terça-feira, 7 de outubro de 2014

Devemos culpar São Pedro pela escassez de energia?


O objetivo deste artigo é apresentar evidências da escassez de oferta de energia e identificar suas causas. Como veremos, a hidrologia ruim explica apenas parcialmente a escassez de oferta. Instrumentos inadequados de planejamento e uma política de modicidade tarifária excessiva, que leva a atrasos e não entrega de obras também contribuíram para o atual quadro.

Por Raul Velloso e Paulo Springer de Freitas

I – Evidências de crise de oferta energética
Desde o final de 2013 a sociedade brasileira vem discutindo a possibilidade de estarmos encaminhando para um novo racionamento, semelhante ao que houve em 2001.  A queda no volume de água armazenado nos reservatórios, que se aproxima dos valores perigosamente baixos observados naquele ano, é a evidência mais aparente de que há algo errado com o sistema elétrico. Mais especificamente, ao final da estação chuvosa, em abril, os reservatórios da região Sudeste/Centro Oeste, principal região produtora de energia do País, estavam com menos de 39% de sua capacidade preenchida, quando o normal, para essa época do ano, seriam valores acima de 70%. Em fevereiro, o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Hermes Chipp, disse esperar que os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste chegassem ao final de abril com armazenamento médio de água de, no mínimo, 43% da capacidade total, para garantir o fornecimento de energia no país ao longo de 2014 e também 2015.

Uma melhora das condições hidrológicas na região Sul e, principalmente, um arrefecimento da demanda por conta da estagnação do PIB e do aumento de preços da energia para alguns consumidores1, fez com o risco de racionamento em 2014 se reduzisse. O nível dos reservatórios ficou praticamente constante entre abril em junho (em torno de 42% para o país como um todo, e em torno de 37% para o Sudeste/Centro-Oeste), e, embora tenha caído cerca de 5 pontos percentuais desde então, o risco de racionamento caiu significativamente.

Mesmo com menor risco de racionamento, não se pode ignorar que o Brasil enfrenta uma crise de oferta de energia elétrica. O nível dos reservatórios está próximo ao mínimo observado nos últimos 13 anos, conforme pode ser visto no gráfico abaixo2:

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Fonte: CCEE. (Clique no gráfico para ampliar)

Além do baixo nível dos reservatórios, outros fatores corroboram a tese de escassez de oferta:

i) Despacho integral de usinas termoelétricas desde outubro de 2012. O sistema brasileiro é planejado para dois tipos de usina. Um funcionando continuamente, predominantemente hidroelétricas, e outro constituído pelas chamadas usinas de geração por disponibilidade. Trata-se de usinas térmicas que foram construídas com o objetivo de gerar energia somente em condições excepcionais, cerca de 4% do tempo. Essas usinas têm por característica apresentarem custo de construção relativamente baixo, mas elevado custo de produção de energia.

O sistema funciona da seguinte forma: quando a situação hidrológica é favorável, não há necessidade de a termoelétrica produzir energia, pois a produção a partir de usinas hidrelétricas é mais econômica. Nesse caso, a usina termelétrica fica parada e recebe, mensalmente, uma espécie de aluguel. Quando a usina é chamada para gerar energia, além do aluguel, ela cobra o custo do combustível (normalmente óleo combustível) e demais custos operacionais. O custo da energia produzida por essas usinas varia, de valores próximos a R$ 100,00 a valores acima de R$ 1.200,00. As usinas são chamadas a produzir na ordem de seu custo, à medida que a escassez aumenta: primeiro as mais baratas e assim sucessivamente, até chegar às mais caras.

Como dissemos, desde outubro de 2012, praticamente todas as usinas térmicas vêm operando continuamente. Ora, se tudo estivesse ocorrendo como planejado, as usinas térmicas somente teriam sido ligadas durante 4% do período, ou seja, em torno de um mês; jamais estariam funcionando ininterruptamente por praticamente 24 meses.

A contrapartida da escassez é o aumento de custo. Estima-se que a crise do setor elétrico tem gerado custos da ordem de mais de R$ 50 bilhões. Ainda não é claro quem vai pagar essa conta: se geradores, distribuidores, governo (leia-se, os contribuintes) ou os consumidores de energia. Assim, mesmo que todo esse custo ainda não tenha se refletido nas contas de luz, ou mesmo que jamais venha a ser incorporado, para a sociedade como um todo esse custo existe, e é elevado.

ii) O problema poderia não estar na escassez de oferta, mas em um aumento desproporcional da demanda. Mas não é isso que está ocorrendo. A demanda por energia, sobretudo em função do baixo crescimento do PIB, está evoluindo de acordo ou até mais lentamente do que o planejado. Em 2009, por exemplo, projetava-se uma demanda de 65 GWm para 2013.

Esse valor manteve-se aproximadamente constante ao longo do período. No início de 2013, a demanda estimada era de 63,4 GWm e fechou o ano em 62,8 GW médios, abaixo, portanto, daquela prevista quatro anos antes. Para 2014, a demanda efetivamente observada também está menor do que aquela prevista nos últimos cinco anos. Em 2009, por exemplo, projetava-se uma demanda de 69,4 GWm para 2014. A projeção mais recente para a carga média deste ano é de somente 64,9 GWm, segundo estimativa do ONS.

iii) A expansão da oferta tem sido significativamente inferior à projetada. Atrasos na conclusão de obras ou simplesmente desistência dos projetos (explicaremos suas causas mais adiante) têm feito com que a EPE venha sistematicamente superestimando a capacidade de geração de energia. Se olharmos para a garantia física, as projeções para 2013 partiram de 71,2 GWm em 2010, atingiram um pico de  72,9 GWm em 2011, mas recuaram para 65,2 GWm em 2013. A tabela abaixo sintetiza as projeções de oferta e carga de energia para 2013 e 2014.

Tabela 1: Projeções para 2013 e 2014 de garantia física de energia e carga, em GWh
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II – Causas da escassez de oferta
Uma vez evidenciada a escassez de oferta, discutiremos a seguir suas possíveis causas. Apesar de elas não serem excludentes, gostaríamos de chamar atenção para a última – política tarifária –, que usualmente é pouco lembrada.

A primeira explicação, mais utilizada pelos órgãos governamentais para justificar a crise de oferta, é a hidrologia ruim. É verdade que 2014 (até agosto) vem sendo um ano ruim, com chuvas equivalentes a 81% da média histórica. Mas 2013 foi um ano de hidrologia normal, onde choveu 97% da média histórica e, ainda assim, os reservatórios terminaram o ano em 43% da capacidade, o 3º menor valor dos últimos 15 anos. Se pensarmos na hidrologia acumulada nos últimos três anos, o triênio 2012-2014 estaria entre os 25% mais secos desde o início da série histórica, em 1930. Ocorre que o sistema é planejado para acionar as térmicas somente 4% do tempo. Isso significa que o cenário hidrológico atual, apesar de ruim, não é tão catastrófico para justificar o acionamento permanente das térmicas de disponibilidade há quase dois anos ininterruptamente.

A raiz do problema, portanto, está no planejamento, que tem sido deficiente. Na seção anterior adiantamos o ponto, mostrando que a EPE superestimou a oferta de energia para 2013 e 2014. Ou seja, a energia efetivamente disponível para esses anos é inferior àquela que a EPE havia projetado nos anos anteriores. Observe-se que ali falamos de energia garantida, ou seja, da quantidade de energia que as usinas devem ser capazes de entregar, em média, no longo prazo. A frustração de oferta pode ser explicada por dois fatores:
  1. Instrumentos inadequados de planificação
  2. Atrasos ou cancelamentos de obras.
Vamos tratar desses dois assuntos a seguir, lembrando que não são explicações excludentes.

Instrumentos inadequados de planificação
Essa hipótese foi levantada por consultorias do setor, como a PSR. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) é a responsável pelo planejamento de longo prazo da oferta de energia elétrica. Resumidamente, a EPE recolhe das distribuidoras a estimativa de demanda para os cinco anos seguintes. Com base nessas estimativas, ela faz um cronograma de expansão da oferta, de forma tal que a expansão do sistema (com usinas das mais diferentes fontes) seja capaz não somente de atender ao aumento esperado para demanda, como também de gerar um pequeno excesso de oferta (normalmente acima de 5%1), para dar segurança ao sistema.

O que provavelmente está ocorrendo, na opinião de especialistas, são falhas nos modelos de previsão. Essencialmente, os modelos orientam o planejador ao dizer qual a capacidade de produção das usinas que estão em funcionamento (sendo que essa capacidade depende crucialmente do nível de reservatórios e da hidrologia esperada) e qual capacidade adicional é necessária para fazer frente à demanda estimada. Os modelos, contudo, podem prever erroneamente a capacidade de geração, atual e futura. Por exemplo, com o passar do tempo, as turbinas das usinas podem perder eficiência, de forma que passem a necessitar maior quantidade de água para gerar determinada quantidade de energia. A ONS, quando opera o sistema, determina que determinada usina produza x unidades de energia. Para produzir essa quantidade, a ONS estima que utilizará uma quantidade y de água. Ocorre que, se os modelos não estiverem capturando a perda de eficiência das turbinas, a quantidade de água utilizada não será y, mas um valor z > y, e o reservatório irá secar mais rapidamente. Além da perda de eficiência, o modelo pode não estar capturando outras fricções, como o desvio de água para outros fins, como irrigação (isso parece ser particularmente importante no Rio São Francisco), ou o assoreamento das barragens, que faz com que a quantidade de água efetivamente existente na represa seja menor do que aquela que se acredita existir.

Se o modelo prevê uma capacidade de geração menor do que a verdadeira, irá recomendar ao planejador licitar um menor volume de aproveitamentos do que aquilo que seria efetivamente necessário.

Atraso ou não entrega das obras
Uma vez conhecendo a necessidade de expansão de energia, a EPE determina quais usinas serão licitadas. Via de regra, a licitação ocorre com uma antecedência de cinco anos para projetos hidroelétricos, e de três anos, para projetos de termoelétricas. Tendo em vista o tempo necessário para construir as usinas, eventuais erros de planejamento ou de execução requerem tempo para serem corrigidos.

O que observamos nos últimos anos foi um excesso de adiamentos e cancelamentos de obras. Em 2011, dos 2.180 MW médios previstos para entrar em operação, nada menos que 980 MW médios foram cancelados. Em 2012, a previsão era de 2.327 MW médios, mas somente 45% foi entregue no prazo. A frustração de oferta prosseguiu em 2013, com apenas 27% dos 4.672 MW médios previstos tendo sido entregues na data correta. Enfim, o quadro se repete em 2014, com menos de 50% das usinas contratadas ficando pronta no prazo previsto. Mais recentemente, a Usina de Santo Antonio solicitou à Aneel autorização para atrasar as obras em 63 dias.

É normal haver fatos intervenientes que possam atrasar a entrega das obras, mas, queremos crer, que tais atrasos sejam devidamente incorporados nas previsões do órgão planejador. Contudo, os atrasos que vêm ocorrendo, na frequência e magnitude com que se manifestam, inclusive com cancelamento de projetos, não podem ser creditados a causas fortuitas.

A escassez de oferta decorre de uma política governamental de tentar impor modicidade tarifária a qualquer custo.

Após o racionamento de 2001, e com o início do primeiro mandato de Lula, em 2003, o governo entendeu ser necessário alterar o marco regulatório vigente para garantir, simultaneamente, modicidade tarifária e segurança energética. Ocorre que tais objetivos são conflitantes. Maior segurança energética requer construção de mais usinas, de forma a garantir que a oferta seja sempre capaz de atender a demanda. É necessário construir usinas termelétricas tanto para operar na base (ou seja, continuamente), como para ficar à disposição, para gerar energia em períodos que, por fatores fora do controle (como hidrologia excepcionalmente ruim), seja necessária a energia extra. Em ambos os casos, maior segurança energética implica maior custo e, na ausência de subsídios governamentais (leia-se, do contribuinte), maior tarifa ao consumidor

O processo licitatório consiste, grosso modo, na realização de um leilão em que vence o licitante que oferecer o menor preço por unidade de energia produzida. Quanto menor for o número de usinas leiloadas, mais acirrada será a competição entre os licitantes, o que estimula a oferta de lances com preços mais baixos.

É difícil estabelecer se a EPE licitou usinas em quantidades compatíveis com a necessidade energética do País. Desde 2010, cerca de 7 mil MW médios deixaram de ser entregues ou sofreram atraso. Entretanto, desde outubro de 2012, o despacho de energia térmica aumentou em mais de 10 mil MW em relação ao que vinha ocorrendo. Ou seja, mesmo que não houvesse atrasos e cancelamentos, usinas térmicas que deveriam funcionar apenas ocasionalmente estariam despachando de forma contínua, ainda que em volume significativamente inferior ao fazem atualmente.

Além de uma possível restrição de oferta de usinas a serem leiloadas, processos licitatórios pouco rigorosos estimularam a participação de empresas com pouca capacidade de lidar com o negócio. No curto prazo, a participação dessas empresas parecia ser benéfica, pois permitiu que os preços definidos em leilão caíssem. Ocorre que, em vários casos, os preços baixos se mostraram inviáveis, levando aos atrasos e mesmo cancelamento dos projetos, prejudicando a expansão da oferta energética. O caso mais emblemático é do Grupo Bertin. Originariamente controladores de frigoríficos, chegaram a ter em carteira projetos de construção de termelétricas que totalizavam 6 mil MW, cerca da metade da capacidade de Itaipu, e consumiriam R$ 7 bilhões em investimentos. Por falta de experiência no setor e dificuldades de financiamento, o resultado foi que as 21 concessões ganhas não saíram do papel. Posteriormente, parte delas foi vendida, mas parte teve de ser revogada pela Aneel.

Outra forma de garantir preços baixos no leilão é via aumento da participação estatal, diretamente ou se associando a consórcios. Afinal, a estatal é obrigada a seguir as orientações de seu controlador, no caso, a União. As subsidiárias da Eletrobras, em especial a Chesf, foram particularmente agressivas nos leilões de linhas de transmissão. Os baixos preços oferecidos na licitação, conjugados com dificuldades de caixa da empresa, fizeram com que 96 obras de transmissão da Chesf sofressem atrasos, que, em média, atingiam 495 dias. Com esses atrasos, a energia de 28 parques eólicos construídos na Bahia e no Rio Grande do Norte que estavam prontos desde julho de 2012 não pode ser distribuída no sistema por falta de linhas de transmissão.

Nos projetos estruturantes (Santo Antonio, Jirau e Belo Monte), além da forte presença da Eletrobras, os baixos preços oferecidos foram viabilizados pela expectativa de vender até 30% da energia no mercado livre, a preço mais alto do que o compactuado no mercado regulado (nos leilões, fixa-se somente o preço do mercado regulado, que é o que atende a todos os consumidores residenciais, à grande maioria de pequenos e médios consumidores não residenciais, e de parte dos grandes consumidores). Além disso, as empresas esperavam antecipar a entrega das obras, o que lhes permitiria vender no mercado livre toda a energia produzida nesse período de produção antecipada. O risco assumido está custando caro, pelo menos para o consórcio responsável por Santo Antonio. Como eles contrataram a venda de energia no mercado livre, mas não conseguiram antecipar a produção da forma como esperavam, estão tendo de comprar no mercado à vista a um preço muito superior ao que se comprometeram entregar. No início de setembro, a dívida no mercado de curto prazo já atingia R$ 1 bilhão, obrigando a concessionária a iniciar um processo de demissão.

Em resumo, existe uma crise energética no País, caracterizada por escassez de oferta, e que deve ser atribuída a fatores muito mais complexos do que uma simples hidrologia ruim. Instrumentos inadequados de planejamento e, principalmente, uma política de modicidade tarifária excessiva vêm comprometendo a expansão da oferta de forma preocupante. A crise só não está pior porque as medíocres taxas de crescimento econômico têm reduzido a demanda por energia. Em 2001, o racionamento levou a uma retração na expansão do PIB, que permitiu reequilibrar oferta e demanda no mercado de energia. Agora, a política econômica se encarregou de produzir essa retração do PIB, adiando, por hora, a necessidade de um racionamento.

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1 Esse valor é o planejado pela EPE, mas é incompatível com a realidade. Isso porque as distribuidoras só podem ficar sobrecontratadas em até 5% da demanda estimada. Como elas representam 75% do mercado (o restante é formado pelo mercado livre), a sobra do sistema como um todo pode ser, no máximo, de 3,75% (igual a 75% de 5%).

2 Algumas distribuidoras já reajustaram seus preços em 2014, com valores frequentemente acima de 15%. Além disso, grandes consumidores que tinham energia descontratada tiveram que comprar no mercado spot por valores até cinco vezes maiores do que os que vigoravam em 2013.

3 Gráfico disponível em: disponível em:
http://www.ccee.org.br/portal/wcm/idc/groups/bibpublic_comunicacao/documents/conteudoccee/ccee_298618.pdf , pag. 95.