segunda-feira, 3 de abril de 2023

O STF resolverá a questão do nepotismo? (função pública)



    Nepotismo tem sido tema recorrente no noticiário dos últimos dias. No Amapá, Bahia e Piauí, cônjuges de atuais ministros de estado, outrora governadores, foram indicadas e nomeadas conselheiras dos respectivos Tribunais de Contas. O caso mais recente ocorreu no Pará, onde a Assembleia Legislativa, que tinha o direito à vaga, indicou e aprovou a esposa do atual governador como conselheira do órgão de contas estadual.

Afinal, tais nomeações caracterizam nepotismo?

Quem mergulhar na legislação em busca de respostas, emergirá frustrado. Até hoje, o legislador brasileiro não editou normas gerais sobre nepotismo. Apostou-se que o Judiciário seria a instância adequada para enfrentar o tema. Foi o que, em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) buscou fazer, com a edição da súmula vinculante n. 13 (SV 13).

A súmula veda às autoridades públicas a nomeação de "cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau" para cargos de livre provimento "na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". A vedação abrange também a hipótese de "ajuste mediante designações recíprocas", conhecida como nepotismo cruzado.

Contudo, não tardou para que surgissem controvérsias sobre o tema.

Dias após a aprovação da SV 13, em caso envolvendo a nomeação de irmão do governador do Paraná para secretário de estado, o STF concluiu pela não aplicação da SV 13, pois o cargo teria natureza política . Seis meses depois, em ação envolvendo outro irmão do mesmo governador, nomeado para o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas, o Supremo entendeu que a SV 13 seria aplicável, pois o cargo teria natureza administrativa .

Essa distinção quanto à natureza (política ou administrativa) dos cargos, bem como seu reflexo sobre a aplicação (ou não) da SV 13, tem gerado, desde então, entendimentos divergentes no âmbito do STF.

A controvérsia em torno da aplicação da SV 13 aos cargos políticos pode ser bem ilustrada a partir dos entendimentos conflitantes das duas turmas do STF.

A primeira turma do tribunal entende ser possível, em tese, o controle de nomeações dos parentes de autoridades para cargos políticos, caracterizando-se como nepotismo os casos de inequívoca falta de razoabilidade e manifesta ausência de qualificação técnica ou inidoneidade moral. Já na segunda turma , a maioria dos ministros considera que cargos políticos estão excluídos da incidência da SV 13.

Curioso é que, na prática, mesmo a primeira turma resiste em rever o mérito de nomeações para cargos políticos. Frequentemente as decisões são no sentido de que a verificação da existência de nepotismo demandaria análise probatória ou rediscussão de fatos, medidas incompatíveis com os respectivos processos junto ao STF.

Assim, ainda que por motivos diferentes, ambas as turmas do STF têm chegado a conclusão semelhante: a impossibilidade, em geral, de o Supremo verificar a ocorrência de nepotismo nas nomeações para cargos políticos.

O resultado é a falta de orientação geral, ao restante do Judiciário, quanto à interpretação da SV 13. Enquanto alguns tribunais seguem o entendimento de que a vedação ao nepotismo não abrange cargos de natureza política, outros sustentam que a nomeação de pessoas próximas para cargos políticos não só é vedada, como pode configurar improbidade administrativa.

Diante desse cenário, em 2018, o STF reconheceu a existência de repercussão geral na "discussão quanto à constitucionalidade de norma que prevê a possibilidade de nomeação de cônjuge, companheiro ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante, para o exercício de cargo político" ( tema 1000 ).

O tema teve origem em caso no qual se discute a constitucionalidade de lei municipal autorizando a nomeação de "parentes até terceiro grau, consanguíneos ou afins" para o "cargo de agente político de Secretário Municipal".

O Ministério Público, autor da ação, sustenta que a norma viola a moralidade e impessoalidade na administração. Já o Município, e seu então prefeito, alegam que impedir a livre nomeação de agentes para cargos políticos fere a autonomia da administração local, e impede nomeações baseadas na confiança, característica inerente aos cargos de assessoria imediata ao prefeito.

No STF, o ministro Luiz Fux, relator do caso, sustentou a importância de se enfrentar o tema: "a indefinição acerca da constitucionalidade da nomeação de parentes do nomeante para cargos de natureza política tem provocado grande insegurança jurídica", uma vez que "a real legitimidade de diversas nomeações a cargos públicos" fica dependendo de "pronunciamento definitivo do poder judiciário".

O reconhecimento de repercussão geral ao caso gerou entusiasmo. O próprio STF classificou o tema 1000 como aderente a 3 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável elencados pela Agenda 2030 da ONU: trabalho decente e crescimento econômico; redução das desigualdades; e paz, justiça e instituições eficazes.

Ao que tudo indica, dobra-se a aposta de que o Judiciário conseguirá resolver a questão do nepotismo. Mas a própria jurisprudência do STF sugere que a tarefa não será simples.

Ao enfrentar a questão do nepotismo nos cargos políticos, o tribunal terá de lidar com pelo menos três desafios.

Primeiro, definir quais são os cargos de natureza política. Em geral, o STF entende como cargos políticos os de ministro , no âmbito federal, e secretário , nos estados e municípios. Contudo, em seus votos, ministros têm definido os cargos políticos a partir de conceitos mais fluídos, considerando elementos como a "fidúcia". [1]

O risco é que a jurisprudência do STF dê margem a interpretações variadas do que seriam cargos políticos, sejam elas restritivas ou expansivas. Não é simples a tarefa de prever, por meio de decisão judicial, fórmula flexível para abranger todos os âmbitos administrativos sujeitos à SV 13. Mas a efetividade da vedação ao nepotismo parece depender, em boa medida, de uma melhor definição dos cargos políticos.

Outro desafio é, caso o STF entenda que a SV 13 não se aplica plenamente aos cargos de natureza política, definir se deve ser aplicado algum outro parâmetro. Ministros têm manifestado o entendimento de que, "em hipóteses que atinjam ocupantes de cargos políticos, a configuração do nepotismo deve ser analisada caso a caso", a fim de se verificar a ocorrência de "fraude à lei, nepotismo cruzado ou manifesta ausência de qualificação técnica".

Há o risco de que critérios muito restritivos prejudiquem o controle do nepotismo, e de que critérios amplos demais deem ensejo a arbitrariedades. Além disso, há a dificuldade de desenhar quesitos que abranjam os diferentes tipos de cargos políticos, associados a qualificações técnicas de diferentes naturezas. Novamente, a complexidade da questão parece dificultar que sua resolução venha por meio da atividade judicial.

Por fim, caso o tribunal entenda que a SV 13 é aplicável, ainda que parcialmente, aos cargos políticos, há o desafio de definir quais as instâncias adequadas para a verificação da ocorrência de nepotismo.

Caminho natural para questionar decisões que violem súmula vinculante é o ajuizamento de reclamação junto ao STF. No entanto, em diversos casos o tribunal sustenta que "a reclamação é remédio que não se coaduna com a atividade instrutória, razão pela qual inviável o exame, nesta via, acerca da presença dos elementos caracterizadores do nepotismo".

O Judiciário, em vista de seus ritos próprios, e volume de trabalho, parece não ter condições de realizar um controle casuístico quanto à ocorrência de nepotismo na administração. Há o risco de obstrução dos meios de controle das nomeações para cargos políticos. Não será simples encontrar modelo que, por um lado, favoreça o controle do nepotismo e, por outro, não onere demasiadamente os tribunais.

*

Apesar das boas intenções, parece difícil que o Judiciário, por si só, consiga resolver a questão do nepotismo. Diante da omissão do legislador, os desafios ao STF para enfrentar o tema não são pequenos, e a necessidade de se considerar os efeitos nacionais de suas decisões torna a tarefa ainda mais complexa. Não seria o caso de apostarmos menos no Judiciário, e cobrarmos mais de nossos legisladores?

[1] Sobre o tema, ver pesquisa de Maria Beatriz Bolini, desenvolvida na Escola de Formação pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público, disponível em: https://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2022/03/MariaBeatrizBolini.monografiarevisada.pdf .

Ana Luíza Calil - Advogada e Consultora. Doutoranda em Direito Administrativo (USP). Fundadora e pesquisadora do UERJ Reg. Membro do Projeto Mulheres na Regulação. Administradora da página @oadmfica

Anna Carolina Migueis Pereira - Doutora e mestre em Direito Público pela Uerj. Pesquisadora do Uerj Reg.

Conrado Tristão - Mestre e doutorando em Direito pela FGV-SP. Coordenador executivo do Núcleo de Inovação da Função Pública - sbdp

Camila Castro Neves - Mestranda na FGV Direito SP. Pesquisadora do Núcleo de Inovação da Função Pública (sbdp)

Ricardo Alberto Kanayama - Mestre em Direito e Desenvolvimento e pós-graduado em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela FGV Direito SP. Bacharel em Direito pela UFPR. Pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp. Advogado em Curitiba

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