quarta-feira, 6 de julho de 2022

A reforma da Lei de Mobilidade Urbana


“(...) Embora o PL nº 3.278/2021 signifique um gesto de boa vontade da parte do parlamento e vise a contribuir para a melhoria do cenário acima descrito, é importante analisá-lo objetivamente. E é sob uma análise objetiva que o projeto mostra não apenas as suas limitações, mas os seus efeitos nocivos sobre os serviços de transporte coletivo urbano. (...)”

 

Está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei nº 3.278/2021 ('PL nº 3.278/2021'), de autoria do ex-senador e atual ministro do Tribunal de Contas da União, Antônio Anastasia, que tem por objeto a reforma da Lei nº 12.587/2012 (a 'Lei de Mobilidade Urbana'). O PL nº 3.278/2021, conforme consta da sua justificativa, pretende ser a resposta à 'queda constante de produtividade e qualidade do transporte público nas cidades'.

O cenário em que tal proposta se insere é conhecido de todos: os serviços de transporte coletivo urbano têm suportado na última década uma queda progressiva da demanda, causada pela concorrência de outros modais, como o transporte individual privado (por aplicativos), e mais recentemente pelas políticas de restrição à locomoção de pessoas adotadas na pandemia da COVID-19 e pela alta do preço dos combustíveis, um insumo altamente significativo para a operação e que, por ser uma commodity que tem seu preço definido no mercado internacional, tem variado em razão de fatores imprevisíveis como a guerra na Ucrânia. Além disso, deve-se destacar o crônico e generalizado problema da desconsideração, pelos poderes concedentes (municípios e Estados), do direito das concessionárias e permissionárias ao equilíbrio econômico-financeiro dos respectivos contratos. Passada uma década de sua promulgação, a Lei de Mobilidade Urbana, que estabelece, em seu art. 9º, o direito das operadoras a subsídios em caso de déficit de cobertura da tarifa de remuneração (o preço contratual) pela arrecadação da tarifa pública (o preço cobrado dos usuários), ainda é solenemente ignorada, pelo menos neste particular.

Entre as modificações propostas pelo PL nº 3.278/2021, estão: (i) introdução de novas definições à Lei de Mobilidade Urbana (criação dos conceitos de 'rede básica de transporte coletivo', 'transporte público coletivo complementar' e 'transporte público coletivo sob demanda', entre outros); (ii) alteração das regras a respeito do regime econômico-financeiro das concessões de transporte coletivo urbano; e (iii) instituição de mecanismos de colaboração entre a União e os entes subnacionais para organização e financiamento dos serviços.

Embora o PL nº 3.278/2021 signifique um gesto de boa vontade da parte do parlamento e vise a contribuir para a melhoria do cenário acima descrito, é importante analisá-lo objetivamente. E é sob uma análise objetiva que o projeto mostra não apenas as suas limitações, mas os seus efeitos nocivos sobre os serviços de transporte coletivo urbano.

A primeira razão para isso é que o projeto de lei tende a tornar menos nítida a distinção - que foi um avanço conceitual importante da Lei de Mobilidade Urbana - entre tarifa pública e tarifa de remuneração, com os sentidos já referidos acima.

Com efeito, no art. 2º do projeto, que introduz um novo inciso XVII ao art. 4º da Lei nº 12.587/2012, tarifa de remuneração passa a ser 'o valor que cobre os reais custos de produção do serviço de transporte coletivo básico ou complementar, incluindo a remuneração do prestador do serviço'. A seu turno, a nova redação proposta para o art. 9º, caput, da Lei de Mobilidade Urbana qualifica a tarifa de remuneração como aquela 'resultante do processo licitatório'. Ora, ou a tarifa de remuneração é, como hoje, o preço contratual resultante da licitação, ou então é um agregado de 'custos reais' mais 'remuneração'. E como o PL nº 3.278/2021 não dá nenhum parâmetro para definir o que sejam 'custos reais' ou a 'remuneração', esses dois aspectos essenciais da operação ficam em aberto, o que não pode acontecer.

A confusão aumenta ainda mais quanto se verifica, na proposta de inc. XXI do mesmo art. 4º, o conceito de subsídio como o 'valor do déficit tarifário a ser complementado pelo poder público delegante com o objetivo de manter a tarifa pública cobrada do usuário abaixo do custo real do serviço prestado'. Há uma clara inconsistência no projeto de lei: o subsídio passa a ser o montante necessário para a cobertura do 'custo real' do serviço e não para custeio da tarifa de remuneração, já que esta seria acrescida também da remuneração do operador. Na melhor das hipóteses, o subsídio se amesquinha e deixa de servir para reequilibrar de forma integral os contratos de concessão. É o sentido inverso do que deve ser uma reforma da Lei de Mobilidade Urbana.

Em segundo lugar, o PL nº 3.278/2021 cria dificuldades para o processamento dos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro. O projeto propõe uma nova redação para o §7º do art. 9º da Lei de Mobilidade para estabelecer que os processos de reequilíbrio somente serão realizados 'em caráter excepcional e desde que observado o interesse público'. Ora, isto significa dar ao poder concedente uma alta margem de discricionariedade na matéria, o que é altamente indesejável. Com efeito, para que um pedido de reequilíbrio contratual seja recusado, basta ao administrador público invocar a 'inconveniência ao interesse público' para que a discussão se encerre. E o próprio acesso ao judiciário pode ficar prejudicado, já que o juiz pode compreender que a prejudicialidade ao interesse público, declarada pela administração, deve ser preservada pelo judiciário, em prestígio à presunção de validade e legitimidade dos atos administrativos. Nesse cenário, que tem uma probabilidade razoável de ocorrer, o concessionário ficará tanto sem a tutela administrativa quanto sem a tutela jurisdicional. O seu direito ao equilíbrio econômico-financeiro, garantido constitucionalmente (art. 37, XXI), será, na prática, uma ficção.

Por último, o projeto propõe um novo arranjo de competências visando à cooperação entre os entes federativos (União, Estados e municípios) em questões relacionadas à mobilidade urbana. Aqui o projeto peca pela sua timidez. Sem um movimento mais claro e efetivo no sentido da transferência de certas competências, dos municípios (a quem cabe precipuamente a gestão dos serviços públicos de transporte coletivo urbano, por força do art. 30, V, da Constituição) para os entes maiores (Estados e União), é muito provável que qualquer esforço de recuperação do setor seja inútil. O novo marco legal do saneamento básico (Lei nº 14.026, de 15.07.2020) é um exemplo nesse sentido.

Uma reforma da Lei de Mobilidade que vise a, de fato, contribuir para melhorar a qualidade e garantir a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de transporte coletivo urbano deve passar pelas seguintes diretrizes: (i) reforço do direito das operadoras aos subsídios mediante a previsão de garantias em favor do particular como condição para licitação dos serviços; (ii) previsão de mecanismos de transferências de competências dos municípios para Estados e/ou União em caso de inexistência de recursos para a instituição de garantias nos moldes do item anterior; (iii) previsão da criação de um fundo federal não-orçamentário, a ser gerido por instituição privada, ao qual serão incorporados bens dominicais (p. ex., imóveis não utilizados) e recursos orçamentários federais, além do bens de mesma natureza dos entes federativos que aderirem ao fundo ou, na sua falta, recursos dos Fundos de Participação de Estados e Municípios, destinado a garantir o pagamento dos subsídios às concessões de transporte coletivo urbano em todo o território nacional; e, por fim, (iv) a criação de uma instância administrativa centralizada, de composição colegiada paritária (metade dos membros indicada pelo poder público e metade por entidades representativas das operadoras de transporte coletivo), destinada à servir como última instância administrativa em discussões envolvendo equilíbrio econômico-financeiro de contratos.

Essa última medida teria o efeito benéfico de permitir o atingimento de decisões justas, que garantam a liquidez dos créditos detidos pelas operadoras (muitas vezes, o direito ao subsídio não chega nem sequer a se materializar, por falta de uma decisão conclusiva sobre os pleitos das operadoras), e retirar a carga política das decisões envolvendo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de transporte coletivo urbano (não é incomum que, mesmo reconhecendo o direito das operadoras, o poder concedente municipal deixe de tomar as medidas necessárias para o reequilíbrio do contrato, por receio da 'impopularidade' de tais medidas).

A Lei de Mobilidade Urbana, que completou dez anos em 2022, é virtuosa e benéfica ao interesse público. Qualquer reforma ao seu conteúdo deve abordar os temas acima referidos, sob pena de veicular - a exemplo, infelizmente, do que ocorre com o PL nº 3.278/2021 - soluções ineficazes ou que, mais ainda, contribuem para piorar o que já existe.

Estadão, Amauri Saad, doutor e mestre em direito administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of Toronto. Sócio da área regulatória da Siqueira Castro Advogados em São Paulo


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