segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Como explicar a atual crise de representatividade?


O sistema de governo do Brasil pós-Constituição de 1988 foi arquitetado para combinar o presidencialismo com o pluripartidarismo, o que veio a ser intitulado por Sérgio Abranches de presidencialismo de coalizão (ABRANCHES, 1988). Em face dessa combinação, o alcance de maiorias estáveis no Parlamento seria extremamente difícil e custoso. Outrossim, a desvinculação entre eleições presidenciais e parlamentares possibilitaria a estruturação de um sistema representativo de origens distintas, necessitando, consequentemente, da formação de coalizões para alcançar a governabilidade, articuladas por meio da troca de cargos no governo e de emendas parlamentares por apoio político na aprovação de projetos legislativos de interesse nacional encabeçados pelo Executivo (ABRANCHES, 1988).  Para que o Presidente não sucumbisse à barganha dos parlamentares, foram dados a ele muitos poderes constitucionais, ao ponto de alguns defenderem a preponderância do Poder Executivo no quadro de separação de Poderes.

Sérgio Abranches (1988) acreditava que esse sistema estava fadado ao insucesso, por essa extrema dificuldade de formar maiorias estáveis. Em primeiro lugar, porque o comportamento irresponsável dos parlamentares geraria poucos incentivos para que eles cooperassem com o Presidente, assim como esse se isolaria do apoio do Parlamento, por crer no grande poder popular nele depositado. Em segundo lugar, a disciplina partidária não seria eficaz, já que a legislação eleitoral brasileira conteria fortes incentivos para o comportamento individualista dos parlamentares (maximização das suas chances de reeleição). Em terceiro lugar, uma coalizão partidária careceria da principal arma que garante seu funcionamento no parlamentarismo: a ameaça de dissolução. Enfim, haveria uma política de oposição cega, que relutaria muito em fazer qualquer coisa que poderia ajudar o governo a ser bem-sucedido.


Em contraposição a essas ideias, Fernando Limongi e Argelina Figueiredo (1998) defendem que o presidencialismo de coalizão não leva necessariamente à ingovernabilidade e à paralisia. Isso porque, no Brasil, esse sistema encontraria estabilidade e sucesso na governabilidade, por meio da interdependência entre a preponderância legislativa do Executivo,do padrão centralizado de trabalhos legislativos e a da disciplina partidária. Sua teoria foi corroborada por dados de 1988 a 1995, o que também se observou de forma clara no governo dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (ALSTON, MUELLER, 2010).

Contudo, no decorrer dos mandatos da presidente Dilma Rousseff, essa capacidade de estruturar as coalizões foi se reduzindo e as características autodestrutivas do presidencialismo de coalizão, narradas por Abranches, vêm se sobressaindo. O alto grau de heterogeneidade ideológica e o fracionamento político-partidário decorrentes da proliferação de partidos, a alta propensão de conflitos de interesse em razão das clivagens sociais, a tradição presidencialista e proporcional, o insuficiente quadro institucional para resolução de conflitos somado à inexistência de mecanismos institucionais de destituição de governos ilegítimos são alguns dos fatores do atual sistema político-partidário que se conjugam para desencadear a atual crise (VICTOR, 2015).

Além disso, o sistema proporcional para eleição dos deputados incentiva o aumento vertiginoso de partidos acompanhado pela formação de coligações sem similaridades ideológicas; o modelo de lista aberta gera maior tendência de personificação do voto, enfraquecendo os partidos e convolando-se em competição intrapartidária, além de “puxar” candidatos com perfil oposto ao desejado pelo eleitor (“efeito Tiririca”); a representação desproporcional entre os estados na Câmara dos Deputados e o grande número de cadeiras por estado despolitizam o eleitorado, aumentam os esforços de personificação e diminuem o controle partidário; o fim da verticalização produz incongruências ideológicas dentro da lógica do federalismo; enfim, campanhas altamente individualistas incentivam a diferenciação, que muitas vezes é alcançada por meio de troca de interesses particulares e clientelismo, expandindo a influência do poder econômico (VICTOR, 2015).

Alguns estudiosos sugerem que deveria ser implantado no País o sistema parlamentarista multipartidário, pelo fato de gerar instituições mais duradouras e eficazes, uma vez que parceiros menores são membros institucionais, negociando ministérios, o que permite que haja maiores incentivos para cooperar. Por outro lado, quando o Presidente perde sua base de apoio, pode ocorrer a queda do gabinete (chefe de governo) por voto de desconfiança do Parlamento, o que gera maior responsabilidade por parte do Chefe do Executivo. A dificuldade de destituir governos sem governabilidade no presidencialismo gera altos custos políticos, econômicos e sociais pelo seu prolongamento. A questão sobre a implantação do parlamentarismo no Brasil sempre retorna ao debate em momentos de visível crise do presidencialismo, mas não se pode calcular a instabilidade que aquele sistema pode gerar se seus institutos forem mal utilizados por um Parlamento imaturo institucionalmente.


Passa-se de um presidencialismo de coalização para o de cooptação (PESSÔA, 2015), em que as coalizões são formadas sem propósitos ideológicos, mas apenas para manter o poder. Os acordos firmados perdem ao longo do tempo seus objetivos de governabilidade, desdobrando-se em esquemas de corrupção como o “Mensalão” ou o “Petrolão”, que apenas garantem uma recompensa política em troca de apoio à base governista. O combate a mecanismos legais de cooptação de parlamentares, como as emendas individuais e a distribuição dos cargos no governo, apenas asseveram o uso de mecanismos ilegítimos, como a corrupção (MENDES, DIAS, 2014). A excessiva fragmentação político-partidária somente torna mais custosa essa barganha, sobretudo em governos em que não se desenvolvem atitudes de liderança suficientes para centralizar esforços em prol de objetivos nacionais.

A crise de representatividade é grave. A reforma política exigida para superar tal crise parece estar acima da capacidade e da vontade das lideranças políticas. Não parece haver ambiente para algum tipo de acordo social que viabilize tal reforma. A crise econômica piora a situação ao agravar os conflitos.

Os partidos políticos precisam retomar a sua proeminência na condução da política brasileira, porque hoje estão sendo conduzidos meramente por fatores externos, como a crise econômica e os escândalos de corrupção da “lava-jato”. Enquanto isso não ocorre e a reforma política é feita marginalmente para perpetuar interesses eleitorais dos seus autores, o sentimento de conexão dos cidadãos com seus representantes diminui cada vez mais, instalando um vácuo representativo que, caso não seja ocupado pelas instituições legítimas, passa a ser alvo do Poder Judiciário, daí o avanço da judicialização da política.


Por Débora Costa Ferreira - Bacharelado em Economia pela Universidade de Brasília (2014) e em Direito pelo UniCEUB (2014), Pós-Graduação em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (2015).