segunda-feira, 20 de abril de 2020

NOVOS TEMPOS - ANTES DO CAVALO DE PAU




Os dias que precederam o choque de realidade que fez a equipe de viés liberal desenhar o maior pacote de estímulo da história recente do país

Era a tarde de 11 de março em Brasília, e os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deixaram seus gabinetes e se dirigiram à Câmara dos Deputados para conversar com lideranças partidárias sobre o novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) acabara de declarar a Covid-19 como uma pandemia, e a doença começava a se espalhar pelo país, com pacientes já internados em alguns estados. Medidas de isolamento eram discutidas, mas nada ainda havia sido definido.

Numa reunião a portas fechadas que durou mais de três horas, enquanto Mandetta traçava aos políticos um cenário que previa a contaminação crescente a partir da semana seguinte, Guedes cobrou do mesmo grupo a aprovação das reformas estruturais, entre as quais medidas que o governo nem sequer enviara, como a reforma administrativa. O ministro da Economia insistia que a melhor saída para enfrentar a crise causada pela disseminação do novo coronavírus era acelerar as reformas. A apresentação de Guedes irritou alguns parlamentares, que cobravam medidas emergenciais para conter os impactos esperados. Um deputado que participou do encontro comparou a fala do ministro a uma palestra sobre a história econômica, sem qualquer plano de ação.

O tom usado por Guedes naquele dia foi repetido por toda a equipe econômica em uníssono. Segundo eles, bastaria a aprovação de reformas estruturais e mais R$ 4 bilhões ou R$ 5 bilhões “para aniquilar” o novo coronavírus. Nos bastidores, assessores do ministro afirmaram que Guedes começou a acompanhar a crise do novo coronavírus acreditando se tratar apenas de um problema sanitário chinês. Ainda em dezembro, segundo esses relatos, a ordem do ministro era que os técnicos monitorassem os efeitos do surto sobre a corrente de comércio internacional (importações e exportações dos países). Até então, era esse o principal canal de contágio temido pela equipe econômica.

A primeira impressão, àquela altura, foi que o Brasil não sofreria impactos da epidemia do vírus que ainda não tinha se espalhado pelo mundo. Primeiro, porque a economia brasileira é relativamente fechada e pouco integrada às cadeias globais. Portanto, aquela que sempre foi uma crítica de Guedes aos governos que aplicavam medidas protecionistas poderia se tornar o antídoto para a nova crise, tal como ocorreu em 2008. Os técnicos da equipe econômica constataram ainda que, doentes ou não, os chineses continuariam consumindo produtos brasileiros, principalmente proteínas.

Uma dimensão mais realista da crise começou a ser percebida por Guedes a partir de fevereiro, quando os técnicos do Ministério da Saúde emitiram alertas de que a disseminação do novo vírus tinha características de pandemia. O chefe da Economia passou então a ser cobrado por outros ministros para que um plano fosse desenhado a fim de conter os impactos do que estava por vir. Tudo que foi feito a partir de então ocorreu a reboque das críticas vindas de todos os lados. Colegas da Esplanada dos Ministérios, como Tarcísio de Freitas (Infraestrutura), fizeram cobranças de medidas de urgência para impedir uma hecatombe em segmentos da economia potencialmente mais vulneráveis a uma restrição de movimentação, como o setor aéreo. Parlamentares começaram eles próprios a desenhar ações emergenciais, enquanto empresas pressionavam não só o Executivo, mas também o Congresso. Na mesma semana de 11 de março em que Guedes cobrou a aprovação de reformas, seu ministério criou um gabinete de crise e começou a discutir medidas efetivas para conter os avanços do novo coronavírus na economia. O cavalo de pau no discurso público do ministro, porém, demorou.

A gravidade da situação havia sido, de certa forma, antecipada pelo temor dos mercados. No dia 9, houve o primeiro dos seis circuit breakers (parada de negociações) da Bolsa de Valores brasileira em março, causado pelo novo coronavírus e pelo choque nos preços do petróleo — o preço da commodity está em níveis historicamente baixos por causa da falta de demanda global pelo produto e de uma disputa entre Arábia Saudita e Rússia sobre a quantidade de produção. Nesse dia, Guedes disse a jornalistas que transformaria a crise em geração de empregos. Ao chegar do Rio de Janeiro, na portaria do prédio do ministério, afirmou que o Brasil tinha dinâmica própria de crescimento e que sua equipe já passara por situação parecida “várias vezes”. O ministro chegou a encaminhar, em 10 de março, um ofício aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), listando 19 projetos prioritários para aprovação do Congresso. O pleito incluía textos que nem sequer haviam sido enviados pelo Executivo, como as reformas administrativa e tributária. O documento foi recebido com críticas. Mas Guedes não titubeou. “Se promovermos as reformas, abriremos espaço para um ataque direto ao coronavírus. Com R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões ou R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus. Porque já existe bastante verba na Saúde, o que precisaríamos seria de um extra. Mas sem espaço fiscal não dá”, afirmou Guedes em uma entrevista à revista Veja.

Mesmo sabendo que precisaria agir, Guedes preferiu ser cauteloso. A estratégia era priorizar as ações voltadas especificamente ao combate à doença e começar a falar de economia depois. Ocorre que os fatos atropelaram seus planos. Enquanto a pandemia assustava o mundo com seu desfecho mórbido na Itália e o avanço nos Estados Unidos, economistas brasileiros já se movimentavam para desenhar um pacote que permitisse auxílio emergencial aos trabalhadores informais que ficariam sem emprego diante das medidas de isolamento. Formou-se rapidamente, entre expoentes de diferentes escolas econômicas, um consenso sobre a necessidade de o Estado intervir de forma pesada para atenuar o choque da paralisação do comércio e da indústria. Monica de Bolle, professora na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, e colunista ÉPOCA, foi uma das primeiras a fazer soar o alarme. “As injeções de liquidez dos bancos centrais e os pacotes de estímulo fiscal são os impulsos de que a economia precisa para voltar a respirar sem auxílio. Vale para os governos o princípio que vale para os médicos trabalhando na linha de frente da epidemia: tentar o que for possível para controlar a crise”, escreveu ela em sua coluna em ÉPOCA on-line de 11 de março. Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, propôs algo na mesma linha, em entrevista à jornalista Míriam Leitão, em 16 de março. “Aumentar o gasto está correto. Todas as nossas leis, inclusive a Lei de Responsabilidade Fiscal, têm mecanismos que permitem abrir uma exceção para casos de calamidade. E essa é sem dúvida uma calamidade”, disse.

A grande virada de chave ocorreu em 17 de março, dia em que o presidente Donald Trump, antes cético sobre os efeitos da pandemia, anunciou um pacote de US$ 1 trilhão para ajudar a economia americana a navegar pela tormenta. Naquela manhã, o Ministério da Economia convocara técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da própria pasta para uma reunião de emergência, a fim de que fosse desenhado um modelo de ajuda à população mais vulnerável com base no cadastro nacional de baixa renda. Até então, nada estava sendo proposto com esse objetivo. No dia anterior, o ministério havia anunciado uma injeção de R$ 147,3 bilhões na economia, mas que não se tratava de dinheiro novo, e sim da antecipação de pagamentos e do adiamento de impostos. O pacote foi mal recebido pelo Congresso, considerado tímido — o que serviu de alerta para a necessidade de algo mais robusto. Um assessor de Guedes comparou aqueles dias com a queda de um meteoro no Ministério da Economia. A ficha finalmente havia caído. Era preciso agir rápido e gastar mais, num momento em que a ordem era “cortar, cortar e cortar”. Ajudou a aflorar o senso de urgência da equipe econômica as cobranças de Jair Bolsonaro sobre uma ação mais eficaz para atenuar o baque — já que o medo da recessão se mostrou premente e a preocupação número um do presidente desde o início da pandemia.

O ministro evitou ao máximo mexer no caixa do Tesouro Nacional. Ele e seus técnicos começaram a anunciar ações voltadas para a ampliação do crédito e a antecipação de receitas, como aposentadorias e pensões, e adiamento de impostos. Nos bastidores, Guedes dizia que o objetivo era sinalizar ao mercado que não tinha relaxado a disciplina fiscal. Guedes também se viu diante de problemas legais para ampliar os gastos, já que o arcabouço jurídico e legislativo do país sempre foi voltado para conter a expansão de despesas. O Brasil tem três regras fiscais para isso. O governo então pediu ao Congresso para declarar calamidade pública. Conseguiu no Supremo Tribunal Federal (STF) a flexibilização das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal — que rege as normas para os gastos públicos. E negocia a aprovação de um Orçamento de guerra com Câmara e Senado.

O ministro tem lamentado o fato de não ter conseguido aprovar, antes da crise, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do pacto federativo, que reformula as regras fiscais do país. Para ele, se o texto tivesse passado ainda no ano de 2019, seria possível acionar o Conselho Fiscal da República — uma das ideias centrais do projeto — para lidar mais facilmente com a ideia de ampliar gastos de forma emergencial.

A mudança no discurso foi seguida do anúncio quase diário de medidas com forte impacto fiscal, como o auxílio aos informais, transferências de recursos para Saúde, estados e municípios, e programas para ajudar na folha de pagamentos das empresas. A equipe econômica montada para cortar gastos, fazer reformas e reduzir o tamanho do Estado vai entregar neste ano um rombo nas contas públicas perto de R$ 600 bilhões — o equivalente a 8% do PIB, o maior da história. Antes, a previsão era de um déficit de 1,58% do PIB.

Apenas como parâmetro de comparação, medidas anticrise adotadas em 2008 e 2009, como redução de tributos e aumento de despesas governamentais, resultaram na redução do superávit primário de 2,45% do PIB para 1,29% do PIB, segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU). As medidas do Banco Central (BC) representam um décimo do que foi feito pelo banco em 2008, segundo seu atual presidente, Roberto Campos Neto. Hoje, as medidas chegam perto de R$ 1 trilhão. A maior parte desse montante ainda é composta de injeção de liquidez no sistema financeiro por parte do BC, como forma de garantir crédito na praça. Mas há também uma série de medidas fiscais, com impacto direto nas contas públicas, além das medidas emergenciais para socorrer empresas e ajudar os trabalhadores que tiverem perda de renda.

Com o agravamento da crise, os técnicos, secretários do ministério e principais assessores de Guedes têm trabalhado de casa. O ministro se mudou do Rio de Janeiro para Brasília e está morando na Granja do Torto, casa de campo da Presidência da República, onde viveu o ex-presidente João Figueiredo e onde Lula costumava fazer churrasco e jogar futebol com seus ministros. O hotel onde Guedes costumava ficar na capital não está recebendo hóspedes.

Guedes não joga futebol e nem faz churrasco, mas gosta de correr na propriedade. Só sai da Granja do Torto quando é convocado para ir ao Palácio do Planalto para reuniões com o presidente Jair Bolsonaro ou com o ministro da Casa Civil, Braga Netto. Da residência oficial, tem feito reuniões virtuais diárias com seus secretários, conversado com empresários, parlamentares, entidades de classe, inclusive aos domingos e feriados. Trabalhar de casa e ter de estar disponível diariamente para pensar em novas saídas para novos problemas despertou o lado mais workaholic do ministro e de seus auxiliares. Um assessor relatou ter trabalhado 25 horas seguidas, emendando uma reunião na outra. Um técnico afirmou que as discussões são feitas para o curtíssimo prazo e que o horizonte mais distante olhado agora é de duas semanas.

Nas longas reuniões que conduz, Guedes reclama da qualidade da internet na Granja do Torto, pois o local fica fora do Plano Piloto de Brasília. Por vezes seus interlocutores não conseguem ouvi-lo porque a conexão falha. O ministro atribui o sinal ruim à baixa quantidade de investimentos privados no país, que ele tenta aumentar desde que assumiu.

O Ministério da Economia vai desembolsar, segundo se calcula até o momento, R$ 240 bilhões, sem contar a transferência de recursos para estados e municípios, ainda em negociação com o Congresso. O aumento dos gastos, necessário para conter os impactos do novo coronavírus, acompanhado da forte perda de arrecadação, vai fazer disparar o déficit primário em 2020 e em 2021. Além disso, o governo prepara para os próximos dias medidas voltadas especificamente para grandes empresas. Será anunciada uma linha de financiamento para a folha de pagamentos das companhias, com detalhes que ainda estão sendo fechados pela equipe econômica. Hoje, já há uma linha de empréstimo com spread zero para pequenas e médias empresas, com faturamento de até R$ 10 milhões por ano — ou seja, o juro igual ao da Selic, de 3,75% ao ano. Isso agora será estendido para as grandes companhias do país.

No horizonte, Guedes e sua equipe terão de desenhar a reconstrução do país, que deverá ter em 2020 uma das maiores quedas na economia da história. A questão agora é o tamanho do tombo. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, prevê que a economia brasileira encolherá 5,3% em 2020, número também apontado pelos cenários mais pessimistas do mercado. Sair dessa situação sem “deixar ninguém para trás”, como o ministro gosta de dizer, é o desafio que Guedes tem pela frente.

Por Manoel Ventura e Marcello Corrêa, na Revista Época







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