sábado, 24 de julho de 2021

Por que o Cade não se importa com a cor da sapatilha de balé



Viés na definição de consumidor e a necessária correção de rumo para o Cade

 

Como sói acontecer a cada dois anos, o processo de indicação de pelo menos uma dentre as duas principais autoridades do órgão nacional de defesa da concorrência - o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) - tem recebido ampla cobertura da imprensa há pelo menos um mês. Embora esse seja o seu pano de fundo, o cerne deste artigo está voltado para um tema de maior relevo, mas que tem, paradoxalmente, sobrevivido na penumbra da defesa da concorrência no Brasil.

O senhor Alexandre Cordeiro Macedo afirmou, na sabatina para a presidência do Cade, que existe uma discussão entre as autoridades de defesa da concorrência em todo o mundo acerca da viabilidade de enfrentarem, nas suas decisões, questões sociais, ambientais, tributárias, entre outras, mas que o Cade tem se mantido mais ortodoxo com relação ao tema.

A ortodoxia significa que, para a autarquia, enfrentar os efeitos sociais das suas decisões representa um desvio da sua função de proteger a concorrência nos mercados. Qualquer coisa diferente disso exigiria que o Cade enfrentasse, ainda que minimamente, o tema nas suas decisões, ou em avaliações ex post que a autarquia insiste em não levar a sério.

Entretanto, basta olhar um centímetro adiante do próprio nariz para se perguntar em que mundo os efeitos das decisões sobre a sociedade não fazem parte das preocupações dos órgãos com função judicante. A resposta, infelizmente, é mais ampla (e, portanto, mais lúgubre) do que se desejava e ensejou a feliz mudança na lei de introdução às normas do direito brasileiro capitaneada pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Peixoto, a qual trouxe para o art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, a obrigação de que, nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decida com base em valores jurídicos abstratos, desconsiderando as consequências práticas da decisão.

Do mesmo modo, reza o art. 21 do mesmo diploma legal que a decisão que, nas esferas administrativa, controladora, ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo, ou norma administrativa deverá indicar, de modo expresso, as suas consequências jurídicas e administrativas. Esse mesmo reconhecimento consta do art. 5º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, do art. 6º da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, e do Decreto nº 10.411, de 30 de junho de 2020, que tratam da necessidade de identificar o impacto da edição de atos normativos sobre a sociedade.

Para este artigo interessa, em particular, aquilo a que a doutrina tradicional tem chamado de análise dos efeitos sociais da decisão da autoridade de defesa da concorrência e que, em suma, representa uma análise dos efeitos da decisão do Cade sobre as minorias.

Sob esse ponto de vista, aquilo a que o senhor Cordeiro chamada de ortodoxia do Cade representa, na verdade, a miopia da autoridade de defesa da concorrência que decida, invariavelmente, segundo um padrão a que Eric Johnson chama de viés da pessoa sem deficiência.

Isso significa, entre outras coisas, que a definição de mercado relevante, que é tão cara para a análise de condutas e de estruturas, é realizada levando em consideração um consumidor que espelha a visão do empreendedor, do inovador e da autoridade pública predominantemente brancas, masculinas e sem deficiência e que esse viés conduz, inevitavelmente, a decisões que não se preocupam com o bem-estar de todos os consumidores que não se sintam contemplados com as escolhas feitas olhando para aquele padrão de consumidor.

Significa, ainda, que, quanto mais distante alguém se encontrar do perfil do 'cidadão padrão', menos se sente contemplado por decisões empresariais, ou por políticas públicas que não lhe tiveram como público-alvo. Em outras palavras, quanto mais relevantes as interseccionalidades - mulher, negra, com deficiência, não heterossexual -, menores as chances de que a decisão da autoridade tenha se preocupado com aquela minoria, por mais estatisticamente relevante que aquela minoria seja.

A história recente está inundada de exemplos de estratégias empresariais enviesadas - desde a cor da sapatilha do balé, do band-aid, das bonecas, dos personagens infantis e dos atores principais; do efeito alisador desejado dos condicionadores para cabelos; do design do vaso sanitário; da responsabilização das mulheres pelo uso do anticoncepcional e do pouco caso com os efeitos colaterais do uso do Dalkon Shield e do Yaz; da baixa capacidade de os algoritmos identificarem a presença da mulher negra (identificada, exemplificativamente, por Joy Buolamwini nos códigos da IBM); do baixo e apenas recente compliance ESG; do uso de acordos de não concorrência e de sigilo como forma de silenciar particularmente mulheres vítimas de violência no ambiente de trabalho - e de decisões concorrenciais enviesadas - incluindo a ausência de preocupação quanto aos efeitos de aquisições indiscriminadas de hospitais e de pequenos negócios sobre mulheres e sobre comunidades negras; os efeitos dos modelos de fusões entre entidades de esportes masculinas e femininas sobre o poder gerencial feminino; e o efeito adverso da análise concorrencial convencional sobre a concessão de bolsas para minorias (caso US v Brown University, 1993), sobre o efeito dos registros profissionais para o empoderamento de minorias, e sobre a pouca visibilidade do efeito concentrador de renda de decisões concorrenciais (caso NCAA v Board of Regents, 1984) (caso NCAA v Alston, 2021).

Como antecipava Nagel, não basta estudar os seus hábitos: é preciso ser morcego para enxergar como um. Portanto, para que o Cade decida pensando nas minorias, é necessário empoderar as minorias no Cade, trazer diversidade ao Cade. E não vale mascarar a ausência prática de mulheres enquanto fonte decisória no Cade promovendo campanhas que indiquem que elas são maioria em postos subordinados. Ou escondendo a ausência de chefes negros. Ou com deficiência. E se o lado humanitário da mudança de estratégia não atrai a atenção dos homens de negócios, o entendimento de que a diversidade fomenta a elaboração de decisões mais ricas já está bastante sedimentado, encontrando no matemático e administrador Scott Page o seu maior difusor.

No campo concorrencial, o Cade tem parodiado as demais autoridades de defesa da concorrência do mundo quando o assunto é intervir menos e impor um modelo de laissez-faire que leva até mesmo à impunidade de grandes cartéis, incluindo aqueles que movimentaram a Operação Lava-Jato - objeto de escrutínio do Tribunal de Contas da União (TCU) por meio da ação TC 037.053/2020-5 e de crítica pela OCDE na sua última avaliação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência pelos pares (peer review).

Esse modelo 'copia e cola', que explica o interesse político pela autoridade de defesa da concorrência, é exatamente o oposto daquilo de que se necessita para tornar o Cade menos hermético, mais diverso, mais criativo e mais eficiente, capaz de adotar decisões que adaptem o que se aprende com as decisões das demais autoridades de concorrência do mundo às especificidades da história, da economia e da cultura brasileiras.

Naturalmente, qualquer teoria crítica do antitruste que passe por suscitar problemas de gestão e de implementação do Cade leva a que logo as suas autoridades apresentem o seu ranqueamento e a sua profícua premiação pela revista britânica Global Competition Review (GCR) como defesa de tudo o que tem sido feito. Apesar dos inegáveis méritos dos servidores do Cade em mantê-lo funcional e em tentar tornar as decisões o mais transparentes possível - assim evitando uma captura ainda mais profunda da autarquia -, é inquestionável que parte dos prêmios da GCR se deve a estratégias ao melhor estilo 'Kibe-Loco' - uma referência ao sítio eletrônico que se tornou notório por promover a votação em massa de brasileiros a favor de diferentes Davis contra os seus Golias.

Ou seja, são votações abertas ao público nas quais se vota quantas vezes quiser. Por sua vez, as escolhas do júri técnico são feitas pelos mesmos representantes dos agentes econômicos beneficiados com os acordos e com as decisões do Cade. E essas não são ilações pessoais. Segundo as palavras da OCDE, 'o valor das multas aplicadas [pelo Cade] aos responsáveis pelas infrações parece ser baixo', inclusive porque 'o Cade recorre bastante ao uso de TCCs, e os descontos fornecidos ao valor das multas por estes acordos (em cartéis) e? muito alto em relação aos padrões internacionais'.

Embora eu não tenha interesse pessoal em descontruir o histórico de premiações do Cade, é necessário passar por esse processo de desconstrução argumentativa para colocar em xeque o argumento de infalibilidade da autarquia que tem sido repetidamente usado pelos seus dirigentes para blindá-lo de auditorias do TCU e para garantir a estabilidade do seu modelo subpunitivo.

A necessidade de reformar o modelo de análise antitruste para reparar um erro histórico na análise concorrencial levou a que a OCDE alertasse, ainda em 2018, quanto à necessidade de as autoridades do mundo inteiro avaliarem os efeitos anticompetitivos de regulações discriminatórias quando sejam a causa da substituição de mulheres por homens menos eficientes. Indo além, a OCDE abordou a vitimização da mulher pelo viés de algoritmos, assim como a discriminação de preços em função do gênero, da raça, ou contra pessoas com deficiências.

Ademais, sugeriu que as autoridades de concorrência priorizassem a investigação de mercados nos quais as mulheres fizessem a maior parte dos seus gastos, além de uma análise mais desagregada, na qual o custo-benefício da operação para a mulher fosse mensurado em separado da habitual mensuração do custo-benefício para um consumidor que representa exclusivamente os interesses do homem branco de classe média sem deficiência - conhecido como standard model citizen.

'Os estudos de mercado e quaisquer investigações sobre alegados abusos exploratórios de dominação podem incluir uma avaliação se o bem-estar feminino - em vez do bem-estar do consumidor como um todo - seria adversamente afetado por uma característica particular do mercado ou pela conduta em questão'.

Nos Estados Unidos, papel similar vinha sendo desempenhado por Rebecca Slaughter, Conselheira da US Federal Trade Commission que havia sido designada pelo governo Biden como presidente interina da autarquia até a nomeação de Lina Khan. Slaughter foi ainda mais incisiva que a OCDE, ao afirmar, categoricamente, que 'o antitruste pode e deve ser usado na luta contra o racismo' e que '[p]recisamos nos perguntar como podemos usar as nossas ferramentas de aplicação da lei para garantir que os mercados sejam competitivos e que beneficiem os consumidores historicamente sub-representados e economicamente desfavorecidos, em vez dos já contemplados'.

Ainda que não caiba ao Cade, simplesmente, internalizar, acriticamente, um modelo adotado lá fora, é necessário observar que, mesmo olhando exclusivamente para a lei brasileira, a autarquia não tem uma escolha a fazer. A defesa dos consumidores a que faz alusão o art. 1º da sua lei - Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 - não lhe permite optar por defenestrar os consumidores vindos de minorias, que são, justamente, os mais afetados pela hipossuficiência. É necessário que, a cada decisão, o Cade esteja atento aos consumidores que deixa de proteger quando projeta a repercussão dos casos que passam pela autarquia somente sobre os cidadãos que tenham a mesma experiência dos seus dirigentes.

Se a autarquia terá uma grande preocupação com a atuação das big techs - como o possível-novo-presidente-do-Cade deixou antever em sua sabatina -, a avaliação do impacto das decisões empresariais sobre a exclusão das minorias e da sua cultura deve estar na ordem do dia, em um lugar prioritário na agenda da autarquia. Infelizmente, o recado passado por Cordeiro é que, ao longo dos próximos quatro anos, o Cade continuará fechando os olhos para as minorias, representando mais do mesmo.

Por Roberto D. Taufick, Jota  


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