As empresas de economia mista
sujeitas à ampla concorrência do mercado não devem seguir as restrições
impostas pela Lei de Licitações para
contratação de serviços. O regime da lei é incompatível com a agilidade própria
do mercado privado, movido pela intensa concorrência entre empresas.
Petrobras não precisa indenizar por quebra de contrato e posterior contratação
sem licitação de 1994
Esse foi o entendimento que prevaleceu no julgamento virtual encerrado na
sexta-feira (5/3), mais de dez anos após o seu início, para decidir se a Petrobras deveria ou não se
sujeitar à Lei 8.666/93, a Lei de Licitações.
No caso em discussão, a Petrobras cancelou,
em 1994, um contrato de fretamento de navios de cargas que tinha sido assinado
com a Frota Petroleiros do Sul (Petrosul), e contratou outra empresa sem licitação. A transportadora questionou
a rescisão alegando violação ao artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
que prevê a licitação como
regra para as contratações da administração pública, incluindo as sociedades de
economia mista, e pretendia a anulação do ato administrativo e indenização por
perdas e danos.
Na ocasião, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) entendeu que o
parágrafo único do artigo 1º da Lei de Licitações não se aplicaria à Petrobras. A decisão teve por fundamento a redação original,
vigente à época, do artigo 173, parágrafo 1º, da Constituição, que dizia, à
época, que as sociedades de economia mista que explorem atividade econômica se
sujeitam ao regime jurídico próprio das empresas privadas.
No Supremo, a maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, Dias Toffoli,
para desprover o recurso e manter a decisão do TJ-RS. Segundo ele, "a
agilidade que se exige das empresas que atuam no mercado é absolutamente
incompatível com um sistema rígido de licitação, como esse imposto pela referida Lei nº 8.666/93".
Como os fatos ocorreram em 1994, ainda não estavam vigentes várias normas
posteriores que disciplinaram o assunto, o que também foi debatido pelos
ministros. As inovações introduzidas desde então incluem a Emenda
Constitucional 9/1995, que flexibilizou o monopólio estatal na atividade
petrolífera; a Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997); a Emenda Constitucional
19/1998, que alterou aspectos relativos à licitação da administração pública; e o Decreto 2.745/1998,
que estabeleceu o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras.
Para Dias Toffoli, as novas normas apenas reforçaram a previsão constitucional
original. "A compreensão dessa realidade, ou seja, de que tais empresas
que assim atuam no mercado, sujeitam-se ao regime jurídico de direito privado,
é inerente ao sistema criado pela Constituição Federal, atribuindo-se à
sociedade de economia mista a exposição, a exploração de atividades econômicas
(comercialização de bens ou de prestação de serviços) e o mesmo regime das
empresas de direito privado", explicou.
Rosinei Coutinho/SCO/STFPara Gilmar Mendes, intenção de dotar estatais de
competitividade já está clara desde a promulgação da Constituição
Ao entendimento, Gilmar Mendes acrescentou a evolução da doutrina na
interpretação da Lei de Licitações.
Segundo ele, a norma foi editada para evitar corrupção nas esferas administrativas do Estado e, assim,
tinha pretensão totalizante, abarcando inclusive as estatais. No entanto, não
demorou para ficar claro que a lei aumentava a burocracia sem combater possíveis ilícitos.
Para resolver o problema, editou-se a EC 19/1998, modificando os artigos artigo
22, inciso XXVII, e 173 da Constituição. Quando isso aconteceu, lembra Gilmar,
o Congresso ficou inerte, o que levou a um impasse sobre a incidência da Lei de Licitações para estatais. A
doutrina jurídica resolveu o problema procedendo a duas demarcações: uma delas
considerava que o objeto de atuação da empresa era determinante e, assim, a Lei
das Licitações não
abarcava os casos em que o Estado atuava em regime de competição; a outra
diferenciava atividade-meio e atividade-fim, considerando que a Lei de Licitações seria aplicável às
estatais exceto quando fosse nociva à atividade de mercado.
"Essas duas questões, aliás, permaneceram em aberto até a edição da Lei
13.303/2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da
sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos municípios", prossegue o ministro.
As interpretações e aperfeiçoamentos posteriores não podem ser aplicados
retroativamente, afirma Gilmar, mas mostram que "a história legislativa do
Estado-empresário é uma crônica de sucessivas tentativas de dotar as empresas estatais de maior
condição de competitividade com o setor privado" desde a promulgação da
Constituição, em 1988. Assim, justifica-se o entendimento de que a Petrobras não precisava seguir a
Lei de Licitações mesmo
antes das diretrizes subsequentes que deixaram o entendimento ainda mais claro.
Além de Gilmar, o voto do relator foi seguido por Luiz Fux, Ricardo
Lewandowski, Celso de Mello e Alexandre de Moraes. Ficaram vencidos os ministro
Marco Aurélio, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia. O ministro Luís
Roberto Barroso se declarou suspeito.
Histórico
O Recurso Especial começou a ser julgado pela 1ª Turma do STF em 2008, mas o
processo foi encaminhado ao Plenário. Em 2011, Dias Toffoli já tinha proferido
o voto que acabou vencedor. Na ocasião, Marco Aurélio divergiu, sustentando que
o artigo 37, inciso XXI, da Constituição abrange necessariamente as sociedades
de economia mista.
Em 2016, o julgamento foi retomado com voto-vista do ministro Luiz Fux. Ele
acompanhou o relator, ressaltando que o entendimento não é uma "carta de
alforria". Segundo Fux, a Petrobras,
enquanto sociedade de economia mista, não se desobriga da observância das
normas jurídicas da Administração Pública, "mas fica dispensada das regras
da Lei 8.666 quando estas puderem comprometer a sua competitividade, que é o
que se presume no caso". Toffoli, então, reajustou seu voto para incluir
as considerações feitas por Fux.
Ainda naquele ano, a divergência aberta por Marco Aurélio foi integralmente
seguida pelo ministro Luiz Edson Fachin, bem como pelas ministras Rosa Weber e
Cármen Lúcia. O julgamento foi então novamente suspenso para aguardar os votos
de Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que estavam ausentes da sessão.
O ministro Teori Zavascki tinha acompanhado o voto de Fux e Toffoli naquela
sessão. Em outubro de 2016, houve novo adiamento, atendendo a pedido do Tribunal de Contas da União. O
processo foi novamente pautado em 2020, mas o relator, Dias Toffoli, pediu
destaque porque ainda não tinha sido resolvida uma controvérsia relativa ao
voto de Teori.
Fux, então, enquanto presidente, decidiu que o ministro deveria ter sido
declarado impedido de votar nesse julgamento, por ter atuado como relator do
Agravo de Instrumento perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 144, II, do
CPC). O voto de Teori foi anulado em dezembro de 2020, e o julgamento retomado
agora, no final de fevereiro de 2021.
Por Luiza Calegari, no Consultor Jurídico
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