terça-feira, 15 de novembro de 2022

Guerras demais, grãos de menos



Como um conflito, seja o de Putin ou o de soldados etíopes, atinge toda a cadeia de produção


Num primeiro olhar, Vladimir Putin tem pouco em comum com um soldado etíope. Um tem palácios e armas nucleares; o outro, um barraco e um velho fuzil Kalashnikov. Mas ambos ilustram um problema global: as cadeias de fornecimento de alimentos são perturbadas com frequência por homens armados.

Em 29 de outubro, a Rússia afirmou que estava suspendendo sua participação no acordo que permitiría à Ucrânia exportar grãos pelo mar. O Ministério de Relações Exteriores afirmou que a Rússia não podia 'mais garantir a segurança de navios civis de carga seca' que partissem dos portos ucranianos. Já que a única ameaça a essas embarcações é a própria Rússia, a mensagem foi direta. Os preços globais do trigo saltaram em 6%, em 31 de outubro, o primeiro dia de mercado após o anúncio.

Mas, no mesmo dia, Turquia, Ucrânia e ONU organizaram uma frota de 12 navios que partiu do porto ucraniano de Odessa para a segurança das águas turcas. A Rússia não disparou contra as embarcações e, em 2 de novembro, ficou evidente que o blefe havia sido desmascarado: Putin afirmou que permitiría a retomada da exportação de grãos. Diplomatas trocaram elogios por terem resistido à chantagem do déspota russo.

Mas a saga ilustrou uma verdade desconfortável. A oferta global de alimentos é vulnerável a homens armados. De fato, das 828 milhões de pessoas que não conseguem comida suficiente hoje no mundo, quase 60% vivem em países atormentados por conflitos. Violência armada é o maior obstáculo para o fim da fome, afirma o Programa de Alimentação Mundial, da ONU.

A Turquia e a ONU estão tentando persuadir a Rússia a estender por mais quatro meses o acordo sobre grãos, que dura até o dia 19. A desculpa de Putin para a suspensão foi risível: a Ucrânia havia atacado alguns navios de guerra russos na Crimeia, região ucraniana ocupada. Um país invadido atirar contra a Marinha dos invasores dificilmente surpreende, mas Putin professou ultraje.

Ele também reclamou que grande parte dos grãos saídos da Ucrânia ia apenas para países ricos, nada para os pobres. Isso também foi desonesto. Já que os mercados de grãos são globais, qualquer aumento na oferta diminui os seus preços em todo o mundo.

A fragilidade do acordo importa porque ele engendra muito benefício. Entre o começo de agosto e o fim de outubro, a Ucrânia exportou 9,3 milhões de toneladas de grãos através do Mar Negro, ajudando a fazer baixar preços de alimentos.

Em anos normais, a Ucrânia é uma grande fornecedora de calorias. No ano passado, o país forneceu 10%, 14% e 47%, respectivamente, de todo trigo, milho e óleo de girassol negociados globalmente. A Ucrânia costuma escoar 95% de suas exportações pelos portos no Mar Negro.

As exportações totais de grãos da Ucrânia caíram de 5 milhões de toneladas, em fevereiro, para 14 milhão de toneladas, em março, após a Rússia invadir. Até o mês passado, o acordo permitiu que 4,2 milhões de toneladas partissem através do Mar Negro. Mantê-la aberta é essencial.

Outros regimes delinquentes transformaram alimentos em arma de maneiras até mais diretas do que a Rússia. Em Mekelle, capital de Tigré, as ruas estão cheias de mulheres e crianças famintas. O preço do tefe, grão básico da alimentação local, está três vezes mais alto do que em outras partes da Etiópia. Centenas de milhares passam fome.

Tigré tem lutado por mais autonomia, e o governo etíope tem buscado combater esse movimento. Em 2 de novembro, ambos os lados assinaram um cessar-fogo, mas os tigrinos já se decepcionaram antes. Enquanto isso, forças da Eritréia, aliadas do governo etíope, têm realizado saques, incendiado plantações.

CONFLITOS. Entre a pobreza (recentemente exacerbada pela covid) e a seca (tomada mais comum pelas mudanças climáticas), a fome global tem muitas causas. Todas pioram com a guerra. Dos dez países com os maiores números absolutos de pessoas em risco alimentar agudo, todos menos o Sri Lanka são assolados por conflitos.

Na Somália, não é o governo que está tentando impedir alimentos de chegar aos cidadãos, são terroristas. O Al-Shabab, grupo jihadista ligado à Al-Qaeda, controla grandes faixas de território. Um acordo com agências humanitárias permitiu que alguma ajuda atravessasse as linhas de combate, mas hoje o Al-Shabab bloqueia a entrada de quase toda a ajuda em seu território, que inclui as melhores terras agricultáveis da Somália -em meio à sua pior seca em 40 anos.

Nas semanas recentes, forças do governo e milícias sectárias retomaram vários distritos do Al-Shabab. A princípio, a notícia é boa para 41% dos somalis em risco alimentar agudo. Mas à medida que o Al-Shabab é enfraquecido, o grupo fica mais desesperado e ataca com mais violência a população, roubando gado e plantações.

Produção de trigo

Em 2021, Ucrânia e Rússia, juntas, foram responsáveis por 30% da produção global de trigo.

têm sofrido em meio a muitos conflitos nos anos recentes. Muitos foram forçados a abandonar suas terras em razão da luta entre o governo eleito, apoiado pelos americanos, e o Taleban, o grupo jihadista que agora controla o país.

Quem conseguiu cultivar algum alimento teve dificuldade em lucrar com a produção, afirma Ibraheem Bahiss, do Crisis Group, um instituto de análise. A caminho do mercado, eles tinham de pagar 'imposto' no checkpoint do governo, para depois serem roubados novamente pelos taleban alguns quilômetros adiante.

Um agricultor da província afegã de Takhar afirma que soldados do antigo governo tomaram sua terra alguns anos atrás. O Taleban lhe devolveu a propriedade, e ele plantou trigo. Mas então os preços dos combustíveis e dos fertilizantes dispararam por causa da guerra na Ucrânia. E, em setembro, o Taleban assinou um contrato provisório para o Afeganistão comprar trigo barato da Rússia. Isso fez com que o valor do produto despencasse nos mercados locais. Hoje, 90% dos afegãos passam fome.

BELICISMO. Apesar do arrefecimento, o belicismo de Putin afeta a oferta mundial de alimentos ao dificultar o cultivo de grãos na Ucrânia, colocar em risco sua exportação e aumentar os preços globais dos hidrocarbonetos, que são usados tanto no transporte quanto na produção de fertilizantes.

A Ucrânia espera começar a escoar 20 milhões de toneladas de trigo que colheu durante o verão. Grandes importadores do Norte da África e do Oriente Médio já esgotaram as próprias safras e precisam recompor estoques. Os países que mais precisam das exportações ucranianas, como Egito, Líbano, Sudão e Iêmen, têm populações agitadas, que podem tomar as ruas se o pão ficar caro demais.

A inflação sobre o preço dos alimentos é um ingrediente explosivo na Turquia, que terá eleição no próximo ano. O Programa de Alimentação Mundial obtém na Ucrânia metade do trigo que distribui para populações carentes em outros países.

Se o acordo do Mar Negro não for estendido, a Ucrânia seria capaz, em teoria, de exportar mais grãos por rotas alternativas do que lhe foi possível antes de julho. Carlos Mera, do banco holandês Rabobank, observa que o país hoje seria capaz de escoar 3 milhões de toneladas ao mês por ferrovias e outros 2 milhões de toneladas por rodovias ou hidrovias.

Mas a Rússia está determinada em destruir a infraestrutura civil dos ucranianos com ataques de mísseis e drones kamikazes. Grãos que anteriormente eram transportados da fazenda para o porto por meio de sistemas logísticos automatizados podem ter de ser movimentados em carregamentos menores. Isso pode elevar os custos de transporte de US$ 3 a US$ 5 a tonelada para US$ 50 ou mais.

O ministro da Agricultura da Ucrânia, Mikola Solski, estimou que os fazendeiros ucranianos -com pouca água, poucos funcionários e muitas bombas não detonadas em seus campos - semeariam 20% menos trigo neste outono do que haviam planejado.

Outros produtores poderíam, talvez, exportar mais. A Austrália teve este ano sua maior colheita de trigo da história (36 milhões de toneladas, em comparação com 31 milhões em 2021), e a Rússia teve uma colheita recorde de grãos de verão (94 milhões de toneladas.

EXPORTAÇÕES. Por vários meses, as exportações de trigo da Rússia foram vagarosas, em parte porque os navios que atravessam o Mar Negro tiveram dificuldades para obter seguros (a exportação de alimentos do país não está sujeita às sanções do Ocidente). Em outubro, contudo, as exportações russas explodiram. Enquanto isso, EUA e Europa registraram colheitas menos desastrosas do que haviam temido; e Brasil e índia, que não figuram normalmente entre os grandes exportadores de trigo, conseguiram vender no exterior parte de suas safras.

Tudo isso ajudou a refrear os preços globais (apesar de os valores permanecerem mais elevados do que em 2021). Mas no próximo ano essa combinação entre clima favorável e controle de danos parece difícil de se repetir. A Rússia poderá não ter outra safra colossal. EUA e Europa ainda estão recebendo pouquíssima chuva, o que poderá reduzir a colheita de trigo. Na Argentina, a maior exportadora de trigo do Hemisfério Sul, a previsão é que a seca reduzirá a safra. Enchentes e falta de capacidade portuária dificultam para a Austrália elevar suas exportações.

A guerra de Putin também elevou os custos dos fertilizantes ao aumentar o preço do gás natural, insumo crucial para sua produção. Os fertilizantes estão 2,5 vezes mais caros do que no início de 2020. Durante o primeiro semestre deste ano, a indústria europeia de fertilizantes funcionou a 30% de sua capacidade.

Fazendeiros em países ricos puderam contar com antigos estoques de fertilizantes, assim como deixar de realizar algumas aplicações não essenciais para a produtividade a curto prazo. No próximo ano, eles poderão decidir usar menos, considera Seth Meyer, do Departamento de Agricultura dos EUA. Isso prejudicaria a produção. Muitos países mais pobres já estão sem fertilizantes.

Colômbia e Peru buscam acalmar o descontentamento em zonas rurais subsidiando compras. A firma de análise de dados Gro Intelligence calcula que as aplicações reduzidas de nitrogênio projetadas para a próxima safra poderiam resultar em perdas de produção de trigo, milho, soja e arroz equivalentes a 216 trilhões de calorias mundialmente - o suficiente para alimentar 240 milhões de homens adultos por um ano.

Quando a oferta não consegue crescer, a demanda é obrigada a se ajustar. Muitas pessoas estão consumindo menos carne, leite e queijo, que são alimentos mais caros. A demanda por biocombustível feito de soja e milho também caiu. Mas a demanda por trigo não tem diminuído, em parte porque muitos governos subsidiam sua compra.

O resultado é que, pelo terceiro ano consecutivo, o mundo vai consumir mais grãos do que produz. Mais preocupante ainda, os estoques mantidos pelos grandes exportadores têm diminuído há anos em razão de safras ruins. Na Rússia e na Ucrânia, os grãos que não puderem ser exportados poderão ser estocados. Mas em outros países, a relação estoque-uso está projetada para cair de 22%, em 2019, para menos de 12% em 2023 e 11% em 2024.

Para trazer os estoques de volta a níveis seguros, o mundo precisa de safras-tampão consecutivas. Mas, em vez disso, diz o consultor em commodities Jean-François Lambert, energia cara, água escassa e a guerra germinaram as sementes de um 'déficit estrutural de alimentos'.

Em países importadores, a inflação sobre o preço dos alimentos será amplificada pela força do dólar, moeda na qual o valor de muitas commodities é cotado. Governos de vários países poderão ter de escolher entre subsídios que não são capazes de bancar ou inflação sobre preços de alimentos que provocam insurreições.

CRIANÇAS. No Brasil, um país de renda média, a proporção de pessoas que passam fome em algum momento saltou de 9%, no fim de 2020, para 15%, ou 33 milhões de pessoas, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Como resultado, 'vemos muitas crianças que não estão se desenvolvendo apropriadamente', afirma Rodrigo Afonso, diretor da ONG Ação da Cidadania. 'Se você não alimenta uma criança, ela sofre problemas de desenvolvimento físico e intelectual por toda a vida.'

Esse pode ser o pior dos legados da guerra de Putin. Milhões de crianças se tomarão adultos menos inteligentes - e portanto levarão vidas mais pobres e menos produtivas.

Exportação

4,2 milhões de toneladas de grãos puderam ser exportados pela Ucrânia em meio ao acordo com Rússia.

'Se você não alimenta uma criança, ela sofre problemas de desenvolvimento físico e intelectual por toda a vida'

Jornal O Estado de S. Paulo  | A Fundo

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