 2018, a relação de Witzel com Peixoto era alvo de críticas de seus adversários, como demonstra o vídeo que viralizou nos últimos dias, em que o senador Romário o questionava com essa pergunta no debate da TV Globo. Embora ele sempre tenha negado tal proximidade, ÉPOCA apurou dois episódios que revelam como o empresário deu, sim, as cartas na campanha, graças ao relacionamento construído com o ex-secretário de Desenvolvimento Lucas Tristão, ex-homem de confiança de Witzel, e o pastor Everaldo Dias Pereira, mandachuva do PSC nacional. Os dois foram presos na semana passada acusados de se beneficiar dos desvios no estado. Peixoto foi preso em maio na operação que desbaratou o esquema de desvios em contratos da Saúde do estado, perpetrados durante a pandemia.

Há dois anos, o advogado Bernardo Santoro foi designado para fazer o programa de governo de Witzel. Ele já havia feito o mesmo em 2016, quando Flávio Bolsonaro se candidatou à prefeitura do Rio pelo PSC. Em determinado momento do primeiro semestre, Santoro foi avisado de que o capítulo sobre a Saúde seria redigido por Peixoto, justamente a área de seu interesse no estado com o avanço das Organizações Sociais (OS). O advogado se irritou tanto que Peixoto acabou topando suavizar a intromissão apresentando-lhe apenas slides que serviram de base para o texto final do programa de governo.

Posteriormente, a interferência do empresário foi ainda mais explícita. Peixoto passou a discordar da comunicação da campanha e tentou colocar duas pessoas suas na área digital. O publicitário Alexandre Borges, marqueteiro da campanha, foi obrigado a almoçar com o empresário e ouvir todas as suas reclamações. Antes de agosto, acabou deixando Witzel, o que fez com que Peixoto desse ele mesmo palpites na estratégia do então candidato que depois venceria Eduardo Paes (DEM-RJ) no segundo turno. Procurado, Witzel afirmou que não sabe dos fatos apresentados. “Desconheço a relação entre Alexandre Borges e Mário Peixoto. O meu programa de governo foi escrito por Bernardo Santoro”, respondeu em nota.

Mário Peixoto é apenas um dos vários empresários entranhados no setor público do Rio desde o início do século que colocam suas fichas em diferentes campanhas eleitorais para depois faturar milhões em contratos. Graças a suas relações com os ex-presidentes da Assembleia Legislativa do Rio, os caciques emedebistas Jorge Picciani e Paulo Melo, e depois com Witzel, conseguiu manter-se bem posicionado independentemente do resultado nas urnas.

Segundo o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio, os governos passam e os mesmos grupos corruptos continuam sugando os cofres públicos criminosamente porque o dinheiro sujo fluminense chegou ao nível máximo de corromper até quem deveria investigar os desmandos. “As licitações do governo acabaram virando um ‘toma lá, dá cá’ e os sistemas de controle, como Tribunal de Contas do Estado (TCE) e Ministério Público, chegaram até mesmo a ser cooptados. Eram eles que deveriam ter atuado de forma preventiva”, disse Ismael.

Em quatro anos, a Lava Jato no Rio denunciou representantes de Executivo, Legislativo e Judiciário, além de ex-chefes do Ministério Público do Rio e do TCE. Para financiar tamanha engrenagem, três segmentos movimentaram bilhões de reais no Rio nos últimos 20 anos. O fornecimento de mão de obra terceirizada, liderado por Peixoto e pelo notório Arthur Cesar de Menezes Soares Filho, mais conhecido como Rei Arthur; a construção civil, que levou a Delta de Fernando Cavendish e a Odebrecht a colocarem de pé o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lulista; e as concessões na área de transporte público, em especial as empresas de ônibus, que criaram a chamada “caixinha da Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio)”.

A perenidade dos sistemas de corrupção persistiu ainda que adversários políticos tenham se revezado no poder. O casal Garotinho, que governou o estado entre 1999 e 2006, abriu espaço para vários dos protagonistas dos esquemas da era Cabral, seu inimigo declarado até hoje. Foi pelas mãos de Garotinho e Rosinha que a Delta e o Grupo Facility, do Rei Arthur, conquistaram os primeiros contratos no governo do estado. Naquela época, Mário Peixoto ainda engatinhava nos negócios com uma cooperativa e não ameaçava o concorrente Arthur, já poderoso no segmento de mão de obra terceirizada.

As investigações da Lava Jato destrincharam mais a relação pessoal entre Garotinho e Benedito Júnior, executivo da Odebrecht e atualmente com delação premiada homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Benedito Júnior confessou em seu acordo que repassou R$ 20 milhões em caixa dois para o ex-governador financiar as campanhas de Rosinha para a prefeitura de Campos, Rio de Janeiro, em 2008 e 2012, e a do próprio Garotinho ao governo do estado, em 2014. O ex-governador é tão próximo do executivo da Odebrecht que, quando divulgou em seu blog as históricas fotos da “gangue do guardanapo”, em Paris, omitiu que Júnior lá estivesse e o poupou do noticiário negativo. Garotinho, que aparece com o apelido de “Bolinha” nas planilhas da Odebrecht, nega as acusações.

Depois que Cabral assumiu, a partir de 2007, todos os fornecedores antes fechados com Garotinho passaram a se relacionar com o novo inquilino do Palácio Laranjeiras, este muito mais ávido por obter vantagens ilícitas, segundo as investigações do MPF. A Odebrecht repassou R$ 79 milhões em propina a Cabral para ganhar contratos de peso, como a reforma do Maracanã para a Copa do Mundo. Fernando Cavendish, da Delta, bancou campanhas do MDB e presenteou a ex-primeira dama Adriana Ancelmo com joias de R$ 800 mil depois de ganhar contratos de reurbanização de favelas. Mas foi o Rei Arthur que custeou o mais ousado pedágio. Comprou por US$ 2 milhões os votos de delegados que escolheram o Rio como sede da Olimpíada de 2016. Todos os episódios já foram confessados por Cabral em sua delação premiada homologada pelo STF.

O sistema de propinas confessado por executivos das empresas de ônibus em delações premiadas homologadas pela Justiça também foi o mais democrático possível em 20 anos. Inimigos que se enfrentarão nas eleições municipais em novembro, o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM-RJ) e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) são apontados pelo ex-presidente da Fetranspor Lélis Teixeira como recebedores de recursos ilegais em disputas eleitorais. Os dois negam os episódios. Em uma campanha que se anuncia sangrenta, contudo, não poderão usar a acusação contra o rival, para evitar o efeito bumerangue.

O cientista político Sérgio Praça, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV), enxerga mais dois pontos que tornam os esquemas de corrupção do Rio persistentes a qualquer troca de governo, que vão além do já conhecido fato de correntes políticas rivais e órgãos de controle terem sido corrompidos. “O Rio se diferencia do resto do Brasil nesse período por ter presença muito baixa dos partidos brasileiros mais programáticos, o PT e o PSDB, que têm políticas públicas mais definidas. Além disso, há uma cultura política ligada à violência, com a mistura no ambiente político de partidos, milícias e tráfico de drogas”, afirmou.

De fato, crime e política muitas vezes se confundiram na história recente do Rio — e este é um problema ainda mais profundo do que os desmandos desvendados pela Lava Jato até agora. Um relatório deste ano do setor de inteligência da Polícia Civil fluminense aponta que 1.413 favelas do estado são comandadas pelo crime organizado — 81% ficando nas mãos de traficantes de três facções e 19% com as milícias. Muitas vezes, é preciso negociar com o poder paralelo para fazer campanha ou até mesmo expor material nessas áreas.

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ) já está atento para os movimentos desses grupos em 2020 devido ao histórico recente de aproximação com o poder oficial. Num emblema de como não há constrangimento por parte dos grupos criminosos em atuar no setor público, há a história dos irmãos Natalino (ex-deputado estadual) e Jerominho Guimarães (ex-vereador), acusados de comandar a Liga da Justiça, o mais perigoso grupo paramilitar do Rio, e que há 14 anos apareceram ao lado de Cabral em comícios. Depois de anos presos, eles retornaram às ruas e de novo buscam projetos políticos. A filha de Jerominho, Carminha, será candidata a vereadora, e sua prima, Jéssica, será a vice da chapa de Sued Haidar (PMB) na disputa pela prefeitura do Rio.

A Justiça também monitora o tráfico. Já mapeou que a maior facção criminosa do Rio quer eleger um vereador neste ano. E que o irmão de Márcio dos Santos Nepomuceno, conhecido como Marcinho VP, Cristiano dos Santos, pretende se candidatar a prefeito de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Se a bandidagem do tráfico, a das milícias e a empresarial não têm qualquer pudor em usar o aparato eleitoral para se entranhar no poder público, espera-se que a Justiça também não se acanhe em cumprir seu papel.

Por Thiago Prado, na Revista Época  


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