sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O PLS 104/2014 – Complementar: centenas, milhares de novos municípios à vista. Ou: a arte de projetar cavalos e obter camelos...


Há que diga que o Brasil comporta, a um só tempo, dois países. Em um deles, poucos tem tudo – tal qual a Dinamarca; enquanto no outro – como uma capitania de Zimbábue, muitos têm quase nada.

É uma figura que nada deve à realidade. O país, historicamente, tem se caracterizado pelas abissais desigualdades. E forçoso é reconhecer que o país comporta não dois, mas inúmeros países em seu interior.

Entre as desigualdades mais expressivas, salta aos olhos as existentes entre os municípios e as que se estabeleceram entre as regiões. Enquanto as regiões Sul e Sudeste seguem, resolutas, desbravando o século XXI, outros municípios e regiões mantêm-se aprisionados ao século passado, prisioneiros do atraso e do subdesenvolvimento.

O Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) enfatiza, no último levantamento, que as diferenças regionais no Brasil continuam aviltantes. Conforme o estudo, os 500 municípios com menores IFDMs estavam, em 2011, 13 anos atrás dos 500 na liderança do ranking.


Médica e professora da UFRJ, Ligia Bahia acredita que, para diminuir a disparidade regional, é necessário que haja prioridade orçamentária e de recursos humanos:

— Sem planejamento, sem articulação entre o social e o crescimento econômico, essa desigualdade não acaba. Não adianta só repassar verba, não pode ficar mais achando que política social é melhorar renda e só. Se melhora a renda e não melhora, por exemplo, a qualidade da Saúde oferecida, em algumas cidades a pessoa vai continuar morrendo sem diagnóstico. Diminuir a disparidade é dar também mais chance de sobrevivência, de uma vida melhor.


Temos um longo caminho a percorrer até que o país consiga estabelecer um mínimo de equilíbrio entre os municípios e, também, um razoável equilíbrio entre as regiões.

O Estado nacional tem que assegurar a todo cidadão – independentemente de onde nasça ou resida – existência condigna: condições adequadas de saúde e hospitais decentes; universalização do ensino de qualidade; melhores condições de emprego e renda; um eficaz sistema de transporte público; infraestrutura física consonante com as exigências do desenvolvimento; serviços públicos de qualidade; enfim, condições para que a cidadania se afirme para além da letra petrificada da lei.

Em sua busca por afirmação, os municípios têm uma longa história de êxitos e fracassos.

A instituição do município no Brasil, legado do processo de colonização português, remonta ao século XVI.

Naquele período, a configuração do poder assumia uma estruturação bastante diferenciada da atual. Os poderes locais - executivo e legislativo, eram centralizados e exercidos por uma única instituição, a Câmara Municipal. Foi a primeira experimentação de instituição local.

À medida que foi passando o tempo, novas conquistas se efetivaram e, já na Constituição de 1824 - complementada com o Ato de 1828, as cidades e vilas adquiriram o direito de eleger uma Câmara com responsabilidade de governar o município e administrar a economia local.

O fim do Império e o advento da República trouxeram novos ares, oxigenou a vida política do país, e agregou à história da municipalidade um princípio vital: a autonomia municipal.

A Constituição de 1891 atribuiu aos Estados a responsabilidade de proceder a organização de suas unidades municipais, consagrando a autonomia, e estendendo seus limites aos marcos de "... tudo que respeite seu peculiar interesse."

Na década de 30, ocorreu uma inversão de tendências. Grandes transformações se processavam no seio da sociedade, e a centralização passou a ser o princípio cristalizado na administração pública. Deste contexto resultou a supressão da autonomia dos estados e municípios, só não verificada no breve interregno em que vigorou a Constituição de 1934.

Após a segunda Guerra Mundial, a derrota das forças nazifascistas reorientou a paisagem política no mundo. O Brasil se redemocratiza e resgata, em sua constituição, o pilar estrutural: a autonomia municipal.
A Constituição de 1946 chega a limitar as possibilidades de intervenção dos estados nos municípios, só a permitindo no caso de inépcia financeira. Em todos os demais casos, à Câmara Municipal cabia exercer a fiscalização sobre os atos do executivo.

Em 1964, nova reviravolta restabelece os princípios autoritários de gestão, com destaque para a concentração e a centralização administrativa. A autonomia municipal é reduzida a farrapos. Uma reforma tributária é concebida para fragilizar as municipalidades, mantendo-as dependentes de fundos transferidos; e os casos em que a intervenção municipal é admitida se multiplicam. Na Emenda Constitucional de 1969, as possibilidades de intervenção dobram, passando de três para seis. Mas o estado autoritário ignora até mesmo a legislação arbitrária por ele engendrada, e costumeiramente decreta intervenção no município ignorando dos limites previstos na constituição.

Neste período em que o estado de direito foi manifestamente aviltado, o município se viu desfigurado; as câmaras de vereadores humilhadas com recessos compulsórios; mandatos eletivos conspurcados com a cassação; direitos políticos de prefeitos, vereadores, lideranças institucionais e populares simplesmente suprimidos.

Para manter amordaçada a população todo o processo de comunicação social recebia censura prévia. Enquanto as universidades e centros de estudos eram controlados; as capitais dos estados, as "estâncias hidrominerais" e as "áreas de interesse da segurança nacional" eram impedidas de exercer a conquista obtida na década de 30, o sufrágio universal: seus prefeitos não eram eleitos e sim nomeados.

Ao contrário do que ocorre nas ditaduras, nas democracias a tendência é pelo fortalecimento dos governos locais. Seguramente por se constituírem no poder mais próximo e acessível, plenamente ao alcance do cidadão comum. É no município que as pessoas vivem, trabalham, se divertem, estudam e constroem a prosperidade das atuais e futuras gerações.

Com o resgate do estado de direito, a constituição de 1988 tornou a resgatar as prerrogativas antes suprimidas, acrescentando outras, de grande importância para o desenvolvimento sustentável e para as comunidades locais.

O município pulsa, dá movimento à vida comunitária, mais uma razão para torná-lo referencia e absoluta prioridade no processo de planejamento público.

Natural, portanto, que as comunidades dos pequenos povoados e distritos almejem a transformação de seus espaços em municípios na perspectiva de acessar o desenvolvimento, gozar seus benefícios; correto? Não!, não é correto! Mas, no Brasil, é como se existisse somente este modelo, como se a única alternativa para alcançar serviços públicos minimamente decentes fosse instituir o município. Ledo engano. É aqui que, matreiramente, os políticos oportunistas ganham destaque surfando nas ondas artificiais criadas.

Quando se trata dos entes federados e de suas dimensões e burocracias, a solução será – muito raramente – ampliar. Quase sempre, o correto será enxugar, cortar, otimizar; fazer mais e melhor com menos, mesmo porque, trata-se de lidar com o axioma de que os recursos disponíveis serão sempre limitados.

Atentemos para o que está acontecendo, neste instante, na França. O país está promovendo uma verdadeira revolução administrativa em seus espaços e instâncias de representação regionais. E isto numa fração do tempo: apenas dois meses. Os franceses estão objetivando, segundo o presidente François Hollande, alcançar uma gestão pública mais ágil e menos custosa; exatamente a mesma argumentação que a intelligentsia nacional está adotando para justificar a nova leva de municípios que já se encontra no forno. Não é hilário o paradoxo?

A França compromete, hoje, 55% do seu PIB entre a Administração central, as 36.700 comunas ou municípios, as 13.400 associações de municípios, os 96 departamentos ou províncias - com seus respectivos conselhos gerais ou assembleias (4.058 cargos eleitos com salário) - e as 22 regiões com seus conselhos regionais (1.757 cargos).

Com a reforma e as novas fronteiras internas o país de Rodin, Taunay e  Debret obterá uma economia de algo entre 36,5 bilhões de reais a 76 bilhões de reais nos próximos três anos.

A França não está reinventando a roda. Diversos países europeus têm optado por estruturas municipais/regionais mais enxutas e eficazes, abandonando os modelos sacramentados na América Latina onde estruturas e burocracias gigantescas dão azo à corrupção e à baixa qualidade dos serviços prestados.

A Grécia, por exemplo, chegou a contar com 54 províncias. Hoje, se recupera da enorme crise que ainda assola o país com 13. A Dinamarca reduziu de 14 para 5 regiões, e a Suécia tomou a decisão de reduzir para menos da metade suas 21 regiões.

Infelizmente, no Brasil, temos navegado na contramão.

O governo vetou, há pouco tempo, o projeto de lei PLS 98/2002 alegando, com  justa razão, que o projeto estimularia a criação de pequenos municípios , fragmentando ainda mais a divisão dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios e, consequentemente, fragilizando a boa gestão municipal. Apesar do veto não ter sido, ainda, votado pelo Congresso, com a proximidade das eleições, os senadores aprovaram, numa maratona de votações, o projeto de lei complementar PLS 104/2014 - Complementar. As previsões mais serenas estimam que, a curtíssimo prazo, teremos a criação de, no mínimo, 200 novos municípios. Portanto, mais prefeitos, mais vereadores, mais servidores públicos, mais gastos com custeio da máquina pública, mais orçamento para as despesas correntes e, consequentemente, menos recursos globais para investimento.

Tudo está sendo processado sob uma áurea de atendimento das necessidades cientificamente identificadas e tecnicamente comprovadas – afinal, o meio publicitário já comprovou: pesquisas e estudos de viabilidade existem em profusão para atender os interesses dos que se dispõem a pagar. Está lá no PLS. O artigo 2º estabelece como uma das condições para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, a realização de Estudos de Viabilidade Municipal (EVM). A preocupação em criar uma carapaça pelo menos aparentemente técnica e científica é tamanha que o texto repete 28 vezes o termo Estudos de Viabilidade Municipal ou sua sigla, EVM.

Vejam se o artigo 1º do PLS não é uma candura.

“(...)
Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos termos do § 4º do art. 18 da Constituição  Federal e dá outras providências.
(...)

Sobre a criação de municípios, não há o que dizer. As porteiras foram escancaradas como, convenientemente, convém nos períodos eleitorais. 

Já quanto à incorporação e a fusão de municípios a que alude o artigo, está mais para uma patacoada, uma piada de salão, um pastelão que não passaria no controle de qualidade de Chaves, Mussum e Zacarias. Algum dia veremos ocorrer no país essas glamorosas figuras da incorporação e da fusão de municípios? Quando cortar gastos, reduzir despesas, combater a sobreposição de ações, projetos e instituições não for entendido como sandice, teremos atingido uma administração pública bem mais próxima da eficácia. No Brasil, o aparelho de estado se agiganta diuturnamente. É como se tomado por um cancro fatal que consume as forças e energias da nação, alimentando uma enorme burocracia, forjada para criar dificuldades e lucrar com a venda de facilidades. Resultado: corrupção endêmica. Observe, caro leitor, que na incorporação ocorre a completa integração de um Município a outro preexistente, perdendo o Município integrado sua personalidade jurídica, prevalecendo a do Município incorporador; e na fusão, a completa integração de 2 (dois) ou mais Municípios preexistentes, originando um novo Município com personalidade jurídica própria. É o que dispõe o projeto de lei.

O PLS ainda segue para sanção da presidente da República, mas, ano eleitoral, há quem duvide que será editada com pompa e circunstância? A desculpa para o imbróglio já está na ponta da língua. O repertório de pretensas justificativas é extenso:

- Agora as coisas são diferentes, as regras tronaram-se mais rígidas...
- O texto anterior, vetado pela presidente, era frouxo...
- Os povos dos rincões mais distantes e abandonados agora terão desenvolvimento...

E assim segue nossa sina: projetamos cavalos árabes puros-sangues para vermos emergir, ao final de linha de produção, não mais que uma cáfila de animais pernetas, doentes e desdentados.  


 Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular Mané Beiçudo.