segunda-feira, 18 de agosto de 2014

As impressoras 3D que importam

Esqueça bonequinhos e canecas de plástico. As máquinas 3D que estão mudando o mundo recriam partes do corpo, comida, remédios e poderão até curar o câncer e reconstruir moléculas aliens

Da revista Galileu

A jato de células: Bioimpressora produz tecidos humanos em centro de pesquisas em San Diego, nos EUA (Foto: U-T SanDiego/ZUMAPRESS)

Quando as impressoras 3D domésticas começaram a aparecer, em 2010, a revista de tecnologia Wired saudou em sua capa uma “nova revolução industrial”. Desde então, foram incontáveis previsões de como todos passaríamos a fabricar objetos em casa assim que as máquinas barateassem. Quatro anos depois, é possível comprar aparelhos de US$ 100 a US$ 300, mas as “fábricas caseiras” estão longe de vingar — e talvez nunca vinguem. A tecnologia, no entanto, não deixou de trazer transformações profundas. Esqueça os bonequinhos e canecas de plástico malfeitos. Já estamos começando a imprimir em 3D remédios, vasos sanguíneos, cartilagens, ossos, vírus, armas e até casas inteiras. Veja a seguir alguns desses projetos, que têm ambições tão grandes quanto a cura do câncer ou a cópia de organismos aliens.
VÍRUS > CÂNCER NA MIRA
Já se modelam e imprimem em 3d micro-organismos vivos. cientistas querem usá-los contra os tumores
A empresa norte-americana Autodesk abriu no final do ano passado um laboratório de pesquisas em San Francisco voltado a “simplificar a impressão de organismos” — isso mesmo, estamos falando de bactérias, vírus ou células. A companhia já fornece softwares como CADnano, ou o “CAD para origami de DNA”, que modela as estruturas básicas da vida para que seja possível imprimi-las depois. O software está dentro do Project Cyborg, iniciativa voltada a criar ferramentas para “programar matéria”, que tem parcerias com pesquisadores das Universidades Harvard, Stanford e MIT.
À frente do projeto está o biólogo Andrew Hessel, que fundou em 2009 uma startup de biotecnologia voltada a criar curas baratas para o câncer de mama. O cientista, agora comandando um grupo de pesquisa na Autodesk, pretende usar a impressão 3D para ajudar na produção de remédios contra a doença (leia ao lado depoimento dele a GALILEU). O objetivo é retirar amostras de tumores, sequenciar seus DNAs, e usar o genoma para imprimir um antídoto específico. Com essa assinatura genética, diz Hessel, seria possível desenhar uma cepa de vírus que se ligasse apenas às células cancerosas, matando-as (veja abaixo).
Parece ficção científica, mas a ideia está mais perto do que se imagina. Em maio, Hessel produziu o seu próprio vírus com impressoras 3D, num processo que demorou duas semanas — o primeiro vírus sintético, feito em 2003 por Craig Venter, levou 5 anos de pesquisa.
Uma outra tecnologia também tenta usar as máquinas na luta contra o câncer. O pesquisador Wei Sun, da Universidade Drexel, no EUA, usa uma impressora 3D para criar tumores vivos nos quais é possível testar medicamentos. Isso elimina a etapa inicial: o laboratório vai direto à experiência em cânceres reais, produzidos em laboratório e não inoculados em animais de teste. O resultado são que os remédios contra o câncer são testados mais rapidamente.
 (Foto: Revista Galileu)

HACKEANDO MICROORGANISMOS
Depoimento: Andrew Hessel, pesquisador da autodesk
“Os vírus são softwares vivos e a célula é como um computador, que tem um sistema operacional — o genoma. Como softwares, os vírus são capazes de reprogramar a célula para que ela faça coisas diferentes. Com o sequenciamento, já podemos ler códigos genéticos de vírus e estamos aprendendo a reprogramá-los. Melhor ainda: a tecnologia de síntese de DNA permite criar qualquer genoma de vírus do zero, a um custo relativamente baixo. E aí entra a impressão 3D. Para imprimir um vírus, só precisamos colocar um genoma sintético sobre uma base de células, que funcionam como fábricas. Contra o câncer, o ideal seria um antibiótico capaz de identificar as células que estão atacando o próprio organismo. Os vírus são muito bons nesta tarefa de atingir células e tecidos específicos. Nosso esforço consiste em programar os vírus para que eles atuem com eficácia e agressividade contra o câncer.”
ALIENS > COISA DE OUTRO MUNDO
Pioneiro da genômica quer sequenciar moléculas encontradas em outros planetas e imprimi-las na Terra
Imprimir organismos em laboratório é coisa do passado para Craig Venter, o pioneiro no sequenciamento do genoma humano e também o primeiro a criar vírus, bactérias e uma célula sintética controlada por DNA feito em laboratório. Hoje sua empresa modifica genomas para, por exemplo, tornar culturas agrícolas mais produtivas e imunes a pragas. O próximo passo, escreve em seu livro Life attheSpeedof Light (A Vida na Velocidade da Luz, sem tradução), é coletar informações de moléculas de outro planeta (Marte, por exemplo), enviar os dados à Terra e usar a impressão 3D para recriar DNAs de aliens (se existirem é claro). Ele nomeou o conceito de “teletransporte biológico” e já construiu um protótipo.
MEDICAMENTOS > REMÉDIOS POR E-MAIL
Cientistas modificam impressora 3d para fazer fármacos e querem agora enviar “receitas” pela web
Sai a tinta da impressora, entram substâncias químicas, moléculas e reagentes. Um grupo de cientistas da Universidade de Glasgow, na Escócia, hackeou uma impressora 3D para desenvolver remédios personalizados. “A ideia é criar a base onde a reação química que produz o medicamento vai ser realizada e, num segundo estágio, adicionar elementos químicos diferentes”, diz o químico Lee Cronin, líder do grupo de 45 pesquisadores à frente do projeto.
A máquina modificada pelos cientistas funciona imprimindo em 3D tubos e câmaras de plástico minúsculos, onde as reações químicas ocorrem — uma espécie de microlaboratório. Depois, uma série de “tintas” (os elementos químicos e reagentes) são colocadas em sequência dentro das câmaras, no momento e na quantidade ideal para as reações que resultam nos remédios. O aparelho já tem nome, “chemputer”, e Cronin cita o ibuprofeno como um dos remédios que pode começar a ser impresso desse jeito.
A iniciativa está criando um software para que, num segundo momento, seja possível enviar um arquivo pela internet com as instruções para montar o medicamento em qualquer lugar. Com o programa, bastaria a impressora e um kit de “tintas” químicas para qualquer pessoa produzir uma droga. O resultado poderia ser customizado para, por exemplo, concentrar mais ou menos a dosagem. “Vamos fazer pela indústria de medicamentos o que a Apple fez com a música”, diz Cronin. “A indústria não vai acabar, mas será alterada em suas bases.”
COMIDA > DESCONSTRUA O PRATO
Deixe a máquina customizar a comida
Impressora 3D de comida já existe (foi lançada este ano), mas os equipamentos que devem ter maior impacto na área ainda estão em estudo. Um dos objetivos é a customização. “É muito fácil acrescentar ou retirar macro ou micronutrientes de um alimento”, diz Daniel van Der Linden, do instituto de pesquisas holandês TNO, que faz protótipos de impressoras de comida para grandes indústrias. Massas com doses extras de cálcio ou de outras vitaminas já saem de suas máquinas. Outro objetivo é perseguido pelo projeto Performance, que recebeu 3 milhões de euros da União Europeia. A iniciativa desconstrói pratos e ingredientes difíceis de engolir e usa uma impressora 3D que refaz sua estrutura para facilitar a mastigação de idosos, por exemplo. “Já reconstruímos cenouras para pessoas com disfasia, uma condição que dificulta engolir”, diz Van Der Linden.
ÓRGÃOS > IMPRIMA A VIDA
Cartilagens e tecidos humanos já saem dos “cartuchos”. Próximo passo são os órgãos
Pioneiro: D'Lima foi o primeiro a imprimir cartilagens na máquina (Foto: Sandy Huffaker/TheNewYork Times)
Criar órgãos humanos em laboratório saiu da lista de feitos impossíveis da ficção científica para entrar no calendário dos cientistas. “Embora as tecnologias atuais já nos permitam fazer estruturas análogas aos tecidos (...) não vamos imprimir corações prontos em 20 anos”, escreve Brian Derby, pesquisador da Universidade de Manchester que monitorou os avanços da bioimpressão em artigo na revista Science. Até lá, no entanto, já temos cartilagens, ossos e vasos sanguíneos.
Um dos casos de sucesso das impressoras 3D biológicas é a reconstituição de joelhos em lesões graves. “Elas são eficientes e baratas na comparação com os métodos tradicionais”, diz o criador dos primeiros modelos de cartilagem impressos em pacientes reais, o ortopedista DarrylD’Lima, que chefia um laboratório de reconstrução de joelhos e recuperação de coluna na Califórnia.
Recuperar cartilagem é difícil. A técnica mais usada hoje consiste em realizar uma biópsia, colher células do paciente e multiplicá-las em laboratório. Mas a falta de circulação sanguínea leva as células a morrer rapidamente. Para resolver esse problema, D’Lima, após cinco anos de pesquisa, conseguiu criar uma cultura de células de cartilagem, replicável com impressão, que permite fazer tecidos de 3 milímetros de espessura. “O uso de impressoras para esta etapa deixa o processo mais barato e confiável porque as cópias saem muito exatas e podem ser cultivadas por mais tempo, antes de serem inseridas no paciente”, diz o ortopedista. Com isso, elas não morrem tão rápido.
Outra área médica que se desenvolveu bastante é a impressão de ossos. Próteses feitas sob medida para pacientes de acidentes graves estão se tornando mais comum. É o caso da usada por Jose Delgado, um americano que nasceu sem parte da mão esquerda e usava uma prótese desconfortável de titânio, que lhe custou US$ 42 mil. O modelo impresso saiu por US$ 50 e é muito mais preciso. Já os médicos do mecânico britânico John Felton estão reconstituindo o rosto do paciente, que sofreu um acidente que lhe deixou deformado, com base em peças confeccionadas em impressoras. E mais: a equipe de GuoZheng, na cidade chinesa de Xi’an, produziu um ombro e um osso da pélvis para três pacientes de câncer ósseo agressivo. Foram os mesmos médicos chineses que deram início às pesquisas com cartilagem.
Outros médicos e cientistas investem em setores mais difíceis. Anthony Atala, pesquisador da Universidade Wake Forest, já recriou as bexigas de sete voluntários. O laboratório do engenheiro biomédico Ali Khademhosseini, de Boston, apresentou em junho deste ano os primeiros vasos sanguíneos sintéticos. E mais: na Alemanha, em Hannover, médicos estão imprimindo células cardíacas com o objetivo de, no futuro, usá-las durante a recuperação dos corações de pacientes vítimas de enfartes.
O procedimento usado por todos os pesquisadores é semelhante: as células são coletadas, cultivadas, transformadas em uma pasta que funciona como a “tinta” da impressora e, depois, reorganizadas em três dimensões. Dos muitos obstáculos ainda a superar, o principal é imprimir em quantidade suficiente para gerar órgãos maiores, com células diferentes entre si e com a irrigação de nutrientes adequada e a rede de nervos necessária para mantê-los funcionais. Isso demanda uma engenharia biológica que ultrapassa o uso das impressoras.
FÁBRICA DE TECIDOS
Máquinas comerciais já imprimem células para testar remédios
Impressora Bioplotter (Foto: Divulgação)


Quer testar um remédio? Além do tradicional rato de laboratório, já existe a opção de fazer o teste em tecidos humanos recém-impressos. “Nossas impressoras podem criar tecidos de fígado, rim, músculos, vasos sanguíneos, nervos, ossos e pele”, diz Michael Renard, vice-presidente executivo da norte-americana Organovo. As culturas ainda não passam de 20 células de espessura. “Não sabemos quanto tempo até criarmos tecidos inteiros.” Já há concorrência. A impressora alemã 3D-Bioplotter, por US$ 188 mil, também produz pedaços de tecido para serem usados em testes clínicos. Ela cria estruturas que servem de base para construir material biológico. O modelo já está em centros universitários da Europa, dos EUA e da Ásia.
NOVA ALIADA > ELA NÃO VAI DESTRUIR A INDÚSTRIA
Antes tida como inimiga, a impressão 3D é incorporadarapidamente pelas fábricas
Pré-moldada: As placas de concreto são feitas pela impressora 3D gigante da Win Sun e depois montadas em menos de 24 horas (Foto: Glowimages)
Relatório divulgado em junho pelo The Manufacturing Institute afirma que 67% das pequenas e médias empresas norte-americanas mobilizam-se para incorporar a impressão 3D — por outro lado, 45% têm dificuldade em usar os equipamentos e em encontrar mão de obra para operá-los. “A indústria mista, que combina técnicas tradicionais com a impressão 3D, já faz parte das empresas aeroespaciais, automotivas, de saúde e de moda”, diz John Hornick, especialista em questões legais envolvendo a nova tecnologia.
O uso dentro das fábricas é variado, mas focado em itens que não precisam de produção em massa, como protótipos (feitos com muito mais rapidez) ou peças de reposição. Dentro da linha de produção da BMW, a empresa começou a desenhar e imprimir ferramentas personalizadas para facilitar o trabalho de seus operários e ferramentas mais exclusivas (cuja reposição pode levar semanas). Outras montadoras, como a Ford, já usam a tecnologia há décadas.
As máquinas também começam a ser empregadas por empresas como a RollsRoyce e a GE para produzir partes mais específicas de aviões. O braço aeronáutico da maior fabricante mundial, a GE Aviation, comprou recentemente a empresa Morris Technologies, focada em impressão 3D. Por último, grandes companhias também começam a investir em máquinas 3D maiores e de grande eficiência. Destaque para a chinesa Win Sun, de Xangai, que no ano passado imprimiu 10 casas em menos de um dia com uma impressora de 32 metros de comprimento por 10 metros de largura.
PIRATARIA > A MÁQUINA QUE COPIAVA
Indústria teme perdas em copyright
Arquivos de joias 3D foram impressos sem autorização (Foto: Divulgação)


Se a impressão caseira em massa não preocupa os fabricantes, o mesmo não pode ser dito da pirataria. Relatório da consultoria Gartner estima que em 2018 as indústrias perderão US$ 100 bi por ano de propriedade intelectual por conta da tecnologia 3D. Um caso que ilustra a tendência é o do engenheiro americano Duann Scott, que desenhou e imprimiu uma trava quebrada de seu carrinho de bebê por US$ 24, em vez de pagar os US$ 250 pedidos pela fabricante pela nova peça. Outro é o de designers americanos, como Jessica Rosenkrantz e Asher Nahmias, que já reclamam de impressões não autorizadas de seus arquivos (como a joia acima).
O site PirateBay, conhecido por ignorar copyright, chegou a abrir uma seção para arquivos de impressão 3D, o que deixou a indústria de cabelo em pé. Tanto que a empresa Authentise lançou um mecanismo para bloquear impressões não autorizadas de modelos 3D. “A concorrência da pirataria está chegando a versões produzidas nas mesmas impressoras 3D que a indústria usa”, diz John Hornic, advogado especializado no tema.
ÉTICA > ARMAS, DROGAS E SEGURANÇA
Quem conseguirá regularo uso da nova tecnologia?
The liberator: Arma em 3D foi proibida depois de 100 mil downloads (Foto: Robert MacPherson/AFP Photo)




Quando a "Liberator", a primeira arma funcional feita em uma impressora 3D, surgiu,em 2013, uma grande discussão tomou conta do setor. Antes de o arquivo ser proibido pelo Departamento de Estado dos EUA, ele foi baixado 100 mil vezes na internet. “Quem regula a impressão de armas, ou mesmo a produção de veículos?”, questiona John Hornick. “E se um carro criado em impressora 3D tiver problemas estruturais que provoquem acidentes?”
A impressão de remédios mostrada no início desta reportagem também permite que sejam criadas e distribuídas drogas ilegais:bastaria  o kit de químicos certo, a impressora e um arquivo que transforma a máquina em laboratório. Outro dilema ético é a biopirataria: um remédio modificado e enviado por e-mail poderia provocar epidemias graves. “Estes são perigos concretos. O policiamento vai precisar evoluir para acompanhar estas evoluções”, diz Lee Cronin, o responsável pela impressora 3D de remédios.
FAIL > ADEUS, FÁBRICAS DOMÉSTICAS?
3 razões por que elas não vingaram
As maiores fabricantes de impressoras 3D domésticas vendem 5 mil unidades por trimestre contra 80 milhões de PCs. Especialistas explicam por que elas não "pegaram":
1. CONSUMO EXCESSIVO
Elas não garantem produção em larga escala viável, e ainda consomem recursos (de plástico a energia) em quantidades desastrosas: um simples boneco de action figure usa três vezes mais plástico e quatro vezes mais energia, além de ainda ser bastante demorado
2. INTERFACE POUCO AMIGÁVEL
“As impressoras 3D ainda precisam que o usuário tenha conhecimentos de programação e engenharia que barram sua disseminação”, diz o arquiteto da computação SkylarTibbits, diretor do Self-Assembly Lab do MIT
3. TECNOLOGIA IMATURA
“Qualquer um que usa as máquinas, imediatamente fica esperando mais rapidez, mais qualidade e possibilidade de imprimir maior e com materiais mais baratos”, escreve na revista Wired Carl Bass, CEO da Autodesk, que fabrica softwares e os próprios equipamentos