quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Como usar inteligência artificial para combater a corrupção?


O gasto do governo federal em 2016 será de aproximadamente R$ 3 trilhões. Parte desse dinheiro irá parar nos bolsos de corruptos, como resultado de compras superfaturadas, venda de favores e outros crimes. É impossível fiscalizar centavo por centavo: são centenas de milhares de compras públicas, pagamentos de salários e repasses a ONGs. É possível, porém, automatizar o processo com o uso de inteligência artificial (IA).

O uso de IA faz parte do nosso cotidiano há algum tempo: a humanidade já se habituou a tradutores automáticos (como o Google Translate) e a assistentes virtuais (como Siri e Cortana), por exemplo. Quando seu banco telefona e pergunta se foi você mesmo que comprou aquela passagem para Cancún isso acontece porque um algoritmo de IA disparou o alerta. Médicos rotineiramente submetem imagens de biópsias a aplicativos que dizem se há ali algum tumor maligno. Mais recentemente, a Uber botou em circulação em Pittsburgh, nos Estados Unidos, seus primeiros carros autônomos.


A lógica de funcionamento é a mesma na maioria dos casos: você “alimenta” o algoritmo com casos passados e com isso o algoritmo “aprende” a prever ou classificar casos novos. Considere, por exemplo, a base de dados de um grande banco qualquer. Essa base contém dados sobre cada compra no cartão de crédito de cada cliente: data, horário, local, valor e se a compra foi identificada como fraudulenta (digamos, com base em reclamação do cliente). Quando o banco submete essa base a um algoritmo de IA, o algoritmo identifica os padrões e regularidades mais comumente associados às compras fraudulentas: horário, local, valor e quaisquer outras informações que existam na base. Uma vez alimentado (no jargão da inteligência artificial diz-se “treinado”), o algoritmo pode ser usado para identificar se novas compras são ou não fraudulentas.

Pois essa mesma lógica vem sendo usada no combate à corrupção. O Cadastro de Expulsões da Administração Federal (CEAF), por exemplo, contém dados sobre servidores punidos com perda do cargo. O Observatório da Despesa Pública (ODP) da Controladoria-Geral da União (CGU) usou um algoritmo de inteligência artificial para identificar os padrões mais comumente associados aos servidores expulsos: forma de ingresso no serviço público (concurso ou cargo de confiança), filiação partidária, se é sócio de empresa, etc. Com isso foi possível desenvolver um aplicativo que diz, para cada um dos 1,2 milhão de servidores do Executivo federal, a probabilidade de esse servidor ser corrupto. Naturalmente trata-se apenas de uma probabilidade, não de uma certeza; não chegamos (ainda) ao mundo de Minority Report. Mas a probabilidade é um primeiro passo: no mínimo ajuda a decidir quais investigações priorizar.


 Outros órgãos também vêm usando IA no combate à corrupção. A Receita Federal tem usado IA para detectar exportações fictícias e pedidos fraudulentos de compensação tributária – o que, numa análise inicial, pode gerar R$ 16 bilhões de arrecadação em multas e recolhimento de tributos devidos. O Banco do Brasil, por sua vez, tem usado IA para análise de crédito. O Ministério do Planejamento tem usado IA para identificar fraudes na folha de pagamentos do funcionalismo. A lista não se restringe ao Executivo federal: Legislativo e Judiciário, bem como órgãos estaduais e municipais, também têm explorado o potencial de IA.


Ainda há muito por fazer. O concurso público privilegia candidatos capazes de memorizar leis e regimentos internos; apenas acidentalmente selecionam-se candidatos capazes de usar ferramentas de IA. É preciso recrutar melhor e, ao mesmo tempo, capacitar os já recrutados para que possam tirar proveito dessas ferramentas. É preciso, ainda, facilitar a troca de dados entre diferentes órgãos e eliminar retrabalho (hoje diferentes órgãos gastam um tempo enorme limpando e carregando as mesmas bases). Mesmo com esses obstáculos, porém, o potencial de IA é imenso na administração pública.

Thiago Marzagão, cientista de dados. PhD pela Ohio State University.

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A corrupção aos olhos de Shakespeare. Aqui.

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