segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Precisamos falar sobre o BNDES

 


Não faz sentido o banco, que tem elevado potencial de contribuição para o país, ser tratado como uma sanfona, com vaivéns violentos de suas políticas.

 

Na esteira do boom das commodities, o BNDES desembolsou uma média anual de R$ 282 bilhões entre 2009 e 2015 (a preços de 2021, considerando uma inflação de 10% do deflator do PIB em 2021), frente a R$ 145 bilhões/ano de 2001 a 2008, na mesma base de preços. Essa política foi uma decisão de governo. Depois, houve uma mudança de 180 graus. Agora, está na hora de ter uma conversa sobre a instituição definida como 'principal instrumento de execução da política de investimentos do Governo Federal' (Artigo 23 da Lei 4595/1964), submetida a executar as políticas mais díspares nos últimos 20 anos.

Cada uma dessas fases, individualmente, teve suas razões. No conjunto, configuram uma atitude esquizofrênica - do país, não da instituição. Afinal, qual deve ser o papel do banco? Uma instituição grande ou pequena? Banco de financiamento, de serviços ou ambos? O que a sociedade espera dele? E, que fique claro desde o começo: é um órgão que, sob o bordão de 'é preciso abrir a caixa preta do BNDES', foi objeto de uma gigantesca fraude intelectual, perpetrada com fins políticos e que gerou sérios danos de imagem, com prejuízos para a instituição em geral e para dezenas dos seus funcionários em particular.

A queda de uma marca

O BNDES foi, durante anos, uma 'ilha de excelência'. Na década de 2010, porém, houve uma mudança nessa percepção. Boa parte das críticas feitas ao BNDES, a rigor, eram voltadas para as políticas concebidas pelos governos do PT, avalizadas pelas urnas e previstas em atos oficiais, diversos deles com aprovação do Congresso. Muitos dos que questionavam o BNDES estavam querendo, na luta política, denunciar as falhas do governo de então.

O fato é que essas políticas foram definidas com pleno amparo legal pelas autoridades da época. O banco canalizou, durante um período histórico muito específico, a raiva de parte da população, na suposição de que, ao se pesquisar supostamente com mais atenção suas operações, seria descoberta uma espécie de 'matriz da corrupção'.

Aqui há pontos a considerar. Primeiro, o BNDES não começou em 2003: ao longo da história, ele teve um papel chave como órgão financiador de atividades importantes no desenvolvimento do país. Segundo, mesmo no século XXI, a ação do BNDES esteve longe de ser focada apenas nos 'campeões nacionais': entre 2003 e 2015, por exemplo, 74% da capacidade adicionada de geração elétrica foi financiada com recursos do BNDES e, em 2020, o banco passou a ocupar o segundo lugar no ranking da Bloomberg de líderes globais em energia renovável. Terceiro, bancos de desenvolvimento (BDs)têm uma função relevante, mesmo em economias desenvolvidas, corrigindo falhas de mercado. Falhas de acesso ao crédito ou apoio a projetos com retornos sociais maiores que os privados podem justificar a existência de BDs. O próprio banco tem um histórico de sucesso de iniciativas de cooperativas que podem ser polos importantes de desenvolvimento regional. Além disso, a capacidade de atuação anticíclica está na natureza dessas instituições. Ter tais bancos favorece a agilidade da resposta diante de circunstâncias como as que vivemos na pandemia. Quarto, o BNDES ampliou muito, com os anos, o acesso do público às suas informações, sendo hoje uma instituição totalmente transparente na relação com a sociedade.

O mais importante, para quem zela pela ética, é que com oito anos de intensa investigação da Polícia Federal, do Ministério Público, do TCU, da CGU, de quatro CPIs, das Comissões Internas de Apuração e da imprensa, não apareceu um só indício de prática de corrupção por parte de um único funcionário do BNDES no exercício de suas atividades profissionais no banco. Insisto: houve algum dos funcionários em relação a quem tenha havido indícios de ter levado dinheiro para aprovar um projeto? A resposta é categórica: nenhum. Não é 'apenas 2 ou 3' ou 'só 1 ou 2' e sim, reitero: nenhum. Nada. Zero!

A importância do contexto e o caráter dual do BNDES

Há um elemento que precisa ser considerado em qualquer Julgamento: o contexto e as informações disponíveis à época. As críticas à atuação do BNDES em meados da década passada por vezes desconsideravam que as informações sobre atividades ilícitas de algumas empresas financiadas não eram então de conhecimento público. Pode-se questionar se emprestar para grandes empresas dos setores X ou Y deveria ser a função de um banco de desenvolvimento. Entretanto, do ponto de vista dos funcionários do BNDES incumbidos de realizar a análise das operações, não havia elementos que levassem a invalidar esses financiamentos a empresas de setores que eram citados na política industrial oficial. No momento em que as operações foram originadas, primeiro, o banco seguiu seus procedimentos de governança; e segundo, na época nenhum elemento do aparelho de fiscalização estatal indicava sinais de preocupação ou reparos em relação às operações que estavam sendo estruturadas. Só vários anos depois aquelas empresas passaram a ser objeto de questionamentos legais.

O BNDES tem um caráter dual, como órgão de Estado e de governo. Uma vez que o governo define as políticas, cada funcionário, a despeito de suas preferências, deve seguir a orientação oficial, desde que esteja em consonância com a legislação e melhores práticas bancárias. Se há uma política de apoio às exportações, com instrumentos de assunção de risco pelo Tesouro, não cabe a um indivíduo questioná-la ao sabor de suas crenças. O mesmo vale para as políticas de desestatização e desinvestimento em curso. O que cabe ao BNDES, a posteriori, é avaliar a efetividade das ações para, tecnicamente, sugerir eventuais aprimoramentos das políticas, se necessário.

O potencial

O BNDES tem um elevado potencial de contribuição para o Brasil. A instituição tem 2, 5 mil funcionários selecionados em concursos públicos disputados. Não há, entre eles, qualquer traço de indicação política para o ingresso na instituição. Destaca-se também o alto nível de expertise e conhecimento acumulado dos especialistas do banco nos mais diversos ramos.

Na agropecuária, que virou um setor representativo na carteira do banco, com a demanda crescente por alimentos da China e da Índia, a sustentabilidade se torna uma oportunidade excepcional para o agronegócio, com grandes perspectivas de apoio do banco. Na infraestrutura, o BNDES continuará a ser um financiador relevante, com prazos superiores a 20 anos, em muitos casos. No estímulo às micro, pequenas e médias empresas, o banco cumpre um papel para suprir as deficiências de acesso ao crédito por parte desses segmentos e estimular a desconcentração bancária.

É importante, também, apoiar a inovação, através de instrumentos adequados. Se as questões ambientais e de sustentabilidade forem peças centrais de um novo modelo de desenvolvimento, num futuro governo, o BNDES tem tudo para ser um pivô das políticas públicas para caminhar na direção de uma economia mais verde. Ainda recentemente, a instituição, como parte do desenvolvimento do mercado de 'títulos verdes', foi a primeira instituição financeira brasileira a emitir Green Bonds no mercado internacional e a realizara primeira emissão de Letra Financeira Verde no mercado doméstico, além de financiar o primeiro projeto híbrido eólico-solar para avaliar um futuro regulamento de usinas híbridas.

Mesmo se o desembolso for menos importante que antes, quando financiava 80% ou 90% do empreendimento, ter o BNDES como parceiro ou âncora do projeto, com participação menor no 'pacote' de apoio, pode ser importante. Não apenas por se tratar de parcela expressiva de um sindicato financeiro, como pelo que representa de endosso oficial, com a chancela da análise técnica e o comprometimento do governo na iniciativa. Trata-se de um ponto importante para convencer outros participantes a entrar no financiamento. Tal mandato não difere em relação aos congêneres que atuam na Europa ou na Ásia.

Adicionalmente, o BNDES tem expertise para lidar, ao mesmo tempo, com temas do século XXI- como o financiamento à 'internet das coisas' (IoT)-e com a 'agenda do século XIX', como a solução da falta de saneamento. O BNDES pode ter um papel- como, de fato, já está tendo - tanto como órgão de assessoramento das operações, como de financiador de novos projetos, destinados a melhorar o abastecimento de água e a rede de esgotos.

Quando se pensa que, no Norte e no Nordeste, há estados nos quais a coleta de esgoto cobre apenas 10% dos domicílios, as potencialidades de ter um tratamento técnico no encaminhamento dessas questões por meio de concessões é óbvia. Nessa função, o BNDES age como articulador, atuando em nome do governo como agente de desenvolvimento, operando como fábrica de projetos, banco de serviços e promotor de projetos nas mais variadas áreas.

O futuro - Uma ideia a pensar

O BNDES completará sete décadas em 2022. É uma instituição que pertence ao país. Há políticas que deveriam ser consideradas sob a ótica dos interesses do Estado, ficando menos expostas ao pêndulo da história. Entre 1984 - quando ingressei nele - e 2021, em 37 anos, o BNDES teve 26 presidentes da instituição, que passou por todo tipo de guinadas. Nesse período, o BID teve quatro presidentes. Quatro! Em termos dos desembolsos reais, o BNDES de 2010 era três vezes o BNDES de 2003 e, em 2021, deverá ser um sexto do de 2010. Considerando que em 2023 poderemos ter nova mudança de orientação governamental, está na hora de discutir o que o país quer do BNDES.

Da mesma forma que o Congresso aprovou uma lei que concede autonomia ao Banco Central, mesmo reconhecendo que empresas públicas estão sujeitas a um arcabouço legal diferente, talvez caiba começar a debater uma 'Lei do Desenvolvimento', que defina o papel do BNDES e das demais instituições federais ligadas a esse propósito. Essa lei poderia apontar princípios da atuação e estabelecer mandatos intercalados para a composição da diretoria, para blindar as entidades contra oscilações extremas.

No caso do BNDES, nesse cenário, ele ancoraria sua atuação numa visão pluralista, procurando considerar as questões do interesse da sociedade. Além da governança, o que cabe discutir é: o que o Brasil quer dos seus bancos públicos e como eles podem complementar o papel do setor privado? O arranjo diferiria em relação ao atual, de supervisão quase exclusiva pelo Executivo, cujos objetivos tendem a variar conforme o governo. Se houvesse um presidente e um conjunto de diretores, cada um deles com mandato de quatro anos, representando a federação, escolhidos com base em critérios de competência e aprovados pelo Congresso, haveria uma linha de atuação legitimada pelo Parlamento, que se manteria, com suaves correções em função de modificações que fossem ocorrendo com o tempo, à medida que os mandatos vencerem. A institucionalidade poderia envolver uma ampliação do instrumento de prestação de contas ao Congresso, da forma estipulada na legislação.

Outros bancos de desenvolvimento, como o KfW, possuem atuação com sistemas de governança específicos, prestando contas a instâncias superiores. Vale a pena explorar essa ideia. Em face das mudanças de condução política de 180 graus que o país tem tido e poderá vir a ter, o que não faz sentido é o BNDES ser tratado como uma sanfona, com vaivéns violentos de suas políticas e com seus funcionários ficando expostos à execração pública, se acontecer de uma gestão de governo, à qual serviram como burocratas weberianos, cair politicamente em desgraça tempos depois.

Fabio Giambiagi, economista, é técnico do BNDES. As opiniões do artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não representam a posição da instituição em que trabalha.

Por Fabio Giambiagi, Valor Econômico  


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