quinta-feira, 15 de abril de 2021

Supremo Tribunal Federal suspende desproporcional extensão de patentes

 


Está em pauta no Supremo Tribunal Federal a ADI 5529, que examina a inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da Lei de Propriedade Industrial (Lei n° 9.279/1996) [1]. Discute-se a postergação da data de domínio público da patente, com projeções tão profundas quanto o acesso à saúde, a proteção do meio ambiente e a tutela da concorrência.



Enquanto o padrão mundial de duração das patentes é 20 anos [2], a legislação em discussão permite uma prorrogação adicional por uma década! Atento à desproporção, em julgamento no último dia 7 o Supremo suspendeu a eficácia da norma em relação a patentes de produtos e processos farmacêuticos e equipamentos da saúde.

No presente artigo, examina-se o tema a partir da interface com o desenvolvimento sustentável. Vale salientar que o próprio site do STF destaca tal conexão e correlaciona a ADI a quatro dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), conforme se extrai da página de acompanhamento processual:

Desenvolvimento sustentável e patentes

A Agenda 2030 estabelece objetivos para transformar o mundo, a partir de um roteiro para lidar com desafios globais, em diversos campos. Para tanto, são estabelecidos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), aos quais correspondem 169 metas que traçam uma agenda para a humanidade [3]. A inovação tecnológica e o incentivo a criatividade são parte importante desse processo de transformação. Novas tecnologias reduzem a poluição, utilizam menos recursos, permitem acesso à água e novos tratamentos para doenças.

Definir limites adequados para as patentes não significa negar sua importância [4]; ao contrário, implica reconhecê-la e discutir seu adequado exercício. Ocorre que, sem a devida atenção, a patente recebe uma proteção jurídica que a converte em mero monopólio. Como adverte o prêmio Nobel Jopeh Stiglitz:

"O problema fundamental do sistema de patentes é simples: ele se baseia na restrição do uso do conhecimento. Como não há custo extra associado ao fato de um indivíduo adicional desfrutar dos benefícios de qualquer parte do conhecimento, restringir o conhecimento é ineficiente. Mas o sistema de patentes não restringe apenas o uso do conhecimento; ao conceder poder de monopólio (temporário), muitas vezes torna os medicamentos inacessíveis para pessoas que não têm seguro. No Terceiro Mundo, isso pode ser uma questão de vida ou morte para pessoas que não podem comprar novos medicamentos de marca, mas podem ter condições de comprar genéricos" [5].

O debate travado na ADI 5529 diz respeito à manutenção desmedida das patentes, circunstância que atinge brutalmente setores essenciais como saúde, concorrência e meio ambiente. Vale notar que entre as ODS o objetivo nove diz respeito a indústria, inovação e infraestrutura, e inclui, entre suas metas: "Apoiar o desenvolvimento tecnológico, a pesquisa e a inovação nacionais nos países em desenvolvimento, inclusive garantindo um ambiente político propício para, entre outras coisas, a diversificação industrial e a agregação de valor às commodities" (ODS9, meta 9.b). As metas incluem também "fortalecer a pesquisa científica, melhorar as capacidades tecnológicas de setores industriais em todos os países" (ODS9, meta 9.5), e "promover a industrialização inclusiva e sustentável" (ODS9, meta 9.2). Desenvolver a tecnologia e proteger a inovação é parte das premissas da Agenda 2030, contudo, a proteção deve ser adequada.

O enunciado do artigo 40, parágrafo único, da LPI é desproporcional e estabelece um prazo que pode chegar a uma década a mais do que no resto do globo, como se destaca a seguir. Está em descordo também com as metas da Agenda2030 de "atingir a cobertura universal de saúde (...)" (ODS3, meta 3.8) e "reduzir a taxa de mortalidade materna global (...)" (ODS3, meta 3.11).

Três fatos relevantes sobre o tema

Para melhor compreensão da ADI 559, e também para afastar alguns mitos [6], é preciso enfatizar três fatos:

a) O Brasil adota padrões acima dos outros países em matéria de propriedade industrial;

b) A discussão em pauta não extingue a propriedade intelectual no Brasil, nem acabará com a inovação tecnológica;

c) O impacto da decisão do STF para o Sistema Único de Saúde (SUS) é calculado em bilhões de reais.

Fato 1) O Brasil adota padrões acima dos outros países em matéria de propriedade intelectual

A proteção da propriedade intelectual é fundamental e ninguém está propondo o fim das patentes, porém, sua tutela jurídica deve estar em harmonia com a realidade e a Constituição.

O Acordo sobre os Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês), em seu artigo 33, determina que "a vigência da patente não será inferior a um prazo de 20 anos, contados a partir da data do depósito". Em cumprimento ao acordo, o Brasil adotou o prazo de 20 anos para patentes de inovação e 15 anos para modelo de utilidade, contatos a partir do depósito do pedido. Acontece que o trecho da lei em discussão no Supremo permite adicionar mais dez anos para patentes (e sete para modelos de utilidade), a partir da concessão. É o que se designa trips-plus.

O país adota em todas as áreas período protetivo superior aos demais países e ao exigido por acordos internacionais [7], como se verifica na proteção de direitos autorais por 70 anos após a morte do autor (Lei 9.610/1998, artigo 41). Em relação às patentes, o prazo é de dez anos além do padrão global. Como destaca estudo elaborado pela USP: "O período médio de proteção para patentes oferecido pela legislação brasileira é o maior entre os países analisados, inclusive com relação aos países desenvolvidos". Além disso, "quando contrastado com as nações integrantes do bloco dos BRICS, agrupamento econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, nenhuma patente experimentou prorrogação semelhante ou vigência efetiva proporcional à brasileira" [8].

Fato 2) A discussão em pauta não extingue a propriedade intelectual no Brasil, nem acaba com a inovação tecnológica

É equivocada a premissa de que haja uma oposição entre tecnologia e desenvolvimento sustentável. Como destaca a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês), "a implementação efetiva da Agenda de Desenvolvimento é uma prioridade chave e um componente importante da assistência que a WIPO pode fornecer aos seus estados membros, dentro de seu mandato, para ajudar a alcançar os ODS" [9].

Em harmonia com tal perspectiva, o STF divulga em seu site que "no âmbito brasileiro, a concretização desse importante compromisso internacional exige a atuação de todos os poderes da República. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal é uma instituição central para difundir a visão, a cultura e, principalmente, os valores tão elevados da Agenda 2030: a vida, a dignidade, a justiça e a sustentabilidade. Ademais, a atuação jurisdicional do STF contribui, efetivamente, para o cumprimento das metas associadas a cada um dos objetivos dessa agenda" [10].

O argumento de que a inconstitucionalidade abalaria a indústria nacional é pífio. Os depósitos de patente no Brasil são principalmente estrangeiros. Dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI [11]) revelam que apenas um de cada cinco patentes é nacional, o que nos faz "vorazes consumidores de patentes estrangeiras".

Como adverte Calixto Salomão Filho, a adequada proteção da propriedade intelectual serve ao fomente da concorrência: "O direito à patente ou à marca não pode ser visto como uma propriedade ou privilégio de seu titular. Entendido como mecanismo de tutelar a concorrência, (no sentido institucional) assume a função principal de garantir o acesso a escolha dos consumidores" [12].

Fato 3) O impacto da decisão do STF para o SUS é calculado em bilhões de reais

É fácil perceber que os impactos do tema são gigantescos. Durante a vigência da patente, não se faz licitação para compra de medicamentos, e o SUS fica adstrito ao fabricante. Está em jogo, portanto, o acesso à saúde. O julgamento da inconstitucionalidade implica economia bilionária para o SUS, em um momento crucial do país. Segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), "o prejuízo acumulado, a partir da hipótese de entrada de medicamentos genéricos em substituição dos medicamentos patenteados nas compras do SUS, com os sete medicamentos adquiridos via compra centralizada alcançou a cifra de R$ 2.026.853.179,00" [13].

A lista de medicamentos que já estaria em domínio público, se afastada a norma inconstitucional, inclui mais de 70 medicamentos para doenças como câncer, diabetes, HIV, psoríase. São exemplos Bevacizumabe, mais conhecido como Avstin (cuja proteção já alcança 32 anos), Rivaroxabama, Sugammadex e Ofev.

Propriedade intelectual e desenvolvimento sustentável

Para atingir o objetivo de "assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades" (ODS3), foi estabelecida a Meta 3.b, que define:

"Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as doenças transmissíveis e não transmissíveis que afetam principalmente os países em desenvolvimento, fornecer acesso a medicamentos essenciais e vacinas acessíveis, de acordo com a Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, que afirma o direito dos países em desenvolvimento de usarem ao máximo as disposições do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio com relação às flexibilidades para proteger a saúde pública e, em particular, fornecer acesso a medicamentos para todos".

Não se justifica adotar-se uma política pública de proteção de patentes uma década além do previsto no Acordo Trips. No plano internacional, a Declaração de Doha fixa que o "Acordo TRIPS não impede e não deve impedir os Membros de tomar medidas para proteger a saúde pública" [14]. A duração desproporcional de patentes, portanto, não pode prevalecer. Como registra o voto proferido pelo ministro Dias Toffoli na ADI, em relatório do Tribunal de Contas da União registrou-se que "entre 2008 e 2014, a quase totalidade dos pedidos de patentes incidiu na previsão do parágrafo único do artigo 40", bem como que "a exploração protegida pela patente de produtos farmacêuticos dura em média 23 anos, sendo comum a concessão de patentes que, ao final, terão perseverado por 29 anos ou até mais". Tal duração, aponta estudo da Fiocruz, é obtida com ardilosas artimanhas (evergreening) [15].

Também não merece maior crédito a alegação recorrente de que a demora do INPI na apreciação de patentes (backlog) justificaria conclusão diversa. Se por um lado é verdadeira a mora nas análises, essa hipótese já recebe adequada tutela por mecanismo de reparação dos danos [16], previsto na própria no artigo 44 da Lei de Propriedade Industrial.

Mal utilizada, a patente converte-se em inconstitucional barreira de ingresso a novos concorrentes, e afronta a consagração constitucional da livre concorrência, assim como os objetivos constitucionais de construir uma sociedade livre, justa e solidária, e garantir o desenvolvimento nacional (CR, artigos 170 e 3º).

Sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável, o tratamento jurídico da tecnologia deve observar a efetivação de direitos humanos e fundamentais, de maneira que deve ser consagrada a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI. O Supremo tem em mãos uma oportunidade preciosa de tornar o Brasil um país mais justo; esperamos que não seja postergada.

[1] Para uma análise mais profunda, confrontar os excelentes artigos disponíveis em: SVENSSON, Gustavo. As Inconstitucionalidades da extensão dos prazos das patentes. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2021.

[2] USP. Grupo de Estudos Direito e Pobreza. A inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da lei de propriedade industrial sob uma perspectiva comparada. Relatório de pesquisa elaborado para a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.529 (ADI nº 5529). São Paulo. 2020.

[3] ONU. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs.
Acesso em 11.04.2021.

[4] "(...) While the owner is not given a statutory right to practice his invention, he is given a statutory right to prevent others from commercially exploiting his invention, which is frequently referred to as a right to exclude others from making, using or selling the invention". WIPO. Intellectual Property Handbook, WIPO, 2004. p. 17.

[5] STIGLITZ, Joseph. Prizes, not patentes.
Project Syndicate, Mar. 6, 2007. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/prizes-not-patents. Acesso em 11.04.2021.

[6] Em recente análise sobre o tema, Livia Barbosa adverte sobre diversas afirmações falsas utilizadas no debate sobre a ADI, além de oferecer interessante exame sobre a funcionalização da propriedade intelectual. BARBOSA, Livia Maia. O prestígio à função social da patente. Migalhas, Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343403/o-prestigio-a-funcao-social-da-patente--adi-5529

[7] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Patentes marajás: punindo gente honesta. ConJur. 12.3.2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-12/pedro-barbosa-patentes-marajas-punindo-gente-honesta. Acesso em 11.04.2021.

[8] USP. Grupo de Estudos Direito e Pobreza. A inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo único, da lei de propriedade industrial sob uma perspectiva comparada. Relatório de pesquisa elaborado para a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.529 (ADI nº 5529).
São Paulo. 2020. p. 7 e 35.

[9] UNITED NATIONS. World Intellectual Property Organization.
Disponível em: https://www.wipo.int/sdgs/en/story.html Acesso em 11.04.2021.

[10] STF. Agenda 2030. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/. Acesso em 11.04.2021.

[11] Proporção em 2020: INPI, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/estatisticas/arquivos/publicacoes/boletim-mensal-de-propriedade-industrial_mar_2020.pdf. Acesso em 11.04.2021.

[12] SALOMÃO Filho, Calixto. Teoria crítica estruturalista do direito comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 114.

[13] UFRJ. Projeto ABIA: Extensão das patentes e custos para o SUS. Relatório Final Julho 2016.

[14] United Nations. THE DOHA DECLARATION ON THE TRIPS AGREEMENT AND PUBLIC HEALTH https://www.who.int/medicines/areas/policy/doha_declaration/en/

[15] Trata-se de "reflexo de uma realidade de como as empresas farmacêuticas operam para maximizar a exclusividade em relação a seus produtos". CHAVES, Gabriela Costa. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro : Fiocruz , ENSP, 2018. p. 43.

[16] BARBOSA, Denis Borges. A inexplicável política pública por trás do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial, p. 37.

Por Gabriel Schulman, no Consultor Jurídico  

  

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