sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Opção para financiar gasto afeta retomada, diz Marconi

 


Os efeitos de uma crise incomum como a provocada pela pandemia não podem ser tratados de forma usual, mas a opção que o governo brasileiro adota para financiar o necessário aumento de gastos não abre espaço de ação e compromete a retomada da economia, os investimentos e um programa de transferência de renda mais robusto, avalia o economista Nelson Marconi, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).


Ele reconhece que o aumento da dívida pública é um problema que merece atenção. “A questão é como o governo escolheu financiar isso”, afirma. A transferência de reservas do Banco Central ao Tesouro Nacional é importante, bem como o uso da conta única, “mas o governo deveria ter adotado a mesma estratégia de países como Estados Unidos, Inglaterra e Japão, que é se financiar com emissão monetária, vender títulos para o BC”, ele diz, observando que a proposta exige uma emenda à Constituição.

Assim, segundo Marconi, haveria mais espaço para gastos na pandemia e sem que o Tesouro tivesse que oferecer títulos longos com taxas muito elevadas, como exige o mercado, o que aumenta sua carga de despesas com juros.

Ele reforça que a ação precisaria ser acompanhada de uma sinalização de que a situação fiscal melhorará à frente, para “tirar pressão” sobre a dívida pública junto ao mercado. “Teria condições de enfrentar a crise, fazer esses gastos e sair dela inclusive. Mas com a estratégia adotada, o governo está em uma situação fiscal muito difícil e assim deve ficar.”

Marconi pondera também que o financiamento via emissão monetária não pode ser corriqueiro.

“Estou falando da adoção em uma situação muito específica. Se fizer sempre, tem aumento grande da oferta de moeda e o Banco Central perde o controle do seu instrumento de política econômica, que é a taxa de juros”, afirma. Mas ele também rebate a crítica comum de que uma medida do tipo agora pode gerar pressão sobre os preços da economia. “Com queda de mais de 9% no PIB [Produto Interno Bruto do segundo trimestre], algo entre - 6% e -7% para o ano, acho que não é momento de pensar que haverá impacto inflacionário.”

Da forma como foi apresentado anteontem, insistindo na mesma estratégia de financiamento e na irredutibilidade do teto de gastos, o Orçamento para 2021 “não tinha espaço para fazer muita coisa mesmo”, diz Marconi. “Não vejo nenhum estímulo para a retomada.”

O setor exportador ajuda a minimizar a queda do PIB, mas outra parte da recuperação precisa vir do investimento público, “porque o privado despencou e não será nesse cenário que vai se recuperar”.

O problema, segundo ele, é que o governo corta ainda mais as despesas com investimento no próximo Orçamento e faz “malabarismo” para justificar gastos dentro das despesas emergenciais. Para Marconi, os investimentos públicos precisam ficar fora do teto. Eles poderiam ser financiados por um fundo, alimentado com recursos, por exemplo, da taxação de dividendos, de parte da reserva cambial (algo como 10%) e da redução de subsídios setoriais. “O TCU [Tribunal de Contas da União] apontou que subsídios federais somam mais de R$ 300 bilhões, se cortar 10% disso você já arrumou R$ 30 bilhões para investimentos sem pressionar a dívida pública.”

A essência correta do gasto fiscal é ser contracíclico, observa Marconi, e o fundo serviria como “contra peso” para manter o investimento público no nível necessário mesmo nas crises, sem dispensar uma desejada melhora no arcabouço institucional para projetos.

Ter alguma forma de controle sobre as despesas, sobretudo as correntes, é “muito importante”, mas o economista defende que a regra do teto é inviável desde sua criação. “Se a gente tivesse uma distribuição de renda melhor, eu até entenderia, mas em um país com tanta desigualdade, vemos a necessidade de investimento em saúde, educação, ciência, tecnologia. Colocar um teto que só é corrigido pela inflação inviabiliza o país”, afirma. Marconi defende outro critério para controle das despesas correntes, como evolução do PIB ou do PIB per capita, bem como “válvulas de escape” para gastos sociais em períodos de crise.

O impacto do auxílio emergencial escancarou essas desigualdades e, independentemente de intenções eleitorais, ter um programa de transferência de renda mais abrangente é importante, diz Marconi. Nesse caso, porém, o financiamento precisa vir da parcela mais rica da sociedade, com a taxação de lucros e dividendos, impostos sobre herança e, eventualmente, mudanças na alíquota de Imposto de Renda. Ou seja, para ele, o programa deve ser acompanhado de uma reforma tributária e também não pode estar dentro da lógica atual de financiamento e investimento. “Senão, fica engessado. Tanto que o governo recuou na proposta [do Renda Brasil], porque viu que, com esse arcabouço que está aí, não tem espaço.”

Apesar do esforço recente do presidente Jair Bolsonaro para prorrogar o auxílio, viabilizar o Renda Brasil e aumentar investimentos, Marconi diz não se tratar de uma “guinada desenvolvimentista”. “Estratégia desenvolvimentista não é só gastar mais e aumentar déficit, é saber investir, onde arrumar os recursos, como expandir a dívida, com responsabilidade fiscal. O que está colocado é mais por sobrevivência política do grupo do presidente do que por desenvolvimento.”

Além disso, “não está no DNA” da equipe econômica liderada por Paulo Guedes “usar o Estado em período de crise”, diz Marconi, que é também coordenador executivo do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo (CND) da FGV. “Eles não sabem o que fazer ou se recusam. Parte do governo começa a perceber isso e o embate é esse. Do meu ponto de vista, o Guedes ainda está lá porque ele aceita essa pressão, mas não acho que o presidente esteja achando ele mais tão essencial assim."

Por Anaïs Fernandes, no Valor Econômico  


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