Pouco conhecido, episódio ocorrido no Maranhão em 1889 e chamado de "massacre de 17 de novembro" foi motivado pelo receio de que o fim da monarquia e o novo regime republicano significariam a volta da escravidão.
Era ainda bastante precária a comunicação naquele novembro de 1889. Tanto que as notícias de que o Brasil deixava de ser uma monarquia e passava a ser uma república chegaram a São Luís, no Maranhão, apenas na edição de 17 de novembro de 1889 do jornal republicano O Globo — dois dias depois do fato ocorrido no Rio, então capital do país.
Apesar dessa lentidão no fluxo de informações, há algo
em comum com os dias atuais: boatos infundados rivalizavam com as notícias
verdadeiras e, por vezes, meios de comunicação e jornalistas eram os alvos da
ira.
Foi nesse contexto que uma pouco conhecida rebelião
ocorreu: entre 2 mil e 3 mil negros, chamados pela imprensa da época de
"libertos", "ex-escravos" e "cidadãos de 13 de
maio" — em alusão à data da Lei Áurea, proclamada no ano anterior — foram
até a praça em frente à sede do jornal, um veículo republicano.
Era um protesto contra a República recém-proclamada e
pela volta da monarquia extinta. Mas o que esses militantes queriam, na
verdade, era garantir seus direitos. Estavam movidos por uma fake news: a de
que o novo regime os "reescravizaria". Na lógica do boato, a
explicação estava em dois pontos: fora a monarquia que havia decretado a lei
libertadora; e a República tinha na sua base a elite ruralista, ou seja, justamente
os escravocratas.
"Soldados atiraram para
matar"
Armados com fuzis, 12 soldados foram destacados para
proteger a praça, o jornal, a cidade. E não pestanejaram: dispararam contra a
multidão. Oficialmente, foram quatro mortos e dezenas de feridos. Mas
historiadores acreditam que o número possa ser ainda maior.
"O massacre de 17 de novembro foi o desfecho
violento de um grande protesto de gente negra contra as notícias da proclamação
da República", explica o sociólogo Matheus Gato, professor na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e
República no Brasil.
"Essas pessoas imaginaram que a mudança de regime
podia levar a retrocessos no tocante ao direito de liberdade que muitas delas
haviam conquistado pouco tempo antes", acrescenta.
Contribuiu para a confusão o ambiente de profunda
desorganização institucional. Conforme conta Gato, as notícias da proclamação
no Maranhão foram, naquele momento, veiculadas apenas pelo jornal O Globo —
nenhuma instituição oficial havia se posicionado a respeito.
Em artigo publicado no livro História do Maranhão:
Novos Estudos, o historiador Luiz Alberto Ferreira afirma que foram mais de 400
os feridos, muito deles com gravidade. E argumenta que os soldados atiraram
"para matar", considerando que relatórios da Santa Casa, feitos na
época, indicam que muitos "foram alvejados na parte superior do
corpo".
O historiador chama o acontecimento de fuzilamento e
de massacre.
Assassinato de memórias
A despeito do número relativamente pequeno de mortos,
o sociólogo Gato concorda com a definição de massacre porque, além da intenção
de matar, a ideia de massacre não seria apenas baseada na "quantidade de
vítimas", mas também da maneira como as memórias são assassinadas.
No caso do episódio, eram homens que estavam dispostos
a dar suas vidas pelo medo de serem escravos novamente. A ideia de massacre,
para o sociólogo, resume então "todo o conjunto de violências e
humilhações", a base da "formação do racismo estrutural
brasileiro".
Outra evidência encontrada nas pesquisas realizadas
por Gato diz respeito ao alto número de amputações realizadas dentre os
alvejados que foram atendidos no hospital logo após o incidente. Também se
somam aos relatos casos de tortura contra aqueles que acabaram detidos por
incitarem a confusão.
O historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador
vinculado a Universidade de Estrasburgo, na França, avalia que o episódio tem
esse potencial para romper o lugar-comum de que o episódio da proclamação da
República foi assistido passivamente pela população brasileira.
"Tem uma importância crucial no entendimento da
formação da sociedade moderna por evidenciar esses conflitos em torno da
questão política e da disputa de diferentes agentes desse processo
político", diz Reis. "Revela muito sobre nossa formação enquanto país
e as disparidades existentes entre as regiões, dado que não foi unânime a nossa
proclamação da República."
Na opinião dele, na análise do episódio não está em
discussão "simplesmente a defesa da monarquia ou da república", mas
principalmente a participação popular.
Apagamento histórico
Gato explica que o episódio do massacre de 17 de
novembro é pouco conhecido da historiografia porque "houve uma tentativa
de banalizar e silenciar o lugar desses revoltosos no período de mudança de
regime político".
Ele mesmo conta que se deparou com os relatos pela
primeira vez em obras de ficção, como em textos do escritor maranhense Raul
Astolfo Marques (1876-1918).
Instigado pelas narrativas, decidiu buscar o
contraponto nos jornais da época. "Eu pensei que [essas histórias] se
tratassem de ficção. Mas, para minha surpresa, descobri que, sim, o episódio
havia mesmo acontecido."
Edison Veiga, Deutsche Welle
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