Por Eduardo Fleury
Em um momento que se discute reforma do sistema do PIS e COFINS
é oportuno se levantar questões que normalmente são contornadas pelos
políticos. Dentre as muitas distorções do sistema tributário brasileiro, o
excesso de isenções e benefícios fiscais deveria ser analisado de forma mais
profunda. É necessário determinar os efeitos econômicos destes incentivos
fiscais, assim como analisar a eficiência das políticas econômicas e sociais
alternativas aos benefícios. O presente estudo analisa especificamente os efeitos
da isenção do PIS e da COFINS sobre a cesta básica do ponto de vista
distributivo e sugere uma política alternativa buscando melhorar a eficiência
do sistema tributário/fiscal. Na primeira seção (I) será explorada a parte
conceitual, apresentando estudos já publicados sobre o assunto. A seção (II)
divulga os resultados do estudo onde se identifica o valor apropriado do
benefício fiscal por faixa de renda. Na última seção (III) iremos
analisar a viabilidade de alternativas de políticas compensatórias e seus
mecanismos, além de abordar a ineficiência gerada pela combinação de isenção da
cesta básica e a cobrança do PIS e COFINS nas refeições fora do domicílio.
I. Os
efeitos das isenções e benefícios fiscais sobre produtos essenciais
É
de conhecimento comum que os impostos indiretos, os IVAs (Imposto Sobre Valor
Adicionado), são regressivos do ponto de vista da renda. De forma mais simples,
o resultado da aplicação da alíquota do IVA sobre o preço de um produto irá
representar uma proporção bem maior da renda de famílias de classe baixa do que
a proporção da renda alcançada nas famílias de renda elevada. Assim, para cada
unidade de consumo, o IVA cobrado representa um percentual maior da renda das
classes mais baixas, sendo por isso considerado como instrumento concentrador
de renda (regressivo).
Tradicionalmente
os governos tem aplicado alíquotas reduzidas (ou isenções) sobre produtos
essenciais às famílias de baixa renda como mecanismo de redução da
regressividade do IVA. Uma vez que os produtos essenciais representam
parte substancial do orçamento do cidadão de baixa renda, a tributação reduzida
(ou isenção) representaria uma diminuição da relação entre o IVA incidente por
produto e a sua renda.
No
entanto, esta conclusão é apenas uma forma de olhar o resultado de benefícios
fiscais aplicados sobre produtos básicos. Devemos lembrar que os
demais cidadãos não incluídos na categoria de baixa renda também irão adquirir
os produtos essenciais com o mesmo benefício fiscal. Dependendo do tamanho da
classe média e alta de um país, assim como do número de produtos associados ao
referido benefício fiscal, o valor que deixou de ser recolhido pelos cidadãos
mais abastados pode representar parcela substancial, ou talvez a maior parte,
do total do benefício fiscal concedido.
É
necessário entender que os benefícios fiscais são considerados como “gastos” do
governo1. Neste sentido, se a maior parte do “gasto” do governo
(renúncia fiscal), no caso dos benefícios fiscais a produtos essenciais, é
destinada às classes média e alta, então o benefício fiscal concedido sobre
produtos essenciais poderá resultar até em concentração de renda.
Caso
se demonstre que parte substancial da renúncia fiscal é destinada às classes
média e alta, caberia argumentar que as políticas sociais compensatórias, tais
como Bolsa Família, seriam mais eficientes em combater a desigualdade de renda
do que a concessão de benefícios fiscais sobre produtos essenciais às classes
de renda inferiores. Neste caso, os produtos essenciais seriam tributados
à mesma alíquota que os demais produtos (alíquota genérica), e a arrecadação
correspondente seria utilizada para fazer políticas compensatórias.
A
conclusão acima é suportada por estudos internacionais que vêm sendo publicados
há algum tempo. O relatório da OCDE “OECD
Economic Survey – Brazil 2013”(página 30) especula e conclui também
que “isenções específicas
direcionadas a classes baixas, ……, aumenta a progressividade mas podem criar
uma perda (linkage) significativa, uma vez que uma grande parte do gasto fiscal
(renúncia fiscal) irá beneficiar famílias de alta renda.” O relatório também conclui que uma
forma mais eficiente de atingir as famílias de baixa renda seria através dos
programas de transferência de renda2.
Estudo
realizado pelo Escritório de Orçamento do Congresso Americano (“Effects of Adopting a VAT”3)
também concluiu que a aplicação da alíquota genérica para os produtos
essenciais combinado com a utilização das políticas compensatórias reduz a
carga tributária do IVA sobre o quintil mais pobre da população de 3,9% da
renda para -0,2%.
A
Consultoria Econômica “Copenhagen Economics” produziu estudo bastante completo
sobre os efeitos da aplicação de isenções e alíquotas reduzidas do VAT sobre
diversos produtos e serviços, inclusive alimentos. O resultado deste estudo,
publicado no site da Comissão Europeia4, indica que, mesmo sem
política compensatória, a utilização de uma mesma alíquota para todos os
produtos (sem reduções e isenções) resultaria em uma melhoria do bem-estar do
consumidor em 0,03%, equivalente a 1,3 bilhão de Euros5. A mesma
pesquisa também conclui que eventual redução de alíquotas sobre produtos
alimentícios pode gerar uma perda (vazamento) de receita que irá beneficiar
famílias de alta renda.
II. A
distribuição do gasto tributário (renúncia fiscal) entre as famílias em
decorrência da isenção de PIS e COFINS sobre os produtos da cesta básica.
A
Lei nº 10.925/2004 instituiu isenção (alíquota zero) do PIS/COFINS sobre a
importação e comercialização de diversos produtos alimentícios. A lista é
bastante extensa, incluindo produtos tais como: arroz, feijão, carne,
farinha de trigo, pão, leite e seus derivados, açúcar, café e massas.
Destaca-se que, pela sua abrangência, a lista inclui produtos que podem ser considerados
supérfluos, tais como massas e carnes importadas.
Segundo
o Relatório “Análise da
Arrecadação das Receitas Federais – Dezembro 2014”6, a
renúncia fiscal decorrente da isenção dos produtos da cesta básica alcançou o
valor de R$ 9,3 bilhões durante o ano de 2014.
Para
estimar o quanto desta renúncia fiscal foi “consumida” pelas classes mais
baixas de renda utilizamos a Pesquisa de Orçamento Familiar 2008/2009 realizada
pelo IBGE (POF-2008/2009). A fonte para o presente estudo foi a Tabela 1.1.14
da POF7 que permite
visualizar no detalhe as despesas (monetária e não monetária) com alimentação
no domicílio por classe de renda. A lista de alimentos da tabela é bastante
específica sendo possível identificar com um bom grau de precisão quais os
produtos estão sujeitos a isenção do PIS/COFINS.
A
tabela permite identificar, por exemplo, que famílias com renda até R$ 830,00
gastam R$ 2,78 com o consumo de massas, enquanto que as famílias com renda
superior a R$ 10.375,00 gastam em média R$ 4,85. Aplicando as alíquotas do
PIS/COFINS sobre a despesa com cada produto objeto da isenção, por faixa de
renda, foi possível obter quanto (proporção) da renúncia fiscal foi destinada
para cada classe de renda.
Existem
algumas questões metodológicas no cálculo que estão detalhadas em documento em
separado, mas que no nosso entender não devem causar prejuízo às conclusões
aqui apresentadas. Cabe ressaltar que as faixas de renda foram corrigidas
utilizando-se diversos critérios, mas o resultado aqui apresentado foi
corrigido pelo IPCA e pela variação do rendimento real médio (PME). Vejamos
então a distribuição da renúncia fiscal por faixas de renda:
As
famílias que ganham até R$ 2.082 se apropriam de apenas 24,71% da renúncia
fiscal. Pelo Critério Brasil de distribuição de renda, segundo o qual integram
a classe média aqueles que tem rendimento superior a R$ R$ 1.814, é possível
afirmar que mais de 75,29% da renúncia fiscal é destinada às classes média e
alta. Fazendo os cálculos para rendas superiores a R$ 4.164, ainda assim,
46,57% da renúncia fiscal é apropriada pelas classes média/alta.
A perda
de arrecadação para classes de renda que não necessitam do benefício fiscal é
substancial e pode ser um importante recurso para políticas compensatórias.
Segundo os dados do relatório sobre segurança alimentar no Brasil (2014)
publicado pela FAO8, 3,56% das pessoas no Brasil estão em situação
de extrema pobreza (dado 2012) e recebem do governo um benefício mensal de R$
77,00 (2014). Com o valor correspondente à renúncia fiscal desnecessária (R$
7,02 bi) o benefício acima poderia ser duplicado. Ainda segundo a FAO, um
programa de grande eficácia na erradicação da fome, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), custou 3,3 bilhões de reais para o governo federal
em 2012. Com metade do valor da renúncia fiscal poder-se-ia dobrar o programa.
Estamos
falando apenas da isenção do PIS/COFINS, mas os Estados também concedem
isenções de ICMS sobre produtos da cesta básica o que deve gerar uma perda
substancial de arrecadação tributária na forma aqui exposta.
III.
Mecanismo de restituição, distorção no mercado de trabalho e conclusões
Uma
das soluções para o problema acima seria a cobrança do PIS/COFINS sobre os
produtos da cesta básica (alíquota genérica – 9,25%) e o valor arrecadado seria
utilizado em política social compensatória. Como verificamos acima, o resultado
seria mais eficiente em reduzir a regressividade dos IVAs do que a concessão de
isenções.
Na
prática, porém, muitas pessoas de classe de renda baixa iriam pagar preços mais
altos por alimentos e poderiam não receber os benefícios sociais do governo. No
entanto, diferente de outros países, o Brasil tem desenvolvido recentemente uma
“tecnologia” que pode ajudar na solução deste problema. A chamada Nota Fiscal
com CPF pode permitir que o PIS/COFINS pago na compra dos produtos alimentícios
seja imediatamente creditado na conta da pessoa cadastrada, ou ainda, no
próprio cartão do bolsa família. Eventuais fraudes poderiam ser
combatidas pela restrição do valor do crédito por CPF. Com esta solução, a
regressividade da cobrança do PIS/COFINS sobre alimentos da cesta básica
poderia ser substancialmente reduzida.
Cabe
ainda destacar outro ponto de ineficiência da isenção do PIS/COFINS sobre
produtos da cesta básica. No atual sistema, bares e restaurantes compram os
produtos isentos, mas não tomam créditos. Como consequência, os alimentos
contidos nas refeições acabam sendo tributados pelo PIS/COFINS e a alimentação
fora de casa fica proporcionalmente mais cara do que a realizada no domicílio.
Para algumas faixas de trabalhadores, o custo das refeições fora do domicílio é
um importante componente na decisão de aceitar um trabalho. Indiretamente,
teríamos um aumento no preço (salário) de equilíbrio do mercado de trabalho e
redução da oferta de emprego.
A
eliminação das isenções e benefícios fiscais também pode resultar em redução da
alíquota genérica aplicada aos demais produtos e serviços, espalhando benefícios
para todos os consumidores, mas sem alcançar o efeito distributivo
desejado. Importante ainda ressaltar que o excesso de isenções e
benefícios fiscais também gera um custo burocrático para empresas e fisco,
visto que se gastam centenas de horas de advogados e funcionários públicos para
se determinar se a empresa está ou não habilitada a usufruir determinado
benefício fiscal, sem contar o custo da incerteza jurídica.
Procurar
resolver as ineficiências do sistema tributário brasileiro não tem sido considerado
seriamente por boa parte dos economistas e políticos brasileiros. Não é o que
acontece no resto do mundo, os efeitos econômicos são levados em conta para a
adoção de qualquer medida tributária. O Brasil precisa começar a encarar
seriamente seu sistema tributário.
_____________
1 A Receita Federal do Brasil apresenta
relatório anualmente denominado de “Demonstrativo dos Gastos Governamentais
Indiretos de Natureza Tributária – (Gastos Tributários) – PLOA” onde enumera os
valores que deixaram de arrecadar em virtude de isenções e demais benefícios
fiscais. O relatório para o ano de 2014, utiliza a seguinte definição:
“….essas
desonerações irão se constituir em alternativas às ações Políticas de Governo,
ações essas que têm como objetivo a promoção do desenvolvimento econômico ou
social, não realizadas no orçamento e sim por intermédio do sistema tributário.
Tal grupo de desonerações irá compor o que se convencionou denominar “gastos
tributários”.” (fls 7)
2OECD
Economic Surveys: Brazil 2013 – http://www.oecd-ilibrary.org/economics/oecd-economic-surveys-brazil-2013_eco_surveys-bra-2013-en
3 Effects
of Adopting a VAT(1992), pag.38,39 e 40 – https://www.cbo.gov/sites/default/files/102nd-congress-1991-1992/reports/1992_02_effectsofadloptingavat.pdf
4 “Study
on Reduced VAT applied to goods and services in the Member States of the
European Union” (2007) –http://ec.europa.eu/taxation_customs/resources/documents/taxation/vat/how_vat_works/rates/study_reduced_vat.pdf
5 Idem nota 4 , páginas 14 e 15. O estudo
utiliza a premissa de neutralidade fiscal-orçamentária. Assim, uma redução de
alíquota ou isenção deve ser compensada por aumento da alíquota genérica, visto
que a necessidade orçamentária continua sendo a mesma.
6 Relatório Análise da Arrecadação das Receitas
Federais – Dezembro 2014 –http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/2014/analise-mensal-dez-2014.pdf/view
7 Tabela 1.1.14 – Despesas monetária e não
monetária média mensal familiar, com alimentação, por classes de rendimento
total e variação patrimonial mensal familiar, segundo os tipos de despesa, com
indicação do número e tamanho médio das famílias, na área urbana – Brasil –
período 2008-2009
8 O ESTADO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E
NUTRICIONAL NO BRASIL – Um retrato multidimensional – RELATÓRIO 2014 – FAO
Eduardo Fleury é economista (USP), Advogado, Mestre em Tributação Internacional pela University of Florida, Especialista em Direito de Empresas Americanas pela Harvard Extension School e em Corporate International Tax Planning pela Leiden University, Holanda.