O governo
trabalha com a ideia de elevar impostos para bebidas, cigarros e açúcar.
Experiências tributárias semelhantes em outros países mostram que o assunto é
mais complexo do que se imagina - mas pode dar certo
Obesidade,
diabetes, câncer de pulmão, doenças hepáticas, aquecimento global,
congestionamentos, qualidade do ar. São temas que, ao primeiro olhar, passam
longe do sistema tributário de um país, mas que têm dominado as discussões no
mundo sobre como usar os impostos para reduzir o consumo de produtos que causem
danos à saúde e ao meio ambiente. O debate foi incitado no Brasil pelo ministro
da Economia, Paulo Guedes, ao mencionar o 'imposto do pecado' que poderia
incidir sobre bebidas alcoólicas, cigarro e produtos com alto teor de açúcar,
como refrigerantes, sorvetes e chocolates, em uma reunião do Fórum Econômico
Mundial, em Davos, Suíça. Guedes é defensor da ideia desde antes de migrar da
iniciativa privada para o governo.
A
fala do ministro gerou protestos em razão do temor sobre um novo aumento da
carga tributária brasileira, que já está acima de 30% do Produto Interno Bruto
(PIB), mas vai ao encontro da tendência mundial de taxar produtos nocivos à saúde.
A despeito da declaração de seu subordinado, o presidente Jair Bolsonaro
protestou: 'Paulo Guedes, desculpa, você é meu ministro, te sigo 99%, mas
aumento de imposto para cerveja, não', disse, rebatendo o economista. A cerveja
tem baixa taxação no Brasil - 5% de Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI) em média -, mas, se o presidente resolver tomar cachaça, vai pagar cerca
30% de imposto. No Brasil, as alíquotas das bebidas alcoólicas giram entre 5% e
30%, com taxação mais alta para os destilados, com teor alcoólico maior. O
Brasil já taxa fortemente cigarros. Em média, 62% do preço do cigarro
brasileiro são impostos, acima da média mundial de 50% e da média da América
Latina, que é de 45%, de acordo com estudo do professor Nelson Leitão Paes, do
programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O
economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rodrigo Orair,
vem acompanhando essa discussão entre os países da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo composto de economias
desenvolvidas no qual o Brasil deseja ingressar. 'Tradicionalmente, esses
impostos seletivos, como são chamados, são muito focados em cigarros e bebidas
alcoólicas. Mais recentemente tem havido interesse em bebidas não alcoólicas
com alto teor de açúcar ou sódio. Esse imposto não tem função precípua
arrecadatória. O objetivo é desestimular o consumo, uma finalidade extrafiscal.
O que se quer é coibir o consumo e usar o recurso para fazer campanha de
prevenção contra o uso do bem', explicou. Segundo relatório da organização, em
2016, 16 países aumentaram as alíquotas sobre tabaco e bebidas alcoólicas, e 11
países em 2017 tomaram o mesmo caminho. Somente o Reino Unido congelou impostos
sobre cerveja, cidra e uísque em 2016. O México adotou o imposto entre 2014 e
2016.
No
Brasil, taxação é defendida pela classe médica porque, além de doenças
cardíacas e câncer, estão associados ao álcool também os traumas causados por
acidentes de trânsito e episódios de agressão relacionados à embriaguez. Um
estudo publicado em 2019 pela epidemiologista Katherine Keyes, da Universidade
Columbia, em Nova York, cruzou dados de taxação de bebida com levantamentos
sobre violência doméstica. A pesquisadora conseguiu detectar uma relação, que considerou
'modesta'. 'Nossas estimativas de redução no consumo de álcool indicam que um
aumento de 10% no preço é associado a uma redução de 20% em episódios de
consumo excessivo e diminui a violência ligada ao álcool em 30%', escreveu a
pesquisadora num artigo para o periódico acadêmico Addiction.
Para
produtos com alto teor de açúcar, mais países aplicam alíquota maior. De 2016 a
2018, Bélgica, Reino Unido, Portugal, Espanha e Estônia resolveram taxar mais
conforme aumenta a quantidade de açúcar, excetuando sucos prontos e naturais.
Mas a dificuldade maior está exatamente em taxar produtos em que não é possível
determinar a quantidade exata da substância, como em sorvetes e chocolates.
'Algumas iniciativas são mais exitosas, quando o teor de açúcar é muito
preciso. Outras são mais complexas, como em sorvete, café e chocolate. Alguns
países voltaram atrás', disse Orair, do Ipea. O Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor (Idec) defende o uso do imposto, inclusive para alimentos
ultraprocessados. Igor Britto, diretor de Relações Institucionais do Idec,
relembrou que a maioria dos refrigerantes tem isenção fiscal por ser produzida
na Zona Franca de Manaus. 'Quando o ministro Paulo Guedes fala sobre isso, não
está inovando, não está inventando. Há diretrizes muito claras da OCDE para os
países membros. A má alimentação, com alto teor de sódio e açúcar, gera impacto
nos índices de desenvolvimento econômico, na produtividade do mercado de
trabalho e nos gastos com saúde pública. Não há o menor sentido em incentivar
esses produtos', disse. Produtoras de refrigerantes da Zona Franca não pagam
IPI, mas têm direito a crédito tributário de alíquotas cobrados no restante do
país. Até 2018, essa alíquota era de 20%. Foi reduzida ao longo do governo
Temer e oscilou de forma errática com Bolsonaro, variando entre 10% e 4%. Se o
desejo do ministro Paulo Guedes prevalecer na reforma tributária, os descontos
tributários recebidos pelos fabricantes deverão cair ainda mais.
Na
comunidade médica também há um alinhamento em torno da ideia de sobretaxar
bebidas açucaradas. Especialistas enxergam na proposta aventada por Guedes uma
possibilidade de avançar em políticas de prevenção mais eficazes, já que tocam
no poder de compra da população. No caso específico do açúcar, há um pleito
antigo da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) para que
se criem propostas que reduzam o porcentual do ingrediente na produção de
alimentos. A entidade considera o alto consumo da substância um problema de
saúde pública, ainda que não existam estudos suficientes para comprovar tal
afirmação. Como a obesidade e o diabetes, que podem ter origem no consumo de
açúcar, são problemas que se manifestam no longo prazo, o impacto das políticas
para frear bebidas doces, como refrigerantes, é menos perceptível que o
daquelas para combater o tabagismo e o alcoolismo. 'A obesidade e o diabetes
são duas epidemias mundiais, e por mais que a gente fale em tratamento para
elas, nós só vamos ver um impacto significativo nessas epidemias com uma intervenção
ampla, num número significativo de pessoas', disse o endocrinologista Rodrigo
Moreira, presidente da SBEM.
Para
o médico, o imposto é um caminho para solucionar o problema, mas a entidade
também busca mobilizar a sociedade civil pela obrigatoriedade de rótulos de
alerta para produtos com muito açúcar, sal ou gordura. 'A taxação da adição de
açúcar como única medida parece ser insuficiente para afetar a epidemia de
obesidade, mas ela precisa ser incluída numa estratégia de múltiplos
componentes estruturais', escreveu um grupo de pesquisadores da Universidade de
Navarra, na Espanha, que produziu recentemente uma análise investigando o
imposto do açúcar em vários países. Liderados por Miguel Martínez-González, os
cientistas afirmaram que, no caso dos impostos sobre refrigerantes, por
exemplo, o benefício da redução de consumo pode se perder em outras
externalidades. 'Um imposto de consumo sobre refrigerantes pode resultar em
substituições por sucos de fruta ou chás com conteúdo similar de açúcar, por
exemplo. Por isso é preferível que uma taxa de consumo seja implementada sobre
todas as bebidas adocicadas, não apenas os refrigerantes', escreveram os
pesquisadores espanhóis.
Para
funcionar do ponto de vista de saúde, afirmaram os cientistas, o aumento da
taxação precisa ser elevado o suficiente para impedir a indústria de
simplesmente absorver os custos do produto em questão e continuar seus negócios
sem queda nas vendas. A França, por exemplo, conseguiu derrubar o consumo de
bebidas açucaradas em 3,3% impondo uma taxa que aumentou os preços em 5% e
acarretou uma receita de ? 280 milhões ao ano para o país. Boa parte da
comunidade médica e dos representantes da sociedade civil defendem que a
arrecadação de 'impostos do pecado' seja aplicada diretamente em políticas de
saúde pública. 'A receita advinda do aumento de imposto sobre produtos de
tabaco deveria sustentar os programas de controle do tabagismo', alegou um
relatório da ONG Truth Initiative, que defende a maior taxação do cigarro.
A
experiência mais longa e abrangente com a taxação maior de produtos que causam
mal à saúde é com o cigarro. Segundo estudo do professor Leitão Paes, da UFPE,
o custo econômico do vício no cigarro é de 0,5% do PIB anualmente. As medidas
para conter o consumo do produto iniciaram nos anos 1980, mas, a partir de
2008, as alíquotas dos impostos começaram a subir com mais força. Eram 57,15%
do preço em 2008, subindo para 59,35% em 2010 e para 63,15% em 2012. E o
consumo caiu. Em 1989, quase 32% da população de 15 anos ou mais era fumante,
porcentual que se reduziu para 22,4% em 2003 e para 17,2% em 2008. São
porcentuais inferiores ao da média mundial, 21,7%, e da América Latina, 19,5%.
'De acordo com os números mais recentes, a carga tributária total dos cigarros
está agora acima de 50% em quase todos os países da OCDE e atingiu 80% ou mais
em dez países', segundo relatório da organização de 2017.
Mas
há visões mais céticas sobre a eficácia desse imposto. O economista Gesner
Oliveira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), que foi diretor do Cade,
vê pouco resultado quando as alíquotas aumentam muito. 'Colocar alíquota muita
alta para determinados bens, por melhor que seja a intenção, aumenta o
contrabando. Todos concordamos que seria interessante estimular o consumo saudável
e desestimular o que supostamente não é melhor para a saúde, mas alíquotas
muita elevadas aumentam a atratividade do mercado ilegal, a sonegação, e
diminuem a arrecadação, com as pessoas continuando a consumir', afirmou.
A
questão do contrabando de cigarros é mais presente no Brasil. Nos Estados
Unidos e em outros países desenvolvidos, a taxação maior não induziu um aumento
da ilegalidade. Pelo contrário: houve impacto direto na redução de fumantes.
Uma mudança tributária promovida em 2009 pelo governo Obama fez o imposto por
pacote subir de US$ 0,39 para US$ 1,01. O sanitarista Jidong Huang e o
economista Frank Chaloupka, da Universidade de Illinois, fizeram um estudo
encomendado pelo Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos EUA e
constataram que a maior redução de consumo se deu entre os jovens. 'A
porcentagem de estudantes que relataram ter fumado até um mês antes de serem
entrevistados caiu entre 9,7% e 13,3%, logo após a elevação da taxa', afirmou.
A conclusão: um aumento de 10% no preço do cigarro reduziu a prevalência do
tabagismo entre jovens entre 4,4% e 6%. Na conta de Chaloupka e Huang, a medida
evitou o surgimento de cerca de 250 mil fumantes no país.
No
Brasil, o principal argumento que sustenta a tese de que o imposto seletivo
estimula o mercado paralelo de cigarros é a extensão das fronteiras, que são
pouco fiscalizadas. O cigarro também é considerado uma mercadoria fácil de ser
transportada ilegalmente em meio a cargas legais. 'O contrabando e a produção
informal são responsáveis por quase 30% do mercado brasileiro (nos EUA, o
porcentual é de 11%, enquanto na União Europeia está abaixo de 9%). A
tributação elevada, os baixos custos de produção no Paraguai, a existência de
canais de distribuição e a fragilidade nas fronteiras brasileiras ajudam a
compreender um quadro difícil', afirmou Leitão Paes em seu estudo. No âmbito
dos projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso, a ideia é usar o
imposto seletivo para alguns poucos produtos que 'causem externalidades
negativas'. Segundo o economista Aloisio Araújo, da FGV, que vem acompanhando
as discussões no Parlamento, como o objetivo é unificar ao máximo as alíquotas,
produtos que já pagam mais imposto poderão ter redução. O papel do imposto
seletivo seria, portanto, impedir essa queda na tributação.
Por Cássia Almeida
e Rafael Garcia, na Revista Época
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