segunda-feira, 4 de maio de 2020

MENOS É MAIS - DE ONDE VÊM AS OUTRAS MORTES


O número de óbitos por razões naturais dispara em março e abril e aumentam as suspeitas de que a falta de testes esteja levando vítimas a terem a causa do falecimento erroneamente desvinculada da Covid-19

Origem dos primeiros casos do novo coronavírus no mundo, a China foi amplamente criticada por subnotificar suas mortes e não dar a real dimensão da pandemia para que os outros países pudessem tomar providências adequadas antecipadamente. Já o Brasil não pode reclamar de ter sido pego de surpresa. Quando o vírus começou a se espalhar pelo país, já se conhecia seu potencial de disseminação e mortalidade, observado na Europa. Essa vantagem deu tempo para que governadores implementassem antecipadamente políticas de isolamento social, mas não foi suficiente para que se colocasse em marcha um programa mínimo de testagem. Sem testes, o governo não tem um retrato fiel do problema e pesquisadores são obrigados a buscar outras formas de calcular o impacto.

Um levantamento feito por ÉPOCA com base em registros de óbitos de cartórios de São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus e Recife, capitais com o maior número de casos no país, mostra uma subida acelerada e atípica no número de mortes naturais — ou seja, mortes não resultantes de violência. Nesses locais, os cartórios registram 3.392 óbitos a mais, entre março e o início de abril, do que em 2019. Desse incremento, 1.618 são casos suspeitos ou confirmados de Covid-19. O restante, são doenças diversas. Ocorre que, ao se comparar fevereiro de 2020 com o mesmo mês do ano anterior, a oscilação é zero. Ou seja, a disparada nas mortes naturais (com ou sem Covid-19) ocorreu justamente nos meses de expansão da pandemia. Quem fornece esse diagnóstico não são as secretarias nem o Ministério da Saúde, e sim a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que contabiliza os dados dos milhares de cartórios espalhados pelo país.

A maior disparidade de mortes em relação a 2019 ocorre em Manaus, onde houve 730 mortos a mais entre março e abril, em relação ao mesmo período de 2019, e apenas 82 casos positivos para Covid-19. No Rio de Janeiro, foram 639 mortes naturais a mais que em 2019, sendo 437 suspeitas ou confirmadas pelo novo coronavírus.

Naturalmente, nem todos os óbitos têm relação com a pandemia, mas o dado pode dar pistas sobre o tamanho da subnotificação. Além disso, o total de mortos pode ser ainda maior que o informado pelos cartórios. Isso porque o prazo legal para que uma pessoa que perdeu um ente querido faça o registro, e ele seja processado, é de até 15 dias em alguns casos.

A subida dos números de mortalidade para além do novo coronavírus tem sido observada em países e cidades que estão no epicentro da pandemia. Em Nova York, foram 4.200 mortes a mais em março, em relação à média dos últimos anos, além das registradas por Covid-19, de acordo com reportagem do New York Times. Na Espanha, foram 9.100 mortos a mais, sem contar as vítimas da pandemia. Na França e no Equador, ultrapassou 7 mil.

A alta de mortes naturais nas quatro capitais citadas no levantamento também ocorre em um período de crescimento de óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG), ainda de acordo com dados divulgados pelos cartórios. As notificações passaram de 21, entre março e 15 de abril de 2019, para 353 neste ano nas quatro cidades. O diretor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) do Distrito Federal (DF), José David Urbaéz defendeu que as notificações de SRAG são um importante indicador para dimensionar o descompasso entre as confirmações da Covid-19 e o cenário real de casos, inclusive para os óbitos. “O vírus vai sempre caminhar mais rápido do que a capacidade de diagnóstico, mesmo nos melhores cenários. Talvez o melhor exemplo seja o da Bélgica, que passou a notificar como Covid-19 os casos de SRAG. Assim você tem uma ideia mais próxima do que está acontecendo. É um problema continuar o que estamos fazendo agora, notificar como caso real apenas os testados, os que estão internados nos hospitais. Não se notifica paciente que tem quadro leve. Isso vale também para os óbitos.”

A Covid-19, causada pelo sars-CoV-2, é caracterizada, na maioria das vezes, por doença respiratória grave, embora a literatura já comece a registrar casos, por exemplo, de mortes por acidente vascular cerebral e síndrome de Guillain-Barré. “Você vai aprendendo e desvendando a epidemia enquanto ela ocorre. Foi assim com o HIV. É sempre difícil fazer a leitura de dados epidemiológicos”, concluiu Urbaéz.

Procurado por ÉPOCA, o Ministério da Saúde afirmou que a subnotificação de casos é esperada “pelas características da doença e pela falta mundial de disponibilidade de testes”. O ministério disse ainda que não é esperada a subnotificação dos pacientes internados por SRAG, embora os boletins públicos da pasta contabilizem apenas casos de mortes por Covid-19 confirmados por testes.

O grupo “Covid-19 Brasil”, que reúne especialistas de várias universidades brasileiras, apontava no último dia 28 que as infecções pelo vírus já superavam a marca de 1,2 milhão, enquanto os dados oficiais apontavam 73.500 casos. Tal projeção é feita justamente a partir dos óbitos divulgados pelas secretarias de saúde. “Isso significa que estamos fazendo uma projeção de um cenário mais leve, a partir dos casos confirmados no boletim oficial. Se estamos prevendo que há 1,2 milhão de casos de Covid-19 a partir desses óbitos oficiais, significa que temos muito mais casos? Significa que ultrapassamos os Estados Unidos? Para que epidemia estamos olhando? Uma epidemia atrasada em média de uma ou duas semanas?”, questionou Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e membro do grupo.

Não ter uma noção real dos mortos preocupa porque a informação é fundamental para que governos atuem para conter a crise, explicou João Abreu, cofundador da Impulso, que, junto com o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto Arapyaú, criou a plataforma Coronacidades, que dá apoio técnico para estados e municípios no combate à pandemia a partir de simulações da demanda por leitos e do diagnóstico do nível de preparo local. “A gente tem recursos limitados. Muitas cidades não sabem como fazer para testar, não há protocolos. A gente deveria usar esse tipo de informação, por exemplo, para direcionar a aplicação de testes, que são limitados. Se você tem uma equipe de saúde, você deveria mandar para regiões com mais casos. Essa distribuição pode estar indo para o lugar errado”, enfatizou o economista.

Para Abreu, o número de casos de infecção por Covid-19 fornecido pelas secretarias é “inútil” diante da falta de testes. Um estudo feito pelo Coronacidades apontou que, nos municípios brasileiros com mortes registradas até esta semana, 14 têm uma taxa de mortalidade abaixo da média mundial, o que pode indicar que o cenário real de óbitos não está sendo contabilizado. Entre essas cidades estão capitais como Belo Horizonte, Florianópolis e Cuiabá. “Está todo mundo falando que está fazendo gestão da epidemia, mas ninguém está fazendo. Os dados não são adequados para fazer gestão. Como a gente está explicando isso para as famílias das vítimas? O ‘e daí?’ do presidente é generalizado. Ninguém está gerindo a epidemia efetivamente. As pessoas estão enxugando gelo”, avaliou Domingos Alves, da USP.

Outro efeito pernicioso da subnotificação é transmitir a falsa sensação de que a epidemia está se dissipando. “Passa para a população uma ideia de que o problema é menor do que é, e isso tem uma péssima consequência, que é a diminuição progressiva das taxas de isolamento”, concluiu o infectologista Urbaéz, da SBI do DF. Foi o que aconteceu no Brasil nas últimas semanas, com o recuo progressivo do confinamento. Não à toa, e nem por falta de alerta de especialistas, mais de 400 pessoas estão morrendo por dia no país em decorrência da doença. E esse número, já assustador, é aquele oficial, ou seja, o subnotificado.

Por Marlen Couto, na Revista Época







Para saber mais, clique aqui.


Para saber mais sobre o livro, clique aqui. 

Teatro completo





Para saber mais, clique aqui.