quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Pedágio da Felicidade - Vale a pena tributar o "pecado"?



O governo trabalha com a ideia de elevar impostos para bebidas, cigarros e açúcar. Experiências tributárias semelhantes em outros países mostram que o assunto é mais complexo do que se imagina - mas pode dar certo

Obesidade, diabetes, câncer de pulmão, doenças hepáticas, aquecimento global, congestionamentos, qualidade do ar. São temas que, ao primeiro olhar, passam longe do sistema tributário de um país, mas que têm dominado as discussões no mundo sobre como usar os impostos para reduzir o consumo de produtos que causem danos à saúde e ao meio ambiente. O debate foi incitado no Brasil pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao mencionar o 'imposto do pecado' que poderia incidir sobre bebidas alcoólicas, cigarro e produtos com alto teor de açúcar, como refrigerantes, sorvetes e chocolates, em uma reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça. Guedes é defensor da ideia desde antes de migrar da iniciativa privada para o governo.

A fala do ministro gerou protestos em razão do temor sobre um novo aumento da carga tributária brasileira, que já está acima de 30% do Produto Interno Bruto (PIB), mas vai ao encontro da tendência mundial de taxar produtos nocivos à saúde. A despeito da declaração de seu subordinado, o presidente Jair Bolsonaro protestou: 'Paulo Guedes, desculpa, você é meu ministro, te sigo 99%, mas aumento de imposto para cerveja, não', disse, rebatendo o economista. A cerveja tem baixa taxação no Brasil - 5% de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em média -, mas, se o presidente resolver tomar cachaça, vai pagar cerca 30% de imposto. No Brasil, as alíquotas das bebidas alcoólicas giram entre 5% e 30%, com taxação mais alta para os destilados, com teor alcoólico maior. O Brasil já taxa fortemente cigarros. Em média, 62% do preço do cigarro brasileiro são impostos, acima da média mundial de 50% e da média da América Latina, que é de 45%, de acordo com estudo do professor Nelson Leitão Paes, do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rodrigo Orair, vem acompanhando essa discussão entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo composto de economias desenvolvidas no qual o Brasil deseja ingressar. 'Tradicionalmente, esses impostos seletivos, como são chamados, são muito focados em cigarros e bebidas alcoólicas. Mais recentemente tem havido interesse em bebidas não alcoólicas com alto teor de açúcar ou sódio. Esse imposto não tem função precípua arrecadatória. O objetivo é desestimular o consumo, uma finalidade extrafiscal. O que se quer é coibir o consumo e usar o recurso para fazer campanha de prevenção contra o uso do bem', explicou. Segundo relatório da organização, em 2016, 16 países aumentaram as alíquotas sobre tabaco e bebidas alcoólicas, e 11 países em 2017 tomaram o mesmo caminho. Somente o Reino Unido congelou impostos sobre cerveja, cidra e uísque em 2016. O México adotou o imposto entre 2014 e 2016.

No Brasil, taxação é defendida pela classe médica porque, além de doenças cardíacas e câncer, estão associados ao álcool também os traumas causados por acidentes de trânsito e episódios de agressão relacionados à embriaguez. Um estudo publicado em 2019 pela epidemiologista Katherine Keyes, da Universidade Columbia, em Nova York, cruzou dados de taxação de bebida com levantamentos sobre violência doméstica. A pesquisadora conseguiu detectar uma relação, que considerou 'modesta'. 'Nossas estimativas de redução no consumo de álcool indicam que um aumento de 10% no preço é associado a uma redução de 20% em episódios de consumo excessivo e diminui a violência ligada ao álcool em 30%', escreveu a pesquisadora num artigo para o periódico acadêmico Addiction.

Para produtos com alto teor de açúcar, mais países aplicam alíquota maior. De 2016 a 2018, Bélgica, Reino Unido, Portugal, Espanha e Estônia resolveram taxar mais conforme aumenta a quantidade de açúcar, excetuando sucos prontos e naturais. Mas a dificuldade maior está exatamente em taxar produtos em que não é possível determinar a quantidade exata da substância, como em sorvetes e chocolates. 'Algumas iniciativas são mais exitosas, quando o teor de açúcar é muito preciso. Outras são mais complexas, como em sorvete, café e chocolate. Alguns países voltaram atrás', disse Orair, do Ipea. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) defende o uso do imposto, inclusive para alimentos ultraprocessados. Igor Britto, diretor de Relações Institucionais do Idec, relembrou que a maioria dos refrigerantes tem isenção fiscal por ser produzida na Zona Franca de Manaus. 'Quando o ministro Paulo Guedes fala sobre isso, não está inovando, não está inventando. Há diretrizes muito claras da OCDE para os países membros. A má alimentação, com alto teor de sódio e açúcar, gera impacto nos índices de desenvolvimento econômico, na produtividade do mercado de trabalho e nos gastos com saúde pública. Não há o menor sentido em incentivar esses produtos', disse. Produtoras de refrigerantes da Zona Franca não pagam IPI, mas têm direito a crédito tributário de alíquotas cobrados no restante do país. Até 2018, essa alíquota era de 20%. Foi reduzida ao longo do governo Temer e oscilou de forma errática com Bolsonaro, variando entre 10% e 4%. Se o desejo do ministro Paulo Guedes prevalecer na reforma tributária, os descontos tributários recebidos pelos fabricantes deverão cair ainda mais.

Na comunidade médica também há um alinhamento em torno da ideia de sobretaxar bebidas açucaradas. Especialistas enxergam na proposta aventada por Guedes uma possibilidade de avançar em políticas de prevenção mais eficazes, já que tocam no poder de compra da população. No caso específico do açúcar, há um pleito antigo da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) para que se criem propostas que reduzam o porcentual do ingrediente na produção de alimentos. A entidade considera o alto consumo da substância um problema de saúde pública, ainda que não existam estudos suficientes para comprovar tal afirmação. Como a obesidade e o diabetes, que podem ter origem no consumo de açúcar, são problemas que se manifestam no longo prazo, o impacto das políticas para frear bebidas doces, como refrigerantes, é menos perceptível que o daquelas para combater o tabagismo e o alcoolismo. 'A obesidade e o diabetes são duas epidemias mundiais, e por mais que a gente fale em tratamento para elas, nós só vamos ver um impacto significativo nessas epidemias com uma intervenção ampla, num número significativo de pessoas', disse o endocrinologista Rodrigo Moreira, presidente da SBEM.

Para o médico, o imposto é um caminho para solucionar o problema, mas a entidade também busca mobilizar a sociedade civil pela obrigatoriedade de rótulos de alerta para produtos com muito açúcar, sal ou gordura. 'A taxação da adição de açúcar como única medida parece ser insuficiente para afetar a epidemia de obesidade, mas ela precisa ser incluída numa estratégia de múltiplos componentes estruturais', escreveu um grupo de pesquisadores da Universidade de Navarra, na Espanha, que produziu recentemente uma análise investigando o imposto do açúcar em vários países. Liderados por Miguel Martínez-González, os cientistas afirmaram que, no caso dos impostos sobre refrigerantes, por exemplo, o benefício da redução de consumo pode se perder em outras externalidades. 'Um imposto de consumo sobre refrigerantes pode resultar em substituições por sucos de fruta ou chás com conteúdo similar de açúcar, por exemplo. Por isso é preferível que uma taxa de consumo seja implementada sobre todas as bebidas adocicadas, não apenas os refrigerantes', escreveram os pesquisadores espanhóis.

Para funcionar do ponto de vista de saúde, afirmaram os cientistas, o aumento da taxação precisa ser elevado o suficiente para impedir a indústria de simplesmente absorver os custos do produto em questão e continuar seus negócios sem queda nas vendas. A França, por exemplo, conseguiu derrubar o consumo de bebidas açucaradas em 3,3% impondo uma taxa que aumentou os preços em 5% e acarretou uma receita de ? 280 milhões ao ano para o país. Boa parte da comunidade médica e dos representantes da sociedade civil defendem que a arrecadação de 'impostos do pecado' seja aplicada diretamente em políticas de saúde pública. 'A receita advinda do aumento de imposto sobre produtos de tabaco deveria sustentar os programas de controle do tabagismo', alegou um relatório da ONG Truth Initiative, que defende a maior taxação do cigarro.

A experiência mais longa e abrangente com a taxação maior de produtos que causam mal à saúde é com o cigarro. Segundo estudo do professor Leitão Paes, da UFPE, o custo econômico do vício no cigarro é de 0,5% do PIB anualmente. As medidas para conter o consumo do produto iniciaram nos anos 1980, mas, a partir de 2008, as alíquotas dos impostos começaram a subir com mais força. Eram 57,15% do preço em 2008, subindo para 59,35% em 2010 e para 63,15% em 2012. E o consumo caiu. Em 1989, quase 32% da população de 15 anos ou mais era fumante, porcentual que se reduziu para 22,4% em 2003 e para 17,2% em 2008. São porcentuais inferiores ao da média mundial, 21,7%, e da América Latina, 19,5%. 'De acordo com os números mais recentes, a carga tributária total dos cigarros está agora acima de 50% em quase todos os países da OCDE e atingiu 80% ou mais em dez países', segundo relatório da organização de 2017.

Mas há visões mais céticas sobre a eficácia desse imposto. O economista Gesner Oliveira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), que foi diretor do Cade, vê pouco resultado quando as alíquotas aumentam muito. 'Colocar alíquota muita alta para determinados bens, por melhor que seja a intenção, aumenta o contrabando. Todos concordamos que seria interessante estimular o consumo saudável e desestimular o que supostamente não é melhor para a saúde, mas alíquotas muita elevadas aumentam a atratividade do mercado ilegal, a sonegação, e diminuem a arrecadação, com as pessoas continuando a consumir', afirmou.

A questão do contrabando de cigarros é mais presente no Brasil. Nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos, a taxação maior não induziu um aumento da ilegalidade. Pelo contrário: houve impacto direto na redução de fumantes. Uma mudança tributária promovida em 2009 pelo governo Obama fez o imposto por pacote subir de US$ 0,39 para US$ 1,01. O sanitarista Jidong Huang e o economista Frank Chaloupka, da Universidade de Illinois, fizeram um estudo encomendado pelo Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos EUA e constataram que a maior redução de consumo se deu entre os jovens. 'A porcentagem de estudantes que relataram ter fumado até um mês antes de serem entrevistados caiu entre 9,7% e 13,3%, logo após a elevação da taxa', afirmou. A conclusão: um aumento de 10% no preço do cigarro reduziu a prevalência do tabagismo entre jovens entre 4,4% e 6%. Na conta de Chaloupka e Huang, a medida evitou o surgimento de cerca de 250 mil fumantes no país.

No Brasil, o principal argumento que sustenta a tese de que o imposto seletivo estimula o mercado paralelo de cigarros é a extensão das fronteiras, que são pouco fiscalizadas. O cigarro também é considerado uma mercadoria fácil de ser transportada ilegalmente em meio a cargas legais. 'O contrabando e a produção informal são responsáveis por quase 30% do mercado brasileiro (nos EUA, o porcentual é de 11%, enquanto na União Europeia está abaixo de 9%). A tributação elevada, os baixos custos de produção no Paraguai, a existência de canais de distribuição e a fragilidade nas fronteiras brasileiras ajudam a compreender um quadro difícil', afirmou Leitão Paes em seu estudo. No âmbito dos projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso, a ideia é usar o imposto seletivo para alguns poucos produtos que 'causem externalidades negativas'. Segundo o economista Aloisio Araújo, da FGV, que vem acompanhando as discussões no Parlamento, como o objetivo é unificar ao máximo as alíquotas, produtos que já pagam mais imposto poderão ter redução. O papel do imposto seletivo seria, portanto, impedir essa queda na tributação.

Por Cássia Almeida e Rafael Garcia, na Revista Época



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