quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A privatização a jato da telefonia que Renan tentou aprovar


O senador Antônio Reggufe (sem partido-DF) foi o parlamentar mais assíduo em 2016. O único, segundo levantamento do Congresso em Foco, que compareceu a todas as sessões do plenário. Mesmo assim, Reggufe desconhecia, até dezembro do ano passado, o Projeto de Lei 79/2016, que altera a Lei Geral das Telecomunicações, de 1997, e transfere ao setor privado a infraestrutura até agora estatal usada pela telefonia fixa brasileira – um negócio que envolve dezenas de bilhões de reais e afetará a qualidade futura dos serviços de telecomunicações no país.
Nos últimos dias de 2016, o texto seguia desenfreado para a apreciação presidencial quando a oposição iniciou uma força-tarefa para barrá-lo. Reggufe foi um dos últimos nomes recrutados a assinar o recurso que solicitava a discussão da matéria no plenário. "Um tema dessa importância não pode ser aprovado sem ampla discussão", disse. Entre assinaturas de senadores removidas do recurso por pressão partidária e correria dos que defendem mais debate, opositores conseguiram protelar o avanço do projeto para depois do recesso parlamentar, que terminou no dia 2 de fevereiro. Renan Calheiros, que era presidente do Senado na época, havia confirmado à presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, que não haveria movimentação em relação ao projeto até essa data. Surpreendeu a todos quando despachou a matéria à Presidência da República dois dias antes, em 31 de janeiro. Os parlamentares de oposição recorreram ao Supremo. O ministro Luís Roberto Barroso atendeu ao pedido de 12 senadores e determinou que o presidente Michel Temer não poderia sancioná-lo, antes de o Senado contemplar todos os recursos a respeito. Nesta semana, os opositores e organizações da sociedade civil atingiram seu objetivo: o Executivo devolveu o projeto ao Senado, para que ele seja debatido com mais calma.

Além da celeridade incomum com que o texto avançou, a partir de 6 de dezembro, quando foi aprovado por uma única comissão com 11 senadores, a oposição julga que o rito foi recheado de manobras de bastidores: a Mesa do Senado reprovou recursos da oposição com a justificativa de que algumas assinaturas eram eletrônicas. Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), uma das parlamentares mais proativas na luta contra o PL das Teles, enviou um memorando à Mesa em que afirmava que o prazo para emendas tampouco fora respeitado. "Lindbergh Farias (PT-RJ) tinha várias emendas para apresentar, o prazo ainda estava aberto, mas o texto já havia sido aprovado. Ouvi que havia uma cerimônia programada para a sanção", diz um consultor legislativo do Senado. A pressão exercida por entidades ligadas a direitos na internet ajudou a dar visibilidade a um projeto até então pouco conhecido. Dezenas de organizações assinaram uma nota de repúdio ao texto. Por fim, um pedido de liminar de 13 senadores foi entregue a Cármen Lúcia. Ele solicitava análise da tramitação. Carmen encaminhou o mandado a Teori Zavaski por julgar que não havia urgência na análise. Ela se baseava na promessa de Renan, de que a tramitação só seria retomada após 2 de fevereiro, e que não foi cumprida.
O tema é uma das prioridades do governo e foi incluído na Agenda Brasil de 2017 de Renan – lista de pautas dedicadas a impulsionar a economia brasileira. De autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB-GO), permite que as empresas de telecomunicações possam deter a infraestrutura da telefonia fixa (como redes de acesso, prédios e antenas) em troca de investimentos na expansão da internet banda larga. Desde 1998, com a privatização da estatal Telebras, o regime em vigência é o de concessão. Ele dá o direito de uso dos bens da União às empresas até o fim do contrato, em 2025, como um empréstimo. As companhias nesse regime, como Oi, Vivo, TIM e Claro, devem cumprir metas de universalização (oferecer disponibilidade de linhas telefônicas em todo o país) e de modicidade tarifária (vivem num mercado regulado, sem o poder de estipular tarifas arbitrárias). Como o telefone fixo segue uma trajetória rumo ao desuso se comparado ao celular e à internet, essas redes correm o risco de perder atratividade diante de tecnologias mais rápidas e baratas. O PL 79/2016 surge como uma maneira de flexibilizar esse prazo, antecipando em sete anos o prazo da concessão e dando às empresas atuantes essa infraestrutura. Em troca, elas devem investir na expansão de internet.

O problema é que o projeto não especifica como as companhias farão esses investimentos. O Instituto de Defesa ao Consumidor (Idec) alertou para possíveis consequências na vida prática dos consumidores, se a lei for aprovada com o texto atual: aumento dos preços (a proposta dispensa as empresas de seguirem a modicidade tarifária nesse serviço), risco de não cumprimento das políticas de inclusão digital, já que o texto atual não se ampara em política pública nem determina metas; falta de universalização dos serviços de interesse coletivo; permanência do problema da falta de investimento ('nenhum estudo técnico demonstra relação direta entre desregulamentação e aumento de investimento no setor de Telecom em países em desenvolvimento como o Brasil'); e entrega de uma infraestrutura estratégica para um grupo de empresas sem cobrança clara de contrapartida e, como o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) aponta, sem definição de como ela poderia ser tomada de volta, se o governo assim considerar necessário.
A oposição baseia parte de seus argumentos em grupos como a Coalizão Direitos na Rede, que reúne várias organizações em prol de direitos na internet. Essa análise é refutada por outros estudiosos do tema, como Arthur Barrionuevo, economista especializado em telecomunicações e ex-membro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão ligado ao Ministério da Justiça e defensor da concorrência). Ele defende o projeto e acredita que a migração da infraestrutura de telefonia fixa do Estado para as empresas trará queda nos preços. 'A banda larga é definida pela competição e não pelo regulador. Se os ativos de telefonia fixa passarem a ser propriedade delas, terão mais estímulo a investir (e expandir a rede) porque há possibilidade de vender mais', diz. Por essa visão, o atual regime de concessão oferece menos estímulo às teles para investir numa rede que não pertence a elas.
Para Barrionuevo, não se trata de uma 'benesse', já que a Anatel determinará investimentos, e não é estratégico esperar até 2025 para realizar uma nova Licitação, pois a tendência mundial é migrar da rede de cobre a outras tecnologias. 'Se esperar até o fim, dificilmente haverá interessados.' Ele cita o exemplo da Net, que não é regulada e hoje é o maior provedor de banda larga do país. Quanto à universalização, Barrionuevo afirma que, se o governo estudar bem, as regiões desassistidas podem ser determinadas nos planos de investimentos. 'Em vez de pagar em dinheiro, as empresas aumentarão a rede onde hoje não existe atratividade econômica para o setor privado', argumenta.
A internet é muito bem-vinda em qualquer lugar do mundo e não há comparação de seu potencial econômico com o telefone. A questão, no entanto, não se reduz a escolher em qual dos dois o país deve investir. Em um cenário dramático de falta de dinheiro do setor público para investir em infraestrutura e a necessidade de desencadear esses investimentos para que o país volte a crescer, o texto propõe uma alteração profunda no modelo de telecomunicações brasileiro – mas sem expor com clareza como essa mudança será executada. Um ponto crítico do projeto, que independe da posição ideológica Estado versus privatização, é que o valor dos bens reversíveis (depois de 2025 eles retornariam à União) a serem ofertados às teles não foi definido. No discurso da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o valor é de R$ 20 bilhões. A metodologia de cálculo usado pela agência já foi contestada pelo TCU. Para auxiliar na conta, a Anatel contratou duas consultorias independentes em janeiro. Quando o valor será divulgado? Só depois da sanção do projeto de lei. É quase como calcular quanto vale um imóvel só após repassá-lo ao comprador. No discurso da oposição, o negócio poderia ser ainda pior, da ordem de R$ 105 bilhões. Apesar de estarem documentados em uma auditoria do TCU de 2015, os R$ 105 bilhões são o valor histórico e consideram o custo de aquisição dos bens à época da privatização, sem depreciação.
A depreciação da tecnologia é uma das mais rápidas do mercado, vide a evolução do setor (o iPhone foi lançado há apenas 10 anos e modificou a forma com que usamos o celular). À medida que perde a competitividade, o bem desvaloriza. Juarez Quadros, presidente da Anatel, defende que a avaliação dos bens e sua oferta sejam feitos antes de 2025 sob o risco de tornarem-se obsoletos. "Com todas as inovações que ocorreram em cima de outros serviços, esse vai perdendo cliente." Entre dados, TV e voz, o primeiro é naturalmente mais atraente. As assinaturas de telefone fixo caem desde 2013. São 42 milhões de assinaturas comerciais ou pessoais (muitas dispensáveis, mantidas apenas pela comodidade da oferta do combo triplo – telefone, internet e TV) contra 244 milhões de assinaturas de celular.
A defesa de uma nova rodada de privatização (só que, dessa vez, sem leilões) está baseada na ideia de que não faz sentido deixar para o governo uma estrutura sem funcionalidade. No entanto, é preciso notar que mais de 50% da banda larga tem como base as redes da telefonia fixa. Essas redes, portanto, não serão ultrapassadas como um orelhão movido à ficha. Representantes do Direitos na Rede citam que, por imposição contratual, as redes receberam atualizações, muitas já são de fibra óptica e as tecnologias atuais permitem a associação de redes de cobre (usadas para o telefone) com fibra óptica para o provimento de banda larga em alta capacidade. Defendem que as redes permanecem atrativas e criticam a proximidade de uma agência reguladora com empresas que já falharam em cumprir compromissos anteriores de investimento.
Para Carlos Ari Sundfeld, advogado que participou da concepção da Lei Geral das Telecomunicações, é coerente que hoje, os estatistas sejam contrários ao PL 79 bem como foram contra o modelo adotado na reforma da LGT, por ele ter dado muita liberdade ao setor privado e acabado com a exploração estatal. A regra na privatização era que as vencedoras do leilão devolveriam os bens ao Estado, ao fim do período de concessão. Sundfeld afirma que a Anatel, ao se posicionar favorável ao projeto que muda o combinado, cumpre seu papel institucional, de propor normas e reformas de um setor que lhe cabe regular. 'Uma discussão que foi colocada é sobre a razão de extinguir a concessão e ceder (onerosamente, claro) os bens reversíveis às atuais empresas, ao invés de fazer uma Licitação para haver disputa ampla quanto a isso. A resposta é muito simples: porque é fática e economicamente inviável', diz.
Questões importantes precisam ser levadas em conta. Uma empresa a receber ativos seria a Oi, endividada em R$ 64,5 bilhões (parte com o dinheiro público). Quem ficará responsável por definir como ela investirá em banda larga? Qual é a relação de prioridade entre as dívidas e o compromisso de investimento da empresa?
As companhias também já tiveram a troca de dívidas por investimentos autorizadas pela agência por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC). Só no ano passado, R$ 3,3 bilhões para a Vivo e R$ 1,2 bilhão para a Oi. Os processos ainda carecem de aprovação do TCU. Em novembro do ano passado, Marco Schroeder, presidente da Oi, disse que iria propor uma TAC para a troca de R$ 11 bilhões de dívidas por investimentos. O plano judicial da companhia, elaborado em 2016, já prevê mudanças legislativas no setor de telecomunicações. Se Temer sancionar o PL 79/2016, a Oi poderá ficar com R$ 8,09 bilhões de bens reversíveis, pouco menos que sua dívida total com a Anatel.
Do ponto de vista do interesse público, um serviço de telecomunicação considerado básico se apoia em três pilares: universalização, modicidade tarifária e essencialidade (o serviço não pode ser interrompido), segundo Rafael Zanatta, advogado do Idec. "Com o PL, você negocia metas de universalização nos contratos de autorização pela Anatel, mas sem esse aparato (os três pilares). Você não consegue fazer com que exista uma assinatura de banda larga por R$ 30,00. Não tem como obrigar as empresas a oferecerem preço módico", diz. Isso seria possível apenas se a internet banda larga fosse tida como um serviço essencial, como o telefone, o que demandaria uma reforma na Lei de Telecomunicações. "Aí se poderia tornar obrigatória a oferta de internet a preço acessível, com uma conexão mínima de 2Mpbs e uma franquia de 40 Gb, por exemplo."
Um estudo de 2012 do Banco Mundial, cujo coautor é o economista brasileiro Otaviano Canuto, aponta que o grande investimento em infraestrutura avançada, como banda larga de alta velocidade, é um dos requisitos cumpridos pelos poucos países que escaparam, nas últimas décadas, da chamada 'armadilha do nível de média renda' – a dificuldade de uma nação em avançar desse nível para o grupo de alta renda, o dos países desenvolvidos (essa dificuldade é bem maior do que enfrentada no avanço anterior, já superado pelo Brasil, do nível de baixa renda para o grupo de países de desenvolvimento intermediário). A internet rápida tem efeito na disseminação de informações, na pesquisa, na educação e na produtividade. No fim de dezembro, enquanto o Congresso lutava apressado contra o relógio, o governo do Canadá tornou o acesso rápido à internet um direito básico dos cidadãos. JeanPierre Blais, presidente da Comissão Canadense de Rádio-Televisão e Telecomunicações (CRTC, na sigla em inglês), afirmou que o futuro da riqueza da sociedade depende de metas como a conexão de todos os cidadãos ao século 21. O plano é que os canadenses tenham ao menos uma opção de plano de banda larga fixa com franquia de dados ilimitada. Para que o Brasil persiga o mesmo caminho de inclusão digital, é preciso conceber para a internet uma política de longo prazo, com transparência, metas objetivas e definição de como elas serão cobradas.

Por Paula Soprana, na Época online/RJ