A accountability bem que poderia despertar mais discussões sobre o
seu sentido no contexto brasileiro, inclusive porque, como se sabe, não existe
ainda um termo que a traduza diretamente para a Língua Portuguesa.
A despeito de possíveis controvérsias, adotamos o
entendimento de Pinho e Sacramento [1], para quem o conceito envolve
'responsabilidade (objetiva e subjetiva), controle, transparência, obrigação de
prestação de contas, justificativas para as ações que foram ou deixaram de ser
empreendidas, premiação e/ou castigo'.
Sim, o tema é amplo, basta observarmos o número de
conceitos que o seu conteúdo contempla. Todavia, mesmo que essa questão possa
merecer variadas discussões, esse artigo está centrado em uma questão específica,
que julgamos crucial trazer à tona nesse momento: o embate entre os avanços
lentamente construídos para a accountability das contas públicas e as medidas
que vorazmente buscam mitigar essas conquistas.
Quando falamos que a 'construção' da accountability é
lenta no Brasil não estamos imprimindo um tom desanimador. Na verdade, dado
tudo o que envolve o conceito, é realmente de se esperar que os avanços sejam
morosos.
Obviamente que essa lentidão é mais acentuada no
Brasil, onde questões dessa natureza requerem um período maior de maturação da
própria cultura política que predomina no país. Os 'tijolinhos' dessa
construção são as iniciativas representadas pela institucionalização de um
conjunto de mecanismos e procedimentos, que, colocadas incrementalmente - uma a
uma - nessa estrutura, almejam impor algum constrangimento aos dirigentes
públicos para que informem, justifiquem e prestem contas dos resultados de suas
ações.
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A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a
implantação do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público
Brasileiro (SICONFI) e do site Portal da Transparência, a aprovação da Lei da
Transparência e ainda da Lei de Acesso à Informação (LAI) são exemplos
emblemáticos desses avanços. E para que não se pense que ações nesse sentido
são empreendidas exclusivamente a partir do topo de nosso ordenamento
federativo, convém destacar que se observa algumas ocorrências importantes
protagonizadas também por entes subnacionais. Tomemos como caso ilustrativo, o
Estado de Santa Catarina.
O Estado foi escolhido para ser citado por ter sido
recentemente admitido como membro da Open Government Partnership (OGP). A OGP é
uma organização internacional que atua na promoção de governos mais
transparentes, responsáveis, eficientes e inclusivos. Seu objetivo é coordenar
e impulsionar ações voltadas para a abertura do governo por meio da adoção de
princípios como o de accountability [2].
A partir desta admissão foi desenvolvido o 1º Plano de
Ação SC Governo Aberto, construído em conjunto entre Governo e sociedade no
âmbito da parceria da OGP, com compromissos e ações que buscam um governo mais
aberto, transparente, responsável e com mais espaços para a participação social
[2].
Ainda circunscrita ao Estado de Santa Catarina, citamos
outra iniciativa, agora em nível municipal. Trata-se do projeto que está sendo
desenvolvido a partir de uma parceria firmada entre o Centro de Ciências da
Administração e Socioeconômicas da Universidade do Estado de Santa Catarina
(Udesc Esag) e a Prefeitura de Blumenau para desenvolver uma proposta de padrão
para a publicação de dados abertos relativos aos processos de compras e
contratações públicas.
Inicialmente, busca-se atender uma necessidade da
Prefeitura de Blumenau, mas com a intenção de disseminá-lo para outras
prefeituras e órgãos públicos [3]. Segundo informações do projeto, mesmo diante
de um arcabouço legislativo robusto que preconiza os dados abertos, estados e
municípios não possuem um padrão mínimo a seguir, o que por vezes resulta em
iniciativas de abertura de dados isoladas que visam apenas o atendimento aos
requisitos legais. Para tanto, a intenção é de construir e propor um padrão replicável
de dados abertos estruturados, em colaboração com outras iniciativas de
abertura de dados e compras públicas [3].
Contudo, se de um lado constatamos que existem
iniciativas e suas respectivas contribuições em prol da accountability a partir
de todos os níveis e poderes da organização político-administrativa do Brasil
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios), de outro também se constatam
ameaças oriundas desses mesmos atores.
Dentre essas, destacamos a recente tentativa de
aprovação da PEC n. 5 de 2021 [4] para alterar a composição e modificar regras
do Conselho Nacional do Ministério Público alegando necessidade de 'eliminar
certa sensação de corporativismo e de impunidade em relação aos membros do
Ministério Público que mereçam sofrer sanções administrativas por desvios de
conduta', o que legou à PEC o cognome de PEC da Vingança. Ou, seja, enquanto
conseguimos avanços a passos lentos, à luz daquilo que Martins [5] identifica
como sendo o Brasil um país de História Lenta, estamos sujeitos também a uma
voraz destruição do arcabouço da accountability iniciado no país.
Outro exemplo de retrocesso diz respeito à tentativa do
Congresso Nacional em viabilizar um aumento de verbas da ordem de mais de R$ 16
bilhões por meio de emendas do relator ou pelo aumento do volume de verbas que
estados e municípios podem usar sem que haja qualquer tipo de controle por
parte do Tribunal de Contas da União (TCU) [6]. Neste caso, corre-se o risco de
uma intensificação do uso de recursos públicos baseados não no atendimento de
demandas sociais, mas na já tão conhecida política do 'toma lá dá cá' entre o
Executivo e o Legislativo brasileiro [6].
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Trata-se aí de uma decorrência da inovação trazida pela
Emenda Constitucional (EC) nº 105/2019 [7] que permitiu que emendas individuais
apresentadas por parlamentares ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA)
possam alocar recursos aos entes subnacionais - Estados, Distrito Federal e
Municípios - por meio de transferência especial [6].
O retrocesso atribuído à EC nº 105/2019 é pelo fato de
não exigir informações básicas para a transparência e o controle da gestão do
dinheiro público na modalidade designada por transferências especiais sem
finalidade definida. O ente que recebe o recurso não necessita prestar contas a
qualquer órgão ou entidade federal a respeito de como os recursos recebidos
foram executados, como se exige, por exemplo, na celebração de convênios [6].
Vive-se, de fato, um cenário com possibilidades reais
de retrocessos para a accountability no Brasil. No caso particular da EC nº
105/2019, parece urgente e necessário um debate mais amplo com os órgãos de
controle a respeito da fiscalização sobre a aplicação desses recursos, que
mitiguem a ausência de transparência para as emendas parlamentares [8].
Some-se aos mencionados retrocessos uma certa paralisia
que já se observa na efetividade da LAI, pois somente está regulamentada em um
a cada cinco municípios brasileiros, não obstante seus 10 anos de aprovação
pelo Congresso Nacional, e do seu suposto conflito com a Lei Geral de Proteção
de Dados (LGPD), tudo para impedir que a LAI vigore conforme sua concepção [9].
Situações como essas já podem estar desfazendo os
alicerces de construção da accountability tão lentamente erigidos e a duras
penas no Brasil.
Fabiano
Maury Raupp, Ana Rita Silva Sacramento, O Estado de S. Paulo - Blogs / Noticias
Notas
[1] PINHO, J. A. G.; SACRAMENTO, A. R. S.
Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de
Administração Pública, v. 43, n. 6, p. 1343-1368, 2009.
[2] CGE/SC. SC Governo Aberto. Disponível em:
https://cge.sc.gov.br/governo-aberto/ Acesso em: 21 nov. 2021.
[3] UDESC ESAG. Padronização de dado abertos em
contratações públicas. Disponível em:
https://www.udesc.br/esag/projetodadosabertos Acesso em: 21 nov. 2021.
[4] BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 05, de
25 de março de 2021. Altera artigo 130-A da Constituição Federal no que trata
da composição do Conselho Nacional do Ministério Público e dá outras
providências. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0p2s8kd8r82slbbm9n1uee4nl2511313.node0?codteor=1981273&filename=PEC+5/2021
Acesso em: 24 nov. 2021.
[5] MARTINS, J. de S. A política do Brasil: lúmpen e
místico. São Paulo: Contexto, 2011.
[6] RAUPP, F. M. et al. Sem Transparência 'a Emenda
Sairá Pior que o Soneto'. Estadão. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/sem-transparencia-a-emenda-saira-pior-que-o-soneto/
21 nov. 2021.
[7] BRASIL. Emenda Constitucional nº 105, de 12 de
dezembro de 2019. 2019. Acrescenta o art. 166-A à Constituição Federal, para
autorizar a transferência de recursos federais a Estados, ao Distrito Federal e
a Municípios mediante emendas ao projeto de lei orçamentária anual. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc105.htm
Acesso em: 21 nov. 2021.
[8] RAUPP, F. M.; SACRAMENTO, A. R. S. As
transferências especiais do orçamento público prescindem de controle? Estadão.
Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/as-transferencias-especiais-do-orcamento-publico-prescindem-de-controle/
21 nov. 2021.
[9] BREMBATTI, K. Em 10 anos, Lei de Acesso à
Informação muda patamar da transparência no País. Estadão. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,em-10-anos-lei-de-acesso-a-informacao-muda-patamar-da-transparencia-no-pais,70003901668
Acesso em: 24 nov. 2021.
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