terça-feira, 10 de dezembro de 2013



Do Anuário Exame 2013-2014 Infraestrutura:

Um terço das obras públicas em andamento vai custar mais do que o planejado
Reportagem de Flávia Furlan, publicada em edição especial do Anuário Exame 2013-2014 Infraestrutura

A CONTA ESTOUROU

Por falha de planejamento, quase um terço das obras em andamento no Brasil será concluído com um valor superior ao previsto inicialmente. Até agora, o gasto extra está estimado em mais de 80 bilhões de reais – e não deve parar por aí.

Quando a companhia de saneamento básico do Estado de São Paulo (Sabesp) anunciou pela primeira vez o orçamento da terceira etapa do projeto de despoluição do rio Tietê, em maio de 2007, o plano era investir 2 bilhões de reais para elevar a capacidade de esgoto tratado na região metropolitana de São Paulo de 18 500 para 24 000 litros por segundo até 2015.

Mas o acréscimo de mais de 1 milhão de habitantes nos últimos cinco anos na Grande São Paulo fez a companhia rever sua meta para 27 500 litros por segundo. Com isso, a Sabesp decidiu ampliar em 70%, e não mais em 50%, a capacidade de esgoto tratado pela estação Barueri, que atende a maioria das residências da capital paulista. A alteração fez o projeto ficar 155 milhões de reais mais caro.

E essa foi apenas uma das mudanças promovidas no meio do caminho, seja por decisão da empresa, seja pela interferência de outras obras urbanas no trabalho da Sabesp. Passados seis anos, o projeto inicial foi para o espaço. A previsão mais recente é entregar a obra dois anos depois do prazo inicialmente previsto – e pelo dobro do valor do orçamento original, ou 4 bilhões de reais.

Casos como o da Sabesp não faltam no Brasil. Um levantamento realizado por Exame, com os 1 566 principais empreendimentos em projeto ou em execução no país, revela que 27% deles tiveram acréscimo no valor original de mais de 80 bilhões de reais.

O principal motivo apontado por especialistas para que as obras no Brasil ultrapassem – e muito – o valor previsto é a falta de planejamento. A Lei de Licitações permite que os empreendimentos sejam feitos com base na elaboração de projetos básicos, que incluem menos detalhes do que os projetos executivos.

Com informações menos precisas, a estimativa de custo inicial, muitas vezes, mostra-se irreal. Isso faz com que alguns especialistas defendam que as obras só podem começar depois da elaboração de um projeto executivo.

 “A pressa acaba custando mais caro para o gestor do que a elaboração de um plano mais detalhado”, diz Francisco Kurimori, presidente do Conselho Regional de Engenharia do Estado de São Paulo.

Um planejamento minucioso seria desejável, mas, para os gestores, nem sempre é viável. No caso da Sabesp, o valor inicial da terceira etapa do projeto de despoluição do rio Tietê foi estimado com base na experiência das duas fases anteriores. “Se parássemos tudo para fazer um projeto executivo em 2007, perderíamos o tempo e não daríamos continuidade à obra”, afirma João Paulo Tavares Papa, diretor de empreendimentos da Sabesp.

O Tribunal de Contas da União (TCU) acredita que o cenário seria bem melhor se os projetos, mesmo no estágio básico, fossem bem elaborados. Mas não é o que acontece. Das 200 obras que sofreram intervenção do TCU em 2012, 45% tinham projetos deficientes – esse foi o principal problema verificado. “O gestor encara o plano básico como mera formalidade e não tem estrutura para avaliá-lo”, afirma Eduardo Nery, secretário de fiscalização de obras de energia e saneamento do TCU.

Sem a atenção devida, os projetos são elaborados quase no piloto automático, seguindo os parâmetros dos anteriores, mas, não raro, acabam errando na avaliação. No caso da construção da usina Angra 3, o primeiro orçamento previa um custo de 7,3 bilhões de reais. Hoje, está em 14 bilhões de reais.

A Eletronuclear, responsável pela obra, diz que foi pega de surpresa pelo câmbio. Em 2013, a desvalorização do real em relação a outras moedas fez o custo com equipamentos importados crescer 15% – a reserva de contingência para cobrir os gastos imprevistos era de apenas 5%.

O fato de grandes obras estourarem o orçamento não é exclusividade do Brasil. Uma pesquisa do governo britânico mostra que, mesmo com a criação de um departamento específico para zelar que os planos aprovados sejam cumpridos à risca, apenas um terço dos maiores projetos do país é entregue dentro do prazo e do orçamento previstos.

Mas, como num cheque especial, a conta só pode estourar até um limite estabelecido. “Em uma obra mais complexa, considera-se aceitável um aumento de até 50% no custo”, diz Paulo Fleury, presidente do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos).

A realidade tem sido bem diferente no Brasil. Um levantamento do Ilos com os 12 maiores projetos do Programa de Aceleração do Crescimento mostra que, em média, o custo final foi 85% maior do que o inicial.

Além de falhas no projeto, outro motivo que contribui para a conta estourar no Brasil é que, na maioria das concorrências, o vencedor é a empresa que propõe tocar a obra pelo menor preço. Com frequência, as empresas reduzem o valor a um patamar deliberadamente baixo, com a intenção de ganhar a concorrência e, no decorrer do projeto, apresentar aditivos para elevar o preço inicial.

A legislação brasileira permite que, nas licitações, esses aditivos sejam de até 25% sobre o valor inicial. “Os tribunais entendem agora que, quando o pedido decorre de alteração do projeto para adequá-lo tecnicamente, pode-se superar esse limite”, afirma a advogada Letícia Queiroz, especialista em direito regulatório do escritório Siqueira Castro.

O novo entendimento abre espaço para discussões. A Petrobras está no centro de uma disputa recente sobre o tema. Algumas de suas prestadoras de serviço acusam a estatal de mudanças no escopo dos orçamentos contratados e pedem a liberação de mais recursos para terminar as obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). A Petrobras acusa as prestadoras de serviço de abusar de aditivos. O caso está na Justiça.

Para evitar o pedido exagerado de aditivos, o governo criou o regime diferenciado de contratação. Nele, a concorrência é feita com base em uma estimativa de valor dos gestores públicos. Depois de contratada a empresa, ela é responsável por fazer todos os projetos. No entanto, não pode exigir aditivos.

O modelo tem sido criticado pelos participantes das concorrências, que dizem que os preços definidos pelos órgãos públicos estão defasados. Resultado: as licitações têm fracassado. Foi o caso das obras para construir uma segunda ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai.

As sete empresas concorrentes apresentaram um valor mínimo de 217 milhões de reais em abril deste ano. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) tinha um orçamento de 195 milhões de reais. “A concorrência deve prezar não só pelo preço mais vantajoso mas também pela competência técnica da empresa”, diz Carlos Campos Neto, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

O ambiente regulatório incerto no Brasil também faz aumentar o valor das obras. Para construir a usina hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, o consórcio responsável pela obra estima que gastará 16,4 bilhões de reais, 4,2 bilhões mais que o previsto inicialmente. Desse total, 2,6 bilhões dizem respeito à correção monetária aplicada desde 2007. O restante é resultado de imprevistos de toda natureza, alguns bem prosaicos. Por exemplo: um grupo de 2 000 pescadores processa o consórcio pela diminuição na quantidade de peixes no rio causada pela obra.

Para confirmar se a oferta de peixes realmente caiu, o consórcio teve de contratar uma empresa de consultoria para estimar a evolução do preço do peixe no período e instalar sensores que mostram a frequência da presença de peixes na região. Isso sem falar nos custos para se defender judicialmente, com a contratação de advogados. “Isso não estava em nosso orçamento”, afirma Eduardo Pinto, presidente do consórcio responsável pela obra. “No Brasil, existe um vácuo institucional que aumenta nosso custo.”