segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O que a economia comportamental tem a dizer sobre a morte do pequeno Aylan?



 Por Carlos Mauro

Todos nós somos expostos, com mais frequência do que gostaríamos, a imagens de pessoas mortas em genocídios, guerras, em fugas por refúgio, em ataques terroristas e noutros cenários de morte ou assassinatos coletivos. Estas imagens são terríveis com dezenas, centenas ou milhares de mortos, muitas vezes, amontoados. Sentimo-nos mal. Contudo, a verdade é que, apesar do sofrimento, rapidamente recuperamos desse sentimento e, na maioria das vezes, pouco falamos sobre o assunto. A notícia corre na imprensa e pelas redes sociais, cria-se, de alguma forma, uma certa interpelação coletiva mas, logo depois, voltamos a ver principalmente fotos de pratos de comida e selfies no Facebook.
Nos últimos dias, temos sido quotidianamente informados sobre um conjunto de mortes ocorridas durante o percurso de fuga de refugiados que, desesperadamente, tentam entrar no continente europeu. No início, as notícias eram tipicamente aquelas a que estamos habituados, ligadas a mortes coletivas como, por exemplo, o caso das dezenas de refugiados que morreram asfixiados dentro de um camião na Áustria. A maioria de nós ficou triste, é claro. E seguimos o roteiro, mais uma vez: sentimo-nos tristes por alguns momentos, tivemos alguma vontade potencial para ajudar, sentimo-nos tentados a doar algum dinheiro, mas, passadas algumas horas, começamos a esquecer o assunto. Era, afinal, mais um caso trágico com muitos mortos, sem nomes e sem histórias específicas. Neste tipo de caso pensamos mais no número de mortos do que nas vítimas propriamente ditas.
De um dia para o outro, no entanto, houve uma reviravolta no sentimento das pessoas sobre a tragédia e o sofrimento dos refugiados. As doações aumentaram vertiginosamente, as ofertas para receber refugiados cresceram como nunca, os políticos mostraram-se mais diligentes, e, de modo geral, a população tornou-se mais desperta para o problema e mais conectada afetivamente com a situação.
Esta mudança drástica ocorreu por causa da triste história da criança que morreu afogada durante a busca por refúgio. Esta criança foi identificada como sendo o menino Aylan, que tinha 3 anos, vestia uma camisa  vermelha e calções azuis, que morreu afogado e foi encontrado e fotografado numa posição de submissão ao seu sofrimento. Depois, soubemos que o irmão e a mãe tinham, também, morrido nas mesmas condições, mas o certo é que nos interessamos muito menos por eles.
O leitor poderá pensar que me encaminho para criticar a nossa “hipocrisia” e a nossa suposta suscetibilidade a sermos manipulados pela imprensa. Afinal, nos últimos anos, temos sido bombardeados por imagens de milhares de pessoas mortas em situações muito semelhantes, mas nunca antes mobilizamos tantos esforços como agora, depois do caso Aylan. Mas não, não pretendo acusar ninguém de nada.
O que pretendo dizer é que esta situação pode ser explicada pela ciência e pela economia comportamental através do “Efeito da Vítima Identificável”, fenômeno descrito na última década por alguns cientistas e economistas comportamentais, como, por exemplo, pelos professores americanos Paul Slovic, George Lowenstein, Deborah Small e pela professora israelense Tehila Kogut. Os estudos sobre este efeito têm revelado uma grande assimetria na nossa tendência para ajudar em casos de vítimas coletivas e em casos de vítimas identificadas. A tragédia recente é exemplar neste sentido. Lemos e fomos confrontados com imagens de dezenas e centenas de refugiados mortos, mas parece que acordamos para o assunto apenas depois do caso Aylan. Inequivocamente, a probabilidade de agirmos e de ajudarmos de alguma forma aumentou depois de termos tido acesso à história de Aylan, cujas imagens correram o mundo, de modo viral.
O Efeito da Vítima Identificável mostra-nos claramente como agimos nestas situações. Tentando evidenciar o efeito de um ponto de vista científico, nas experiências mais conhecidas, os participantes são separados em dois grupos diferentes e são desafiados a responder sobre situações ligeiramente diferentes. Um dos grupos lê a história de milhares de crianças que estão em situação de risco num país muito pobre e, logo a seguir, os participantes são questionados sobre quanto estariam dispostos a doar para ajudar. O outro grupo lê a história de uma criança identificada que está em situação de risco no mesmo país e, logo a seguir, os participantes, também, são questionados sobre quanto estariam dispostos a doar para ajudar. Qual seria o resultado esperado? A maior parte das pessoas diria que, seguindo a crença de que somos agentes racionais, os participantes do grupo com milhares de vítimas doariam substancialmente mais do que os participantes do grupo com a vítima única. No limite, poder-se-ia dizer que o valor da doação seria o mesmo, pois as pessoas podem ter um valor para doação e, quer seja para uma ou mil crianças, doarão o mesmo, pois é o que têm disponível.
Contudo, o curioso é que as coisas não ocorrem nada assim. Os participantes do grupo com os milhares de vítimas doam a metade do valor dos participantes do grupo com a vítima única e identificada. Para um adepto da crença de que os agentes econômicos são racionais, este comportamento não faz sentido. No entanto, este é o comportamento que sistemática e previsivelmente exibimos. Temos a clara tendência para nos ligarmos afetivamente a casos únicos e identificados de modo substancialmente mais forte, do que a casos de tragédias coletivas, com milhares de vítimas. Este efeito pode explicar a nossa passividade em casos de genocídios e a nossa diligência em casos de uma vítima identificada na mesma condição.
Temos que ter consciência que o Efeito da Vítima Identificável pode ser utilizado para mobilizar as pessoas para boas ou más causas. Contudo, assumindo que os cientistas e economistas comportamentais seguem imperativos éticos, podemos afirmar que este efeito abre um conjunto enorme de possibilidades para fazer o Bem. Algumas ONGs, por exemplo, já estão conscientes disso e identificam o beneficiário da doação, aumentando, assim, as suas receitas e a dimensão dos recursos afetos às causas que representam.
O potencial de aplicação deste efeito é grande. Podemos influenciar as decisões das pessoas de modo muito eficaz, por exemplo, mudando a perspetiva do problema, identificando um sujeito do conjunto de vítimas ou beneficiários. No caso específico dos refugiados, podemos aproveitar a onda para estabelecer compromisso mais fortes entre Estados e pessoas, enquanto durar o “efeito Aylan”. Obviamente, não podemos correr o risco da banalização, mas seria importante que a imprensa fosse sensibilizada para as possibilidades do efeito e, com mais frequência e de forma responsável, se interessasse por casos únicos e identificasse as vítimas. No fundo, que contasse uma história com a qual o público se pudesse identificar afetivamente e agir.
Deste modo, talvez conseguíssemos criar e desenvolver uma percepção do sofrimento coletivo mais adequada e mais realista, criando condições para uma ação, individual e coletiva, mais eficaz e mais consciente.
Carlos Mauro é professor da Faculdade de Economia da Universidade Católica Portuguesa - Porto. Diretor do Behavior, Economics and Organizations Laboratory – BEO LAB – Católica Porto, e Visiting Scholar na Wharton School – Universidade da Pensilvânia.