terça-feira, 10 de março de 2020

O inferno das big techs - a gripe dos gadgets



Como o novo coronavírus paralisou a indústria tecnológica altamente dependente da China

O pânico está instalado nas empresas de tecnologia, até há pouco tempo imunes à maior parte das crises. Com o novo coronavírus espalhado por todos os continentes, dezenas de milhares de casos confirmados e mais de 3 mil mortes, surge outra preocupação que transcende a barreira da saúde pública. Como ficará o abastecimento tecnológico do mundo se parte da China, o principal foco da doença, está paralisada? Como muitas plantas industriais reduziram seus trabalhos ou até mesmo estão em pausa temporária, os atrasos nas manufaturas de eletrônicos já colocam em xeque o calendário de lançamentos de produtos e o faturamento das maiores empresas do mundo.

No dia 1º de fevereiro a Apple anunciou o fechamento de todas as suas lojas e escritórios na China. Duas semanas depois, fez seu segundo anúncio público sobre a epidemia, informando que não conseguiria atingir suas metas de faturamento no primeiro trimestre do ano em decorrência dos impactos do novo coronavírus. “A distribuição de iPhones em todo o mundo ficará temporariamente restrita”, informou a companhia, na ocasião. “Nossos parceiros estão localizados fora da província de Hubei (onde o novo coronavírus surgiu e, por consequência, a mais afetada pela epidemia) — e todos já foram reabertos —, mas estão retornando mais lentamente do que havíamos previsto.”

O anúncio de um novo iPhone de baixo custo, que, segundo se especulava, seria feito neste mês, está em risco, algo inédito para a linha de smartphones lançada há mais de uma década pela companhia fundada por Steve Jobs. Desde o ano passado, analistas previam uma versão popular do aparelho, na casa dos US$ 400, mas o novo coronavírus poderá estragar esses planos. Para o analista Dan Ives, da consultoria Wedbush, no melhor cenário as fábricas chinesas retomarão a capacidade total no início de abril, atrasando em pelo menos um mês o lançamento do produto. Já o pior cenário seria a retomada da capacidade apenas em maio ou junho. Nessa hipótese, o iPhone popular ficaria para o segundo semestre e o lançamento do iPhone 12 seria comprometido, com atraso de pelo menos três meses.

Nesta semana, a Foxconn, principal fornecedora da Apple, informou que seu faturamento deverá despencar em 15% no primeiro trimestre — isso se a produção for retomada no final de março, conforme prometido pela empresa. A companhia de origem taiwanesa é fornecedora de outras marcas globais, como Sony, Dell e Microsoft. A gigante fundada por Bill Gates também reviu para baixo sua expectativa de faturamento por causa da epidemia. Com a produção de computadores e de seu tablet Surface paralisada, a Microsoft não conseguirá alcançar os US$ 10,5 bilhões previstos em vendas para o trimestre.

Para a consultoria IDC, o mercado global de smartphones deverá encolher 2,3% neste ano, com uma queda no primeiro semestre de 10,6% em relação ao mesmo período de 2019. No caso dos PCs, a previsão é de queda de 9% nas vendas, com retrações de 8,2% no primeiro trimestre e de 12,7% no segundo, com o fim dos estoques e os problemas de abastecimento provocados pela epidemia. “O novo coronavírus se tornou mais um motivo para estender a tendência de contração do mercado de smartphones. Enquanto a China sofrerá o maior impacto, outras regiões sofrerão com a interrupção na cadeia de suprimentos”, previu a analista da IDC Sangeetika Srivastava. “Escassez de componentes, paralisações de fábricas, quarentenas, logística e restrições de viagens criam obstáculos para os fabricantes produzirem aparelhos e lançarem novos dispositivos”, disse.

O setor de tecnologia está sendo duramente impactado, sobretudo entre os hardwares, porque a China concentra as cadeias produtivas de eletroeletrônicos do mundo. A japonesa Nintendo, por exemplo, anunciou que o mercado doméstico já está desabastecido de consoles de videogame Switch e os mercados americano e europeu também serão atingidos. No Brasil, a LG anunciou a paralisação de sua fábrica em razão da falta de componentes para a montagem de produtos.

O impacto econômico do novo coronavírus não se deteve nas fábricas. Eventos previstos para as próximas semanas vêm sendo cancelados mundo afora. A GSMA suspendeu a edição deste ano do Mobile World Congress, maior evento da indústria de telecomunicações, que aconteceria em Barcelona. Na Califórnia, o Facebook cancelou o Market Summit e o F8, seu principal evento anual, que aconteceria em maio, em San Jose. O Google cancelou o Cloud Next e a Game Developers Conference foi adiada após a desistência de participantes com o peso de Sony e Microsoft.

Além do marketing do lançamento de produtos e serviços, esses eventos servem para que a comunidade de desenvolvedores e empreendedores tenha contato direto com o que está sendo produzido e com casos de sucesso, que podem inspirar novas soluções. As apresentações de CEOs são destaques na imprensa, como a fala de Mark Zuckerberg no F8 do ano passado redirecionando o foco da companhia para a privacidade. Centenas de palestras e mesas-redondas acontecem simultanemente, o que permite a interação das empresas com seus parceiros.

“Esses eventos são muito importantes para conectar as pessoas, descobrir o que os engenheiros das empresas estão pensando e fechar negócios”, disse Ítalo Nogueira, presidente da Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional). “A gente pode discutir por plataformas on-line, mas não é como olhar nos olhos.”

Para Robert Janssen, diretor executivo da consultoria OBr.global, os cancelamentos não se devem exatamente ao temor do novo coronavírus, mas pelo risco de esses eventos se tornarem pontos de disseminação da doença e mancharem a imagem das empresas. “‘Evento provoca 200 infectados e dez mortes pelo novo coronavírus.’ Ninguém quer uma manchete dessas”, disse Janssen, destacando que os congressos que seguiram em frente estavam “às moscas”. “A Conferência RSA aconteceu, mas era perceptível a redução do tamanho.”

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Mesmo com um pequeno número de casos da doença nos EUA, as empresas do Vale do Silício, coração da indústria de tecnologia, se adiantam tomando medidas de prevenção. Muitas adotaram o home office para evitar contágios em escritórios. Com sede em San Francisco, o Twitter, por exemplo, recomendou a todos os seus 4.900 funcionários que trabalhem de casa. A prática está tão difundida que os congestionamentos acabaram nos arredores da companhia. “O trajeto que faço em duas horas e meia, estou fazendo em uma hora”, contou Janssen, que vive na região desde os anos 1970 e há mais de uma década organiza excursões de empreendedores brasileiros ao Vale do Silício. “Existe um certo pânico, mas ainda não faltam produtos nas prateleiras.”

Os impactos financeiros do novo coronavírus sobre as empresas de tecnologia só serão conhecidos com a divulgação dos balanços trimestrais, que acontecem em abril, mas algumas companhias já dão sinais de terem sido duramente afetadas. O Airbnb planejava sua estreia na Bolsa para este ano, mas deverá adiá-la para 2021 em razão de prejuízos com a falta de hóspedes. Fabricantes de hardwares, como a Apple, começam a repensar sua dependência da China. Um exemplo é a operação da taiwanesa Foxconn no Brasil. Com 1 unidade em São Paulo, a fornecedora mundial da Apple não é capaz de elevar sua produção para fazer frente à queda da fabricação chinesa porque a maior parte das peças que utiliza na montagem de aparelhos vem do país asiático. O mesmo ocorre com todas as demais plantas da gigante pelo mundo. Se, de fato, ocorrer uma mudança de estratégia em relação à China, o novo coronavírus terá trazido ao menos um impacto edificante: o de ensinar à indústria tecnológica a premissa básica do mercado financeiro, de não colocar todos os ovos numa mesma cesta.

Por Sérgio Matsuura, na Revista Época