sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A vedação do bis in idem e as sanções administrativas

 


Uma abordagem da perspectiva material

 

Nos últimos tempos, assiste-se no Brasil, tal como no estrangeiro, ao fenômeno da pulverização das hipóteses de responsabilidade, seja dos agentes públicos ou dos particulares, por infrações à ordem jurídico-administrativa.

A isso segue uma densa e multifária legislação e, ao mesmo tempo, a singularidade, inaudita até há pouco entre nós, da cominação de sanções administrativas de excessiva gravidade, seja pela sua materialização em prestações pecuniárias elevadíssimas ou em severas restrições de direito, o que é capaz de atrair uma semelhança frente às penas criminais[1].

Desse modo, a reiterada aplicação das regras de responsabilização administrativa, sem uma cultura inclinada à incidência dos direitos fundamentais, seja no plano substancial ou procedimental, conduzirá, com certeza, à prática de arbitrariedade, a pretexto de motivada sob a intenção de realizar o interesse público.

Não se pode esquecer, nos quadrantes do Estado constitucional, ou democrático de Direito, que a constituição traça o modelo que deve permear na atuação dos poderes públicos e da sociedade.

Atrai o nosso cuidado a proscrição do bis in idem, ou seja, de uma dupla responsabilização pela prática de um mesmo fato. O princípio comporta um exame sob as perspectivas material e processual. No presente texto, pelas limitações de espaço, circunscrevemo-nos a uma abordagem quanto à primeira delas. Para tanto, será previamente útil a constatação de situações onde o legislador tipifica duplamente a mesma infração.

Vejamos.

O art. 5º da Lei nº 12.846/2013, ao tipificar os atos lesivos à Administração Pública brasileira, destaca, no seu inciso IV, aqueles praticados no âmbito das licitações e contratos, dentre os quais consta o tendente a fraudar licitação ou contrato dela decorrente (alínea d), conteúdo que coincide substancialmente com o do tipo do art. 155, IX, da Lei nº 14.133/2021[2]. E, como se não bastasse, o inciso XII deste diploma tipifica como infração, a ser punida com as penas que arrola no seu art. 156, quaisquer das ações previstas no art. 5º, IV, daquele diploma.

Significa dizer, então, que uma fraude perpetrada por um licitante numa determinada licitação será, igual e duplamente, punível com base na Lei nº 12.846/2013 e na Lei nº 14.133/2021[3]. Num rápido paralelo com o direito criminal, suponha-se que um prefeito, acusado de haver se apropriado de verbas repassadas em face de um convênio específico, venha a ser processado e punido tanto pelo art. 312 do Código Penal quanto pela infringência do art. 1º, I, do Decreto-lei nº 201/67.

É sabido que a proscrição do bis in idem representa um princípio imanente ao Estado de Direito[4], reconhecido pela via interpretativa, na qualidade de direito fundamental implícito.

Visto sob a perspectiva substancial, proíbe-se - acentua María Jesús Gallardo Castilho[5], com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol - a duplicidade do exercício do jus puniendi pelo Estado (tribunais ou administração) quando estiver presente a identidade de sujeito, fato e fundamento.

Uma amostra elucidativa está na STC 188/2005, que se originou de haver um guarda municipal sido punido pela prática de três faltas disciplinares, cometidas no período de um ano.

Ao depois, a administração novamente lhe aplicou penalidade (suspensão por três anos), agora por violação ao art. 27.3 da Ley Orgánica 2/1986, ao tipificar como falta disciplinar muito grave a prática de três infrações dentro de um ano, ou seja, o mesmo fato pelo qual já havia sido punido.

Declarou-se a inconstitucionalidade da norma, por resultar adversa ao non bis in idem, à medida que a regra impugnada possibilita a duplicidade de sanções a alguém pelos mesmos fatos e fundamento.

A recepção dessa orientação não é incompatível com o nosso ordenamento, sendo exemplo inconteste as Súmulas 18 e 19 do STF, de sorte que a aplicação de mais de uma punição pelo mesmo fato pressupõe que se cuidem de responsabilidades diversas, como a administrativa e a criminal.

No regime dos direitos fundamentais da Constituição vigente, cujo pioneirismo da sua precedência perante a organização do Estado não é questão de mera topografia, a impossibilidade da duplicidade de punição, se é de ser visualizada com a individualização da pena, ganha seu substrato indiscutivelmente pela consagração da legalidade e segurança jurídica. A sua transposição para a província das sanções administrativas é, do mesmo modo, inquestionável, nos termos do art. 5º, §2º, da Lei Básica.

Desse modo, a previsão típica de mais uma hipótese de responsabilização administrativa para um mesmo fato e sujeito afigura-se incompatível com a proscrição do bis in idem no sentido material e, de conseguinte, não ostenta validade. O conflito aqui não é superado pela incidência do art. 22, §3º, da LINDB, o qual, mais apropriado à matiz processual do princípio, não possui eficácia para resistir a um confronto com um direito fundamental.

[1] Essa realidade, de recente verificação, é mencionada por Lucía Alarcón Sotomayor (Los confines de las sanciones: en busca de la frontera entre derecho penal y derecho administrativo sancionador. Revista de Administración Pública, n. 195, p. 142-143, setembro-dezembro de 2014.

[2] De notar que, quanto à fraude em licitação, subsiste ainda o tipo do art. 46 da Lei nº 8.443/92, relativo à competência sancionatória do Tribunal de Contas da União.

[3] Causa estupefação a admissão categórica do bis in idem, mas de uma forma natural, sem notar a sua antijuridicidade, que se vê no art. 159 da Lei nº 14.133/2019, prevendo que as penas desta e da Lei nº 12.846/2013 sejam aplicadas aos mesmos fatos num mesmo procedimento.

[4] Está consignada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, a saber: 'Artigo 50º Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito. Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual j· tenha sido absolvido ou pelo qual já· tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei' (disponível em: www.europal.europa.eu. Acesso em: 22 de julho de 2021). Pelo texto, vê-se que engloba os perfis material e processual. Abordando a projeção do preceito na jurisprudência comunitária, conferir Luis López Guerra > en la jurisprudência del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. Revista Espanõla de Derecho Europeo, n. 69, p. 9-26, janeiro/março de 2019.

[5] Los principios de la postestad sancionadora. Madri: Iustel, 2008, p. 295.

Por Edilson Pereira Nobre Júnior, no Jota   

Edilson Pereira Nobre Júnior - Professor titular da Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Desembargador do Tribunal Regional Federal da Quinta Região. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coordenador da Comissão de Direito Comparado do IDASAN.


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