terça-feira, 27 de setembro de 2022

Por uma 'saída à francesa' aos benefícios tributários para agrotóxicos


Em 2022, isenção representará um gasto de R$ 5,2 bilhões para a União; na esfera estadual impacto é ainda maior

 

A necessidade de adoção pelo Brasil de políticas sustentáveis de produção de alimentos, em estímulo à transição agroecológica para implementação das metas da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, foi destacada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em relatório de 2017. Para o órgão, inexistem estímulos suficientes no Brasil para reduzir o consumo excessivo de agrotóxicos e encorajar a adoção de alternativas menos prejudiciais e mais sustentáveis para controle de pragas[1]. Estamos, ao invés disso, em direção contrária: enquanto a França - líder na produção agrícola e no uso de agrotóxicos na União Europeia - tributa defensivos agrícolas desde 1999, no Brasil optamos pela redução dos tributos sobre o setor, com a concessão de diversos benefícios tributários para esses produtos[2].

Em 2022, a isenção de tributos sobre agrotóxicos representará um gasto tributário de cerca de R$ 5,2 bilhões para o governo federal, conforme dados disponibilizados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil[3]. Esse valor representa pouco mais de um terço de todo o orçamento do Ministério da Agricultura na Lei Orçamentária Anual de 2022. Na esfera estadual, o impacto é ainda maior: segundo estimativas de Lucas Cunha e Wagner Soares[4], a redução de base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas operações internas e nas saídas interestaduais desses produtos em virtude do Convênio 100/1997 - prorrogado até dezembro de 2025 pelo Convênio 26/2021 - onerou em cerca de R$ 6,2 bilhões os cofres dos estados em 2017.

Ao lado das questões orçamentárias, há outras, apontadas pelo relatório do TCU, igualmente relevantes para a análise. Como destaca a corte, o uso de agrotóxicos está associado à degradação do meio ambiente e a malefícios à saúde da população, tanto a dos que consomem alimentos com resíduos quanto a dos trabalhadores que manejam esses produtos[5]. Com isso, o estado precisa gastar mais com saúde, preservação do meio ambiente e segurança do trabalho para lidar com os custos dos casos de intoxicações, doenças crônicas e contaminação ambiental, por exemplo.

Como indicativo desse cenário, apenas no Paraná, 'para cada dólar gasto com a compra dos agrotóxicos no estado, cerca de US$ 1,28 poderiam ser gerados em custos externos com a intoxicação'[6]. Nos Estados Unidos, estima-se que 'para cada US$ 1 gasto na compra de agrotóxicos, US$ 2 são gerados de custos externos'[7]. Diante desses custos sociais, se uma boa política fiscal deve ter a justiça como vetor[8], deve-se indagar: até que ponto é justo adotarmos esses benefícios frente a todo o impacto já evidenciado?

De modo geral, são dois os principais argumentos a favor dessa política fiscal: a necessidade de desoneração dos alimentos, por meio da redução do impacto tributário sobre os agrotóxicos, e o estímulo às exportações brasileiras, com redução dos custos de produção agrícola[9].

Os argumentos, contudo, não se sustentam. Segundo o Ibama, 85% das vendas de agrotóxicos no Brasil correspondem à produção de seis commodities agrícolas (soja, cana-de-açúcar, algodão, milho safrinha, milho, trigo e café), cujos preços são determinados pelo mercado internacional, não pelos custos locais, de modo que não há, na maior parte desses produtos, relação direta entre o custo de produção e os preços suportados pelo consumidor final. Se se faz necessário desonerar os alimentos, então que sejam implementadas medidas para ampliar o acesso a estes e não aos agrotóxicos, com benefício direto à população consumidora[10].

Por outro lado, os indicadores mostram o Brasil consolidado como forte produtor, menos dependente do crédito subsidiado[11] e com tendência de crescimento da produção agrícola nos próximos anos, com incremento de 26,8% na produção e de 15,3% na área plantada até 2029[12]. É verdade que retirar os incentivos tributários concedidos aos agrotóxicos impactaria diretamente aquelas culturas que utilizam em maior volume esses produtos[13], mas, por outro lado, resultaria em estímulo à substituição dos métodos convencionais e à adoção de alternativas menos prejudiciais e mais sustentáveis para controle de pragas e doenças, reduzindo o impacto à saúde e ao meio ambiente, além de garantir a produtividade.

Foi nesse contexto que, em junho de 2016, o PSOL ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5553, que está sob relatoria do ministro Edson Fachin, tendo como objeto dispositivos do Convênio 100/1997 e da parte da Tabela do IPI referente aos agrotóxicos. Em outubro de 2020, a matéria foi incluída no plenário virtual, com voto favorável do relator para declarar a inconstitucionalidade da concessão desses benefícios. No entanto, o julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, sem andamento desde então.

Todavia, se extintos ou declarados inconstitucionais, como propor uma alternativa viável aos benefícios tributários aos agrotóxicos?

À luz da seletividade, os produtos supérfluos ou nocivos devem estar sujeitos a alíquotas mais gravosas, ao contrário dos produtos necessários e úteis[14]. Como já destacamos em outra oportunidade, a imposição de alíquotas mais onerosas para bens supérfluos e a existência de benefícios ou mesmo desoneração para aqueles essenciais não é mera escola de política tributária do ente tributante. Trata-se de mandamento constitucional que informa o desenho da tributação do consumo no Brasil. De outro lado, incentivos tributários são qualificados como gastos indiretos para os entes, já que optam pelo não recolhimento do tributo (ou pela redução da incidência) com o objetivo de estimular o setor beneficiado. Trata-se, pois, de alocação de recursos públicos em determinadas áreas, porque julga-se que os benefícios advindos do estímulo financeiro compensarão as perdas arrecadatórias[15].

Aplicando-se essas rápidas considerações aos agrotóxicos, claramente se vê que não há qualquer racionalidade na existência de benefícios tributários para produtos cujo consumo irá reverberar em ônus significativos aos cofres públicos, seja pelo impacto nos serviços de saúde, seja em razão dos danos ambientais. Por essa razão é que, sendo necessário estimular práticas mais sustentáveis, seria justo e adequado que defensivos agrícolas mais tóxicos estivessem sujeitos a alíquotas maiores; e aqueles menos tóxicos, a menores: trata-se da tributação progressiva de acordo com o nível de toxicidade, modelo já adotado na França[16].

Essa lógica de tributação foi incorporada no PL 3068/2021, de autoria do deputado federal Pedro Uczai (PT-SC), com a proposta de criação da Cide Agrotóxicos para financiar políticas públicas de defesa ao meio ambiente e de assistência às vítimas da Covid-19. As alíquotas maiores incidiriam sobre produtos classificados pela Anvisa como extremamente ou altamente tóxicos e as menores sobre aqueles moderadamente ou pouco tóxicos e demais produtos. No entanto, a proposta, a pedido do autor, foi retirada de tramitação em abril deste ano.

Embora a proposta do deputado Pedro Uczai pudesse lançar o debate e trazer boas contribuições sobre o tema, acreditamos que a solução não está na criação de outro tributo - o que poderia aumentar os custos de conformidade à tributação para as empresas e os custos de operacionalização da cobrança para o fisco, ao lado das questões orçamentárias relacionadas com a criação de mais um tributo de receita vinculada. Melhor seria, a nosso ver, a eliminação dos benefícios tributários atualmente vigentes e a estipulação de alíquotas progressivas conforme o nível de toxicidade nos tributos já existentes, como o PIS, Cofins, ICMS e IPI, por exemplo.

Para isso, como a França tem demonstrado, é necessário investir na elaboração de pesquisas empíricas que analisem os riscos desses produtos à saúde e ao meio ambiente, ao lado de análises sobre impacto regulatório, a fim de apoiar a elaboração de políticas públicas de redução do uso de agrotóxicos, enfrentar o lobby e dar bases à adoção de alíquota progressivas conforme o nível de toxicidade desses produtos para, ao fim, estimular a adoção de métodos menos prejudiciais e mais sustentáveis de produção.

[1] Para a corte, 'Em vez de fomentar a redução do consumo excessivo de agrotóxicos no país, as políticas de crédito e seguro agrícolas, em geral, induzem o uso de agrotóxicos na agricultura a fim de mitigar o risco de perdas de produção decorrentes de pragas, doenças e ervas daninhas. Não há incentivos suficientes ao desenvolvimento e à disseminação de alternativas sustentáveis que gradativamente possam substituir aqueles defensivos químicos mais tóxicos no controle de pragas'. Cf. BRASIL. Tribunal de Contas da União. TC 028.938/2016-0. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2022.

[2] OCDE. The Political Economy of Biodiversity Policy Reform. Paris: OECD Publishing, 2017. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2022.

[3] BRASIL. Secretaria Especial da Receita Federal. DGT Previsão PLOA 2022 - Quadros. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2022.

[4] CUNHA, Lucas Neves da; SOARES, Wagner Lopes. Os incentivos fiscais aos agrotóxicos como política contrária à saúde e ao meio ambiente. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 10, e00225919, 2020. Disponível em: . Acesso em 9 set. 2022.

[5] BRASIL. Tribunal de Contas da União. op. cit. p. 32.

[6] SOARES, Wagner Lopes; PORTO, Marcelo Firpo de Souza. Uso de agrotóxicos e impactos econômicos sobre a saúde. Revista Saúde Pública, v. 46, n. 2, p. 209-217, 2012. p. 213. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2022.

[7] Idem.

[8] Cf. STIGLITZ, Joseph E. La economía del sector público. Barcelona: A. Bosch, 2003. p. 483.

[9] Estes foram os argumentos defendidos pelo deputado Mário Negromonte, em 2004, quando concedida a isenção de PIS e COFINS a esses produtos. A propósito, Cf. . Acesso em: 7 set. 2022.

[10] CUNHA, Lucas Neves da; SOARES, Wagner Lopes. op. cit. p. 10.

[11] SANTOS, Gesmar R.; FREITAS, Rogério E. Gasto público com a agricultura no Brasil: uma abordagem a partir de dados agregados. Boletim regional, urbano e ambiental, v. 17, jul./dez. 2017. p. 96.

[12] BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Política Agrícola. Projeções do agronegócio: Brasil 2018/19 a 2028/29. Brasília, 2019. p. 93. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2022.

[13] CUNHA, Lucas Neves da; SOARES, Wagner Lopes. op. cit. p. 10.

[14] Cf. COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 12ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 387; CARVALHO, Paulo de Barros. IPI - Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 2, n. 12, p. 42-60, 1998.

[15] PISCITELLI, Tathiane. Faz sentido benefícios tributários sobre agrotóxicos? Valor Econômico, Fio da Meada, São Paulo, 29 ago. 2018. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2022.

[16] OCDE. op. cit.

Jota, Tathiane Piscitelli, Davi Rocha Teles


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