sexta-feira, 4 de julho de 2014

DEZ MIL HORAS? JURA!?

UM NOVO LIVRO QUESTIONA A TESE DE QUE O TREINO EXCESSIVO PODE LEVAR AO DESEMPENHO DE ELITE. MAS OUTROS ESTUDOS DIZEM QUE ESSE TEMPO É SÓ O COMEÇO DA HISTÓRIA

Da revista Época Negócios
Carreira (Foto: glow; getty images; latin stock; other)




Desde que o jornalista e escritor Malcolm Gladwell lançou o livro Fora de Série – Outliers, em 2008, disseminou-se pelo mundo a tese das “10 mil horas”, o suposto tempo de prática necessário para chegar à maestria de uma atividade complexa. A tese que Gladwell tornou popular tem suas raízes num estudo de 40 anos atrás, do Nobel de economia Herbert Simon e do professor de psicologia William Chase. Eles notaram que os campeões de xadrez haviam passado entre 10 mil e 50 mil horas estudando o tabuleiro (e inúmeras posições de peças) antes de se tornar grandes mestres. Estudos posteriores ampliaram o escopo da descoberta para várias atividades complexas, como a criação de sinfonias ou o esporte de elite, e a equação das 10 mil horas foi pronunciada pelo psicólogo sueco K. Anders Ericsson.
Gladwell acrescentou exemplos fascinantes, como o extensivo treinamento dos Beatles (1) em pequenos shows na Alemanha antes de atingir a maturidade criativa. Poderia ter usado a história de Pelé (2): ele era o jogador que mais treinava. Chegava mais cedo e saía mais tarde que os outros. Zico (3) também passava horas treinando cobranças de falta depois que os demais jogadores tinham ido embora.
Talvez nunca venhamos a saber que peso tem a herança genética e que peso tem o esforço na equação do sucesso. Talvez até essa pergunta leve a uma espiral que vai perdendo o sentido: será que é a genética que torna a pessoa predisposta a treinar mais?
De qualquer maneira, em sua forma mais simples, a tese das 10 mil horas tem um recado muito atraente: o caminho do sucesso está aberto a qualquer pessoa disposta a trilhar o árduo percurso do aprendizado.
Pois é este recado que o jornalista e escritor David Epstein ataca em seu novo livro, The Sports Gene (“O gene do esporte”). Em entrevista à revista Outside, ele afirma que Gladwell fez uma leitura torta do estudo original, ao estabelecer uma correspondência perfeita entre tempo de prática e desempenho, o que não se comprovaria cientificamente. Pesquisas estabelecem, por exemplo, uma média de 11.053 horas de prática para se tornar um mestre enxadrista, mas há casos de gente que atingiu esse nível em 3 mil horas, enquanto outros praticaram 25 mil horas sem atingir a meta. Para Epstein, é a estrutura genética que determinará a quantidade de tempo necessária para se tornar um mestre. Treino demais poderia até atrapalhar. Um velocista nato como Usain Bolt poderia, de acordo com Epstein, prejudicar sua capacidade muscular com excesso de carga.
A sobreaprendizagem está um nível acima da maestria. É quando se consegue reduzir o esforço mental para atingir o desempenho ideal 
Gladwell rebateu a entrevista de Epstein com um artigo no site da New Yorker, no final de agosto. Diz que Epstein não leu direito o que ele escreveu. “Ninguém é bem-sucedido no alto nível sem um talento inato, eu disse em meu livro: conquista é talento mais preparo”, afirmou. Gladwell concede que três compositores de alto nível fizeram seus melhores trabalhos em menos de dez anos de prática: Shostakovich (4) e Paganini (5), em nove anos, e Erik Satie (6), em oito. Mas outros 73 estudados pelo pesquisador John Hayes, da universidade Carnegie Mellon (a mesma de Simon e Chase) levaram mais de dez anos. Ele diz que o ponto levantado pelo “fascinante livro” de Epstein é importante. Ele extraiu lições dos 73, mas há o que aprender dos outros três.
Em seguida, Gladwell contra-ataca Epstein. Diz que os exemplos de excelência atingidos com menos de 10 mil horas de treino não são exatamente de elite: a liga de basquete da Austrália, não dos Estados Unidos, e uma estatística de mestres de xadrez, mas não de grandes mestres. “Epstein escreveu um livro maravilhoso”, diz Gladwell. “Mas me pergunto se, em sua vontade de lançar uma provocação neste ponto específico, ele não construiu um argumento que não fica em pé.” Gladwell afirma que a descoberta feita há 40 anos por Simon e Chase permanece válida: em campos marcados pela complexidade mental, não existe dom natural. É necessário treinar, muito.


Carreira (Foto: Divulgação)

Em The Sports Gene, o escritor David Epstein defende a teoria de que a estrutura genética será responsável por determinar o tempo necessário para se tornar um mestre. Treino demais, diz ele, pode ser até prejudicial  

 


O quanto e o como
É possível que Gladwell tenha enunciado apenas uma parte da equação. É preciso começar com talento, e é preciso treinar durante horas e horas e horas. Mas será só isso?
Alguns relatos esparsos dão uma ideia não só de quanto, mas de como os grandes mestres treinam. Um ex-preparador físico de basquete conta que Kobe Bryant (7), cinco vezes campeão da NBA e duas medalhas de ouro olímpicas, não se limitava a praticar muitas horas. Ele escolhia, em cada treino, objetivos concretos. Como fazer 800 arremessos, por exemplo, para aprimorar a técnica de encestar. Isso levava várias horas, mas não eram as horas que Bryant estava contando, segundo o preparador. Eram os arremessos. Algo semelhante contou um humorista sobre Jerry Seinfeld8, cocriador da série que levava seu nome e fez um sucesso estrondoso durante dez anos. Segundo esse humorista, Seinfeld lhe disse que se obrigava a escrever uma piada por dia, e marcava os dias em que tinha criado uma piada com uma caneta vermelha, num calendário em sua parede. “Não importa se você está motivado, não importa se a piada é ruim”, teria dito Seinfeld. A única meta é “não quebrar a corrente”.
Ser mestre não basta
Como se não bastasse toda a dedicação e o método para chegar ao ponto da maestria, um novo estudo diz que isso ainda não é suficiente. Segundo pesquisadores da Universidade do Colorado-Boulder (EUA), não basta dominar uma tarefa para realizá-la bem. É preciso chegar à “sobreaprendizagem”: passar do nível da maestria.
No estudo, coordenado pela professora Alaa A. Ahmed, mediu-se a quantidade de energia gasta pelos participantes que operavam um braço robótico a partir de uma tela de computador. Enquanto aprendiam a manipulação, os participantes inalavam mais oxigênio e expeliam mais dióxido de carbono. Ao assimilar a tarefa, gastavam 20% menos de energia. Mas sua atividade muscular não decaía: os processos neurais continuavam evoluindo mesmo com menos energia, graças à sobreaprendizagem.
Esse ganho em eficiência mental libera energia para outras tarefas, diz a pesquisadora. É nesse ponto de sobreaprendizagem que um pianista começa a acrescentar mais intensidade à peça que está tocando ou um tenista passa a perceber com antecedência os movimentos do oponente. A sobreaprendizagem reduz o esforço mental necessário para o desempenho ideal. A conclusão, diz a professora, vale para qualquer atividade. E leva a um questionamento sobre um mantra do mundo dos negócios: o sucesso não viria quando saímos da zona de conforto, e sim quando nos aprofundamos nela. Talvez seja isso o que leve algumas pessoas a conseguir treinar mais de 10 mil horas.