Em todo o país,
vinte municípios recorreram à Justiça para aumentar população e receber mais
verba pública - e um, pelo mesmo motivo, pediu para diminuir
Todo ano, a
professora de geografia Luziane Nogueira Pereira enfrenta o mesmo problema nas
salas de aula da Escola Municipal Carmem Valente Da Silva, em Jacareacanga,
cidade do interior do Pará. Nas aulas para o ensino fundamental, ao trabalhar
conteúdos sobre a cidade, uma pergunta fica sem resposta: 'Professora, quantas
pessoas moram em Jacareacanga?' Na internet, é fácil para qualquer estudante
achar a população estimada de sua cidade nos sites das prefeituras ou do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão oficial encarregado de
medir a população de todos os municípios brasileiros. Sobre Jacareacanga, não
há consenso. 'A gente não tem um número exato populacional', explica Pereira.
Essa confusão não acontece só nas aulas de geografia. O município tem uma
população estimada em 7.590 habitantes pelo IBGE, mas também tem uma população
judicial, ou seja, determinada pela justiça, que é o quíntuplo disso: 41.487
habitantes.
A diferença de 34 mil almas existe porque o município paraense solicitou na
Justiça a anulação dos números do Censo de 2010 (que apontou população oficial
de 14,1 mil pessoas) e de todas as estimativas posteriores feitas pelo IBGE.
Jacareacanga sustenta que existiu um erro no censo e que isso impactou as
estimativas populacionais feitas depois dele. Por isso, a justiça 'determinou'
para a cidade a população de 41,5 mil habitantes.
Nos censos, realizados normalmente de dez em dez anos, os profissionais do IBGE
visitam todas as casas de todos os municípios brasileiros. De acordo com o
Censo de 2000, Jacareacanga, cidade no sudoeste do Pará famosa pelas belezas
naturais e cuja economia é sustentada pelo garimpo e pelo setor público, tinha
24 mil habitantes. Nos anos em que o censo não é realizado, o IBGE estima a
população com base nos números dos censos anteriores e nas tendências de
natalidade, mortalidade e migração. Na primeira metade dos anos 2000, essas
tendências mostraram que a população de Jacareacanga crescia: em 2006, a
população foi estimada em 34,7 mil pessoas. Em 2007, um censo especial, o
chamado Censo Agropecuário, encontrou 37 mil pessoas vivendo em Jacareacanga -
o que batia com as estimativas. Em 2009, a estimativa apontou 41.487 pessoas,
um recorde na história da cidade.
Mas aí veio o Censo de 2010.
Quando os resultados foram divulgados, em novembro de 2010, o IBGE apontou 14,1
mil habitantes em Jacareacanga. A cidade encolheu e perdeu 23 mil habitantes em
apenas três anos, de acordo com os censos do IBGE. Nos anos seguintes, foi esse
o patamar usado para calcular a população da cidade, que foi minguando até
chegar aos 7,6 mil habitantes estimados em 2020. 'O crescimento da população,
que era positivo, passou a ser bem negativo', explicou Izabel Guimarães Marri,
demógrafa e gerente de estudos e análises da dinâmica demográfica do IBGE.
Mas o movimento de Jacareacanga não é só para recuperar a população perdida. É
também, e fundamentalmente, por recursos federais. A maior parte da verba do
governo federal enviada aos municípios chega pelo Fundo de Participação dos
Municípios (FPM), transferência de verbas prevista na Constituição e composta
por recursos do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI). O bolo do FPM é calculado anualmente pelo Tribunal de Contas da União (TCU) com base na estimativa populacional dos municípios e na renda
per capita de cada unidade da federação. O cálculo considera também se o
município é na capital ou no interior.
'A filosofia é dar mais recursos, proporcionalmente, aos municípios mais
'pobres', ou seja, com menor capacidade de arrecadação de tributos. Isso faz
com que os municípios de menor porte demográfico, algumas vezes, recebam mais
recursos per capita do que aqueles de maior porte', explica François de
Bremaeker, economista, geógrafo e gestor do Observatório de Informações
Municipais. 'Como a maioria dos municípios é de pequeno porte, com menos de 10
mil habitantes, eles são os mais favorecidos. Com isso, o FPM é a principal
fonte de receita para 81% dos municípios', acrescenta o especialista.
Em 2010, com a população estimada de 41,5 mil habitantes, Jacareacanga recebeu
17,2 milhões de reais do FPM. Em 2011, quando o resultado do censo passou a
valer para o cálculo, a verba caiu para 10,8 milhões - diferença de mais de 40%
considerando a inflação. Inconformada, a prefeitura entrou na Justiça. 'Uma
queda substancial na receita municipal, causada de forma ilegítima, por erro do
IBGE, na realização do Censo 2010', pontua o advogado Clebe Rodrigues Alves,
representante do município na ação.
Em maio de 2012, o juízo da Vara Federal de Santarém concedeu liminar em favor
do município, para que a União passasse a utilizar a população judicial de 41,5
mil pessoas para o cálculo dos repasses do FPM a Jacareacanga. Em 2016, uma
sentença judicial anulou o Censo 2010 para o município e determinou que o IBGE
contasse novamente o número de moradores da cidade, que deve ocorrer no próximo
censo. O IBGE apelou e o processo se encontra no Tribunal Federal Regional da
1ª Região, sem data para ser julgado.
Procurado, o IBGE afirmou que só responderia dúvidas técnicas e que 'para
assuntos judiciais, a representação judicial do IBGE é feita pela
Procuradoria-Geral Federal, órgão da AGU [Advocacia-Geral da União]'. A AGU
disse, por e-mail, que 'conforme informações da área técnica do IBGE, não houve
qualquer irregularidade no censo populacional de 2007 e de 2010 no município' e
que 'diante da equivocada conclusão de que teria ocorrido erro no censo de 2010
[em referência à decisão na primeira instância], a questão foi levada para o
TRF1 [segunda instância] para análise'.
Sem a liminar, o valor recebido por Jacareacanga cairia ainda mais. Em 2020, a
população da cidade foi estimada pelo IBGE em 7,6 mil habitantes, o que
garantiria em 2021 apenas 6,1 milhões de reais do FPM (os repasses de um ano
utilizam a população do ano anterior) - valor muito inferior comparado aos 18,4
milhões de reais previstos com a população judicial fixada em 41,5 mil
habitantes.
Jacareacanga não briga sozinha com o IBGE: 21 municípios têm algum tipo de
processo na justiça alegando ter população diversa da estimada pelo instituto.
Doze deles ficam no Amazonas, quatro na Bahia e Rondônia, Pernambuco, Pará,
Maranhão e Rio Grande do Norte têm uma cidade cada na lista. Pela estimativa do
IBGE, estes 21 municípios somavam, juntos, 1.310.972 habitantes. Caso os
processos em curso sejam vencidos pelas cidades, a população total aumentaria
para 1.408.771 - um acréscimo de 98 mil pessoas, ou 8%.
Um levantamento feito pela piauí com dados do Observatório de Informações
Municipais (OIM) mostra que a diferença de verba também é considerável: seriam
668 milhões de reais com a população judicial contra 570 milhões de reais com a
população estimada pelo IBGE. O problema é que esse valor não chega como extra,
mas sim é descontado dos outros municípios do estado. 'Como existe um
percentual fixo [de valores] para cada estado, no final das contas se um ou
dois municípios ganham mais, todos os demais do estado ganham um pouco menos',
explica Bremaeker.
Entre 21 municípios que rezam pela cartilha do 'crescei e multiplicai-vos' há
uma exceção: Porto Velho. A capital de Rondônia quer diminuir a população, e o
motivo no final das contas é o mesmo: dinheiro. A estimativa do IBGE aponta 539
mil habitantes na cidade em 2020. Porém, desde 2016, a população judicial em
vigor para o município é de 494 mil pessoas. Quem moveu a ação foi a Câmara
Municipal, de olho no orçamento da casa. Pela Constituição Federal (art. 29,
capítulo IV), cidades entre 300 e 500 mil habitantes podem gastar até 5% da
receita total do município com a Câmara; as de população entre 500 mil e 3
milhões podem gastar até 4,5%. Até a estimativa populacional de 2014, a Câmara
de Porto Velho estava garantindo seus 5%; mas em 2015 a população estimada
passou para 503 mil pessoas. Os repasses da prefeitura cairiam de 35,6 milhões
para 32,2 milhões de reais - perda de 3 milhões em um ano.
Inconformada, a Câmara foi à Justiça, que fixou a população de Porto Velho em
494 mil e garantiu o recurso extra. O controlador geral da Câmara, Victor
Morelly, disse que a cidade teve um 'aumento populacional temporário em virtude
da construção de duas usinas hidrelétricas' e que 'muitas dessas pessoas foram
embora ao final da construção das usinas'. Por isso, segundo o controlador, deveria
ter sido considerado o resultado do censo e não as estimativas de 2015 para
fins do repasse da verba para a Câmara.
O escritório de advocacia tributária Arquilau de Paula, representante da Câmara
no processo, disse que a diferença de 0,5% no orçamento 'praticamente
inviabiliza o funcionamento do Poder Legislativo de Porto Velho' e 'esvaziaria
substancialmente suas funções constitucionais'. 'O próprio IBGE admite margem
de erro de 5% a 10%. E o valor de 2 mil habitantes [a estimativa de 2015 deu 503
mil] não chegava sequer a 0,5%, ou seja, bem abaixo da margem de erro admitida
pelo próprio IBGE', afirmou o escritório.
Também em relação a Porto Velho, o IBGE disse que não se pronunciaria sobre
assuntos judiciais e que a reportagem deveria procurar a Procuradoria-Geral
Federal (PGF), da AGU. O órgão afirmou, por e-mail, que 'considerando a
natureza e metodologia da Estimativa da População, não há que se falar em erro'
do IBGE. Alguns dos argumentos de Porto Velho foram acolhidos pela Justiça
Federal de Rondônia e confirmados pelo Tribunal Federal da 1ª Região. Com isso,
de acordo com a defesa de Porto Velho, as duas partes celebraram um acordo para
manutenção do orçamento da Câmara até o próximo censo do IBGE.
Jacareacanga, em tupi, significa 'cabeça de jacaré'. Segundo os indígenas que
habitavam a região, as saliências do terreno da antiga vila eram similares às
de um jacaré. Nos anos 1950, a região ficou marcada pela garimpagem de ouro e
pela ocupação desordenada. Foi lá que, em fevereiro de 1956, militares do Rio
de Janeiro realizaram a chamada Revolta de Jacareacanga, ao se rebelar contra a
posse de Juscelino Kubitschek na Presidência. Ocuparam a Base Aérea da cidade
por dezenove dias. Os rebeldes foram derrotados pelas tropas governistas e, no
final, foram anistiados pelo presidente. A região, que virou distrito de
Itaituba na década de 1960, só foi elevada à categoria de município em 1991. Em
tempos mais recentes, Jacareacanga entrou no noticiário por outros motivos:
chegou a ser o município com a temperatura mais alta do Brasil, foi denunciada
pelo MPF pelo descaso com a educação da população indígena, recebeu soldados da
Força Nacional para garantir a segurança das eleições em 2020 e ficou no meio
de uma polêmica sobre a utilização de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)
para transporte de garimpeiros ilegais a Brasília. Carrega, também, o título de
ser o município que fica mais distante da capital do próprio estado em todo o
Brasil. São 1,7 mil km de estradas de Belém até Jacareacanga - a mesma distância
para ir da cidade de São Paulo para Chuí (RS).
Agora Jacareacanga carrega outro título: tem a maior diferença, dentre os 21
municípios que questionam o Censo 2010, entre a população estimada e a
população judicial: 81%. Na época em que os dados foram publicados, o então
prefeito Raulien Oliveira de Queiroz (PT) ameaçou fretar dez ônibus, enchê-los
com a população e protestar em frente ao prédio do IBGE em Santarém. O
ex-prefeito morreu em janeiro de 2020, sem que a polêmica fosse resolvida. O
Censo de 2020, que ocorreria entre abril e agosto, deveria ter colocado fim ao
impasse dos jacareacanguenses. Mas o ano não teve censo - teve pandemia.
Sem os dados populacionais oficiais do IBGE, a piauí tentou estimar qual seria
a população de Jacareacanga a partir de outros dados públicos sobre o
município. Não é um levantamento estatístico oficial, mas uma comparação com
outros indicadores.
Em novembro de 2020, mês das eleições municipais, Jacareacanga tinha 12 mil
eleitores cadastrados, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - isso
seria 29% da população judicial de 41,5 mil habitantes e quase o dobro os 7,6
mil habitantes estimados. Para efeito de comparação, a média no Pará é que 66%
dos habitantes do estado eram eleitores e estavam aptos para votar em novembro.
O município de Salinópolis, também no interior do Pará, cuja população foi
estimada em 40,9 mil habitantes para 2020 - similar aos 41,5 mil habitantes
judiciais de Jacareacanga - tem 31,5 mil eleitores, 77% da população. Em Porto
de Moz, Goianésia do Pará, Muana, Curuçá e Tucumã, outras cidades com população
estimada parecida com a população judicial de Jacarecanga, o número de
eleitores variava de 51% e 76% da população.
O Cadastro Central de Empresas (Cempre), realizado pelo IBGE até 2018, indica
que Jacareacanga teria 1.589 pessoas ocupadas naquele ano. Se a população era
de 41,5 mil, como diz a decisão judicial, só 4% da população trabalhava
formalmente. Se era de 8.899, como diz a estimativa do IBGE para 2018, 18% dos
habitantes tinham emprego formal. A média estadual é de 14%.
Em 2018, pelos dados da Sinopse Estatística da Educação Básica de 2018, do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),
Jacareacanga tinha 5.046 pessoas matriculadas no ensino fundamental e 815 no
ensino médio. Se a população real da cidade for parecida com a estimativa do
IBGE, mais da metade dos habitantes (57%) estão matriculados e cursando do 1º
ao 9º ano do ensino fundamental - e seriam, na maioria, crianças. Caso a população
real seja parecida com a judicial, apenas 12% da população estaria matriculada
nesse nível escolar - é uma estimativa mais próxima da verificada em todo o
estado do Pará, onde 16,6% da população estavam matriculadas no ensino
fundamental. Em cidades com população na casa dos 40 mil habitantes, a média
fica entre 14% e 29%. Ou seja, pelo número de matrículas no ensino fundamental,
a população real de Jacareacanga seria maior do que a estimada, mas menor do
que a judicial.
O tamanho da população também impacta em outros indicadores. Na pandemia do
novo coronavírus, uma das maneiras corretas de medir o impacto da doença é
utilizar o número de casos e de mortes proporcional à população. Rio de Janeiro
e São Paulo são as cidades com o maior número de mortes totais, com cerca de 19
mil óbitos cada. Proporcionalmente à população, porém, calculando a taxa por
100 mil habitantes, outros municípios tomam a dianteira, com destaque para
Manaus. O Rio de Janeiro cai para a 32ª posição, e São Paulo, para a 514ª posição.
Esses números ajudam o poder público a entender o grau da pandemia na cidade e
a planejar medidas para tentar barrar o vírus. No caso de Jacareacanga, o não
conhecimento da população real dificulta dimensionar o real impacto do vírus no
município. Até 7 de março, tinham sido confirmados 1.811 casos e 17 mortes na
cidade. Na população estimada de 7,6 mil habitantes, Jacareacanga estaria entre
as cem cidades com o maior número de mortes no Brasil - 224 mortes óbitos a
cada 100 mil habitantes. Pela população judicial, essa taxa cairia para 41
mortes por 100 mil habitantes - e deixaria a cidade na 4.193ª posição no
ranking das cidades com mais mortes.
A esperança de definir quantas pessoas realmente vivem nos municípios com
população definida na Justiça tinha ficado para o Censo 2020. Mas a pandemia
jogou o recenseamento para 2021, e a resposta ficou um pouco mais distante. Se
tudo seguir como planejado, as dúvidas dentro da sala de aula da professora
Luziane Pereira serão finalmente respondidas, e os jacareacanguenses saberão
quantos são até o final deste ano. Isso se a pandemia não adiar tudo outra vez.
Por Plínio Lopes, na Revista Piauí
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