sábado, 8 de julho de 2017

O compadrio e a ‘vanguarda’ do atraso: A SAGA DA JBS


A empresa que se tornou a maior processadora de carne do mundo com ousadia, eficiência operacional e distribuição de propinas
O veterinário Enio Marques saiu perplexo do Ministério da Previdência. A reunião fora um desastre. Diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) naquele início dos anos 2000, Marques intermediara o encontro entre donos de frigoríficos e a equipe técnica ministerial. Em pauta, tema dos mais espinhosos para o setor: contribuições previdenciárias.
Para espanto geral dos técnicos, os empresários protagonizaram um show de sincericídio coletivo, admitindo a sonegação de impostos como modus operandi. De tão natural, nenhum deles sequer percebeu o embaraço. Para um país que almejava participar ativamente do comércio internacional de carnes, não era um sinal muito promissor. “O Júnior falou um monte de asneira”, recordase Marques, referindo-se ao empresário goiano José Batista Júnior, então presidente do Friboi, um frigorífico emergente. O episódio não teve maiores consequências, a não ser externar o que no setor era de conhecimento de todos.
À época, os frigoríficos brasileiros gozavam de péssima reputação. Sem acesso a crédito no sistema bancário, burlar a lei, utilizando o nome de “laranjas” ou sonegando toda a sorte de impostos e contribuições, era prática comum.
Ninguém diria que o sincero Júnior Friboi, com seu jeito caipira que até hoje rende chacotas entre executivos do eixo Rio-São Paulo, daria início à meteórica ascensão da empresa fundada em 1953 por seu pai, o mineiro José Batista Sobrinho, cujas iniciais justificam o nome que o frigorífico JBS carrega hoje.
O último 17 de maio foi uma virada nessa trajetória. Até a bombástica delação premiada fechada por seus irmãos Joesley e Wesley Batista com a Procuradoria-Geral da República (PGR), e que alvejou o presidente da República, Michel Temer, a história era uma. A da ascensão de um grupo familiar com forte veia empreendedora e enorme dose de ousadia para se transformar na maior processadora de proteína animal do mundo. Embora criticado pela agressividade com fornecedores e concorrentes, suas empresas são reconhecidas pela eficiência de gestão das unidades em todos os países onde opera, dos EUA à Europa e Austrália. Mas quando os irmãos sucumbiram ao cerco do Ministério Público e da Polícia Federal e confirmaram, em depoimentos filmados, as piores suspeitas sobre suas relações com figuras proeminentes do mundo político, os Batista e suas empresas tornaram-se párias do mundo empresarial ao qual tinham acabado de chegar. Passaram a ser evitados pela maioria dos empresários, políticos e banqueiros que até a véspera faziam questão de cultivar com eles bom relacionamento.
No último mês, a reportagem do Valor ouviu 55 pessoas para reconstituir a trajetória da JBS — a maioria pediu anonimato. O que emergiu da delação dos Batista é que o salto da JBS e a construção dos negócios reunidos na holding familiar J&F Investimentos foram regados, nos últimos dez anos, de R$ 1 bilhão em doações (R$ 600 milhões em caixa 2), quase tudo de propinas a políticos de todo o espectro ideológico, com destaque para o PT, que abriu as burras do BNDES. Mas o que emerge dos relatos colhidos pelo Valor também dá conta de que a JBS não pararia em pé se dependesse só do pagamento de propina.
A ORIGEM
No maior frigorífico do país, construir desde sempre foi verbo pouco conjugado. De 1953 até 2016, a JBS cresceu apenas por meio de aquisições, a preço de ocasião, de boas empresas em maus lençóis. Do açougue em Anápolis que abatia cinco cabeças por dia, José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro, progrediu fornecendo carne a empreiteiras que ergueram Brasília e fez sua primeira aquisição em 1970, em Formosa (GO).
Em depoimento para o livro “Brasil de Carne e Osso”, desenvolvido pela Abiec e publicado em 2015, Zé Mineiro rememora essa aquisição: “Fiz uma compra boa. Os três sócios estavam desanimados, queriam sair do ramo. Dei parte em imóveis e parcelei o resto em um ano, mensal. Não foi difícil pagar, não”.
Em 80, comprou o segundo frigorífico, em Planaltina, no Distrito Federal, mas acabou vendendo-o, para voltar às compras, em 1988, de um abatedouro em Luziânia (GO). A unidade dispunha de graxaria de grande porte para a época, que se tornaria o coração da Flora, companhia de higiene e limpeza batizada com o nome da sua mulher. As iniciais de José e Flora também formariam o nome da holding da família, a J&F. A JBS era, então, uma desconhecida empresa de pequeno porte, que abatia menos de 500 cabeças de gado por dia em seus dois frigoríficos.
Na década de 1980, os reis da carne bovina atendiam pelo sobrenome de Bordon. Ao lado do Anglo, Swift e dos franceses do Kaiowa, aproveitaram o primeiro suspiro exportador brasileiro em 1982, quando estourou a guerra das Malvinas e os tradicionais frigoríficos argentinos perderam espaço na Europa. Mas seriam minados nos anos seguintes pela sequência de planos econômicos. Em 1994, veio o golpe de misericórdia: a âncora cambial. “Foram todos pegos no contrapé”, lembra um empresário, e foram à bancarrota.
A partir das cinzas dos concorrentes, o Friboi deu o primeiro salto. Em meio à deterioração dos negócios do Bordon, os Batista chegaram em 1993 a um acordo de arrendamento com opção de compra do frigorífico de Anápolis. Foi a primeira grande unidade da JBS, com potencial para abater 1,2 mil cabeças. Após negociações arrastadas conduzidas pelos filhos, Zé Mineiro assumiu as conversas em 1995 com os empresários que controlavam o frigorífico Anglo em Goiânia e dobrou-os com uma boa quantia.
Até aquele momento, era vantagem para o Friboi ser um frigorífico goiano que vendia exclusivamente no mercado doméstico. Quem estava no mercado externo só perdia dinheiro devido ao câmbio apreciado. Os exportadores, submetidos a controles mais rígidos em seus mercados no exterior, tinham dificuldade para concorrer localmente devido à alta informalidade fiscal e sanitária do setor.
“A Sadia tentou tocar o negócio, mas ela pagava imposto. Por isso, saiu”, conta um empresário do setor. O noticiário da época retratava o problema de sonegação. À frente do conselho de administração da Sadia, o exministro Luiz Fernando Furlan afirmou em 1994 que o grupo fechara dois frigoríficos de bovinos devido à sonegação em frigoríficos menores.
Ao abandonar a produção de carne bovina, a Sadia abriu as portas para o Friboi aportar no Mato Grosso, que hoje concentra o maior rebanho bovino do país. E foi a Sadia que apresentou a empresa ao BNDES. Em 1997, quando o Friboi faturava R$ 400 milhões, o banco financiou a aquisição do frigorífico de Barra do Garças (MT). “O custo da Sadia era alto, e o deles mais baixo. Era até fácil pagar”, afirmou uma pessoa que acompanhou o episódio.
A Sadia teve também influência decisiva na história da JBS em 1999. Fazia cinco anos que mantinha fechado seu frigorífico de Andradina (SP). A unidade foi arrendada com opção de compra pelo empresário Mário Celso Lopes, que, após investir R$ 25 milhões para readequar a planta, necessitava de capital de giro para tocar a operação. Bertin e Minerva olharam o negócio, mas se assustaram com os valores envolvidos. Em busca de sócios, Lopes conheceu Júnior Friboi e Wesley Batista. Seria o início de um relacionamento pessoal e de negócios que, em seu ápice, daria origem à operação de celulose da J&F. Antes que a Eldorado Celulose entrasse em operação, Lopes brigou com Joesley e rompeu a sociedade.
Mas em 1999 o clima era outro. “Eles estavam naquela euforia. Assumiram o frigorífico Mouran!”, lembra Enio Marques. Controlada pelo Mouran até o fim da década de 80, a unidade era um dos frigoríficos mais emblemáticos do país, fundado pelo pai do senador Auro Soares de Moura Andrade. Negócio fechado, os Batista fizeram as malas e mudaram-se para Andradina. Ali, o Friboi estabeleceu sua matriz até 2004, quando o grupo migrou para São Paulo ao comprar em leilão, num ato também carregado de simbolismo, a sede do antigo rei dos frigoríficos, o Bordon.
SOFISTICAÇÃO FINANCEIRA
Era 2003 e o escândalo da vaca louca na Europa pavimentara o caminho para o Brasil fazer valer o tamanho do seu rebanho. Às voltas com febre aftosa, a Argentina mais uma vez deixou espaço para os concorrentes brasileiros. A Rússia abrira as portas para a carne brasileira. Faltava pouco para o país liderar as exportações.
Nos bancos, porém, a credibilidade dos frigoríficos ainda era um problema. Foi quando a JBS se adiantou aos concorrentes, contratando um executivo com uma pegada financeira. Após quase 20 anos no Sudameris e quatro no Banco Rural, Sérgio Longo assumiu a diretoria financeira da empresa. “O setor tinha imagem horrível. A Friboi queria mostrar para os bancos quais eram as oportunidades, e eu fui contratado para antecipar quais eram as metas”, afirmou Longo.
Aos poucos, os estímulos microeconômicos para sonegar vinham se reduzindo. O principal impulso para a formalização veio antes do boom das exportações, lembraram empresários ouvidos pela reportagem. Em 1996, a Lei Kandir isentou as exportações de ICMS, um dos tributos mais sonegados. “Cansei de transportar carne com a mesma nota fiscal”, admitiu um dono de frigorífico. Se fosse para exportar não fazia sentido sonegar. Além de não pagar os tributos, as exportações geram créditos tributários — que por vezes ficam represados e eram liberados após o pagamento de propina, conforme a delação.
No Friboi, as exportações entrariam na rotina na segunda metade da década de 90. Ninguém entre os Batista falava inglês, mas a companhia trouxe em 1996, do frigorífico Bordon, o irlandês Jeremiah O’Callaghan, atual diretor de relações com investidores da JBS. Coube a Jerry, como é conhecido no setor, estruturar a área de exportações da empresa, trazer mestres europeus para ensinar cortes ao gosto dos mais sofisticados mercados — e guiar os filhos de Zé Mineiro em uma viagem à Europa no primeiro carimbo de seus passaportes, em 1997.
“O setor tinha imagem horrível. A Friboi queria mostrar para os bancos as oportunidades, e fui contratado para antecipar as metas”, disse Sérgio Longo
De fato, as vendas externas começaram a ganhar dimensão após 1999, com o fim da âncora cambial e a compra da planta de Andradina. O expressivo crescimento das exportações brasileiras a partir de 2002 estimulou a formalização. As regras sanitárias para exportar eram mais rígidas, e os abates clandestinos, até então comuns, ficavam de fora desse filão externo. Nos anos posteriores, outras alterações da legislação e vitórias judiciais tornaram a sonegação menos atrativa. Entre elas, as liminares que impediram o recolhimento da contribuição previdenciária Funrural, a criação da nota fiscal eletrônica e, por fim, a isenção da cobrança do PIS e da Cofins na carne, em 2009. A febre de abertura de capital em bolsa na segunda metade dos anos 2000 foi o toque final para a formalização.
Cada vez mais ativa no mercado internacional, o Friboi via no câmbio uma fragilidade. “O sobe e desce do dólar estava prejudicando nossos resultados”, disse Júnior Friboi, em entrevista em 2004. Para contornar o problema, o Friboi contratou, em 2003, o ex-diretor da área externa do Banco Central Emilio Garofalo Filho, um dos maiores especialistas em câmbio do Brasil, morto em agosto de 2015, aos 63 anos. “Eles saíram na frente, muito na frente de todas as demais empresas”, disse Longo sobre a tesouraria.
“Os frigoríficos brasileiros começaram a emitir dívidas no exterior em 2003 e, de repente, todos os bancos correram para cobrir Bertin, Marfrig, Independência, Friboi e Minerva. Era óbvio que eles iriam abrir o capital na bolsa em algum momento e todos os bancos queriam estar próximos”, recordou-se o presidente de uma dessas instituições.
Por intermédio de Longo, a executiva do banco de investimentos do J.P. Morgan Patrícia de Moraes estabeleceria seu primeiro contato com o Friboi. Com os anos seria identificada pelo mercado financeiro e pelo setor de carnes como a “banqueira da JBS”, ao assessorar o grupo em sua abertura de capital e em algumas das mais relevantes aquisições no Brasil e no exterior. Patricia é filha de Marcus Vinícius Pratini de Moraes, ex-ministro da Agricultura, ex-presidente da Abiec e que de 2008 a dezembro de 2015 integrou o conselho de administração da JBS.
Assim como a contratação de Longo apresentou a empresa ao mercado financeiro, a de Garofalo Filho, também em 2003, fez do Friboi o primeiro frigorífico de carne bovina a estruturar uma mesa de operações de hedge cambial, política que marcaria a atuação da empresa até os dias atuais. No mercado, a JBS chegou a ser conhecida como um “fundo de hedge que vende carne”. Por mais de uma vez, ao longo dos últimos anos, a empresa esteve no epicentro de boatos de “insider trading” nos mercados de juros e câmbio. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga, com apoio da PF, a compra de dólares e a execução de programa de recompra de ações simultaneamente à venda de ações pelos controladores nos dias anteriores à divulgação da delação dos irmãos Joesley e Wesley.
A JBS nega irregularidades. Diz que, por sua alta exposição em dólar, não pode deixar de fazer hedge. Sua exposição líquida, entre a dívida e os recebíveis em dólar, era de cerca de US$ 7 bilhões em maio, quando voltou a montar a posição de hedge — tinha chegado a ficar comprada em US$ 11 bilhões em 2015, mas diante do custo muito alto de carregamento da posição, foi desfazendo-a conforme firmou-se a expectativa de que o real se valorizaria com a entrada de recursos externos no pós-impeachment da presidente Dilma. A decisão em maio era proteger apenas um terço da exposição em dólar, e, justifica a empresa, tanto não era sua intenção especular com a moeda que, quando o dólar subiu após a delação da JBS, ela não liquidou a posição, e está comprada até hoje.
UMA FAMÍLIA TRADICIONAL
A mosca azul da política picou o primogênito dos Batista em 2005. Os negócios iam de vento em popa. Muitos na família torciam o nariz para a carreira política, mas o grupo já era o maior do país em carne bovina, com vendas de R$ 3,7 bilhões anuais em 2004 — por que não governar Goiás?
Zé Mineiro teve três filhos e três filhas. “É uma família tradicional. Tudo ficava com Júnior, Joesley e Wesley”, disse uma pessoa que compartilhou a intimidade dos Batista. Na presidência da empresa familiar por 25 anos, Júnior Friboi passaria o bastão para o caçula, Joesley Batista. Dos três filhos, Joesley era o mais distante do estilo simples da vida em Goiás. “O Júnior é pinga, chapéu e viola. Wesley é de cerveja e vinho, um negociador dos mais hábeis. Mas o Joesley é a arrogância em pessoa”, disse um empresário que conhece a família. Para outros, Joesley faz um gênero bonachão, mas gosta de contar vantagem. Descrito como “topetudo” por aqueles com quem fazia negócios ou concorria, foi também um visionário. Sob Joesley, as vendas da JBS se multiplicaram por 15 e saltaram para R$ 61,8 bilhões em 2011.
Se era Joesley quem presidia a empresa e ditava os rumos estratégicos, o irmão do meio, Wesley Batista, liderava as operações. De todos, é o que mais conhece como funciona o dia a dia do frigorífico. É lenda no setor que, quando visita uma unidade, chega a verificar se o funcionário responsável por desossar o boi desperdiçou carne ou aproveitou tudo o que podia. “O Wesley é focado, entende do negócio. Quem se mudou para os EUA para fazer a integração das empresas compradas? Foi o Wesley. É o irmão mais pé no chão”, descreveu um ex-executivo do BNDES.
“O Joesley é o mais mundano dos irmãos”, disse um banqueiro acostumado a fazer negócios com a família. “Quem se deslumbrou com o poder foi o Joesley, porque o Wesley ficou nos EUA por anos e não teve essa vivência. Como acontece com todo novo-rico, Joesley passou a ter acesso a políticos cada vez mais graduados.”
EXPANSÃO INTERNACIONAL
Em 2005, o Friboi rompeu mais uma vez os padrões dos frigoríficos brasileiros. Por cerca de US$ 85 milhões, adquiriu a tradicional indústria argentina Swift Armour e, pela primeira vez, cruzou a fronteira do país para produzir no exterior. Contou, para tanto, com empréstimo do BNDES.
Em outras aquisições relevantes que o grupo viria a fechar no exterior, também teria apoio do banco, mas não mais na forma de empréstimo, só por aporte de capital da BNDESPar, que, assim, se tornava sócia do negócio. Em sua delação, Joesley revelou que, antes de recorrer ao BNDES pela primeira vez, foi apresentado a Victor Sandri, amigo do então ministro do Planejamento Guido Mantega. Quando Mantega assumiu o BNDES no fim de 2004, Sandri agendou reunião de Joesley com todos da diretoria do banco. “Foi nesse contexto que fizemos a primeira abordagem ao BNDES sobre a possibilidade de internacionalizar a empresa”, narrou Joesley. Ele apresentou opções de aquisição no exterior. “Foi marcante que muitos vicepresidentes ficaram incrédulos”, relatou, mas Mantega teria dado sinalização “bastante positiva” de que o plano interessava ao governo.
“Tenho um negócio, não sou petista nem nada, mas os caras querem um campeão nacional e ofereci a eles”, disse Joesley, na época, a um interlocutor. O Friboi sustentava que seus planos no exterior fariam o Brasil relevante na cadeia global de valor de carnes. Sem contar que, não fosse o Friboi, uma empresa americana fatalmente compraria a Swift na Argentina, podendo, a partir daí, expandir-se por toda a América Latina, advertiu na consulta enviada ao BNDES.
O crédito para comprar a Swift argentina foi estruturado às pressas. “Não fosse a proximidade do Guido, não teria saído. Foi pela pressa que saiu caro, cinco anos e tudo. Era o que tinha”, disse Joesley aos procuradores.
Quando chegou ao BNDES, o Friboi já era o maior frigorífico do país. Em 2005, abatia 15 mil bois ao dia e faturava R$ 4 bilhões. Os Batista haviam arrumado a casa, formalizado o faturamento e apresentavam três anos de balanço auditado e sem ressalvas, o que os habilitava a tomar recursos em bancos de primeira linha. Por si só, o porte da empresa e o projeto que apresentava justificavam o engajamento do banco oficial na empreitada. Mas Joesley assegurou aos procuradores que já nesse financiamento pagou a Vic Sandri comissão de 4%, algo que se repetiria em todas as outras operações com o BNDES, segundo seu relato.
A compra da Swift pelo Friboi aumentou a exposição da companhia, e também as críticas e, em certa medida, o despeito de concorrentes. A vontade de Júnior Friboi de se candidatar ao governo goiano pelo PSDB nas eleições do ano de 2006 só ampliava o número de desafetos. Foi nesse contexto que, em 27 de novembro de 2005, uma semana após anunciar a intenção de sua candidatura, Júnior Friboi se viu em maus lençóis. “Nós, o Bertin, o Independência... os três põe o preço do boi em tudo quanto é Estado. Mato Grosso nós peita... Nós sozinho regulou o preço. Estamos fazendo o preço do Mato Grosso, e os outro acompanha”, gabava-se Júnior Friboi, sem saber que estava sendo gravado.
A aquisição da Swift argentina também estreitou os laços do Friboi com o americano J.P. Morgan, que geria fundos que tinham fatia minoritária na companhia argentina. Embora a JBS tivesse passado o ano de 2006 em negociações para a entrada do BNDES como sócio, a executiva do J.P. Morgan Patrícia de Moraes convenceu a empresa de que seria vantajoso listar as ações na bolsa paulista. Naquele momento o mercado de capitais no Brasil vivia o ápice da euforia. Os bancos disseram que os investidores pagariam o dobro do que o BNDES se dispunha a pagar pelas ações e a JBS optou pela Bovespa.
“Foi o maior IPO do Brasil até aquela data”, lembrou Sérgio Longo, à frente da operação como diretor financeiro. Em março de 2007, a JBS levantou R$ 1,6 bilhão em troca de 23,8% de suas ações, sendo avaliada em R$ 6,8 bilhões. Ainda naquele mesmo ano, que até hoje registra o recorde de aberturas de capital no Brasil, a operação seria superada, em volume captado, por Redecard, BM&F e Bovespa. Quando a JBS chegou à bolsa, os investidores estrangeiros demonstraram interesse reduzido e as ações saíram por menos do que a companhia almejava e ainda caíram no dia da estreia. Ainda assim, o Friboi dos Batista valia mais que Sadia e Perdigão, cada uma cotada em torno de R$ 4 bilhões. “Eles mudaram de liga. Deixaram de ser um açougue e passaram à primeira divisão”, sintetizou uma pessoa que participou do processo. De quebra, a família Batista ainda embolsou R$ 400 milhões com a parcela secundária da oferta, o que teria sido impossível num aporte do BNDES.
Pouco tempo depois, o J.P. Morgan bateu à porta da JBS outra vez. Colosso americano, a Swift estava à venda e o banco ficara encarregado de encontrar um comprador. Como os recursos do IPO não seriam suficientes para bancar um passo tão ousado, retomou-se o plano de ter o BNDES como sócio.
A RELAÇÃO COM O BNDES
Naquele momento, num BNDES mais desenvolvimentista que o atual, alimentava-se a teoria, que tinha a Gerdau como modelo, de que era preciso fomentar a internacionalização das empresas brasileiras. A base teórica já existia dentro do banco desde antes do governo Lula, mas ganhou força após sua eleição.
O apoio a processos de fusão e aquisição no exterior fugia do papel mais clássico do banco, que era de financiar a formação bruta de capital fixo dentro do Brasil, mas havia a leitura de que empresas multinacionais têm acesso a mercados mais competitivos e que existe transferência de conhecimento e de melhores práticas também para a gestão das companhias nacionais.
O caminho natural era realizar essas operações por meio da BNDESPar, pois, assim, o banco beneficiaria empresas, mas também poderia participar do desejado retorno positivo do investimento. Entre os setores que o banco listava como tendo diferenciais competitivos em termos globais, estavam os de papel e celulose, mineração e siderurgia, óleo e gás e alimentos. Desses, a BNDESPar só não apoiava de forma relevante o último.
Ao mesmo tempo, o governo lançava a política industrial batizada de Política de Desenvolvimento Produtivo, que colocaria o setor de proteína animal como um dos principais a serem apoiados, de forma a torná- lo o grande exportador do Agronegócio brasileiro.
A equipe do BNDES entendia que seu papel não era questionar a política definida por um governo legitimamente eleito, mas executá-la. E foi assim que JBS e outras grandes empresas do setor passaram a ser candidatas diretas a receber aportes do governo para seu programa de crescimento e internacionalização. Entre 2007 e 2012, a BNDESPar deu apoio financeiro de R$ 12,4 bilhões a cinco empresas do setor. Além da JBS, foram beneficiados Bertin, Marfrig, BRF e Independência. Aos olhos do BNDES, as empresas tinham características distintas. O Bertin tinha como marca a diversidade, pois usava tudo do boi. Além da carne, produzia sabonete, biodiesel, colágeno, farinha de osso e até fabricava latas onde vendia “corned beef”, carne enlatada que faz sucesso nos EUA.
A Marfrig tinha origem no “foodservice”, vendendo carne diretamente para restaurantes e churrascarias, e resolveu se verticalizar comprando frigoríficos quando percebeu que seus fornecedores tentavam cortar uma etapa da cadeia e vender diretamente a seus clientes. Tinha margem maior, mas essa característica lhe exigia mais capital de giro e implicava em ciclo mais longo para geração de caixa.
O Independência, acreditava o BNDES, era a referência em governança e teria a melhor percepção do mercado. Tinha site de relações com investidores mesmo antes de abrir o capital, remunerava melhor os fornecedores que tinham práticas sustentáveis, possuía certificações do tipo ISO e ostentava margens mais altas que os concorrentes. No futuro, o banco alegaria que havia fraudes contábeis. Quando o Independência quebrou em 2012, anos após receber aporte de capital do banco estatal, foi comprado por ninguém menos que JBS. “O JBS salvou a pele do BNDES”, disse o ex-presidente de um frigorífico concorrente.
A JBS era vista como empresa de alta produtividade, que funcionava como um relógio no que fazia, mas que tinha o negócio focado em vender carne in natura, sem valor agregado.
Em junho de 2007, pouco depois do IPO, a BNDESPar concordou em apoiar a aquisição da Swift nos EUA, por US$ 1,5 bilhão — incluindo assunção de dívidas. E aportou R$ 1,14 bilhão em aumento de capital privado com preço por ação estabelecido em R$ 8,15 – baseado na média dos 30 pregões anteriores, mais ágio de R$ 0,50. Mas não entrou sozinho. Os controladores colocaram R$ 303 milhões e investidores privados, que tinham acabado de injetar dinheiro no IPO, acompanharam maciçamente a operação e aplicaram mais R$ 414 milhões, mantendo sua fatia no capital.
Maior especialista em operação de frigoríficos na família, Wesley mudou-se para Greeley, no Estado americano do Colorado. Nos EUA, demitiu dezenas de diretores da Swift e reorganizou o negócio. Em mais de uma ocasião, Wesley ressaltou que a Swift precisava de um choque. Conhecidos pela alta produtividade de seus negócios, os Batista conseguiram, em menos de um ano, reverter o resultado negativo que a Swift exibia, o que os animava a repetir a dose.
Wesley tomou pé da situação da indústria americana, que estava em frangalhos. Assolados por má gestão e sobretudo pela crise financeira que se acentuaria com a quebra do Lehman Brothers, os frigoríficos americanos se tornaram alvo do assédio brasileiro. Reforçados pelo BNDES e pelo real apreciado, JBS e rivais como a Marfrig foram às compras.
Se a compra da Swift deu à JBS a posição de terceiro maior produtor de carne dos EUA, a aquisição da Smithfield Beef e da National Beef a colocaria em primeiro lugar no ranking americano, com mais de 30% da capacidade de abate naquele país. E foi para financiar esse salto nos EUA e também a compra da Tasman Group, na Austrália, que a JBS chamou novamente o BNDES no início de 2008.
Desta vez, como suas ações não estavam nos melhores dias, a JBS informou que fixou o preço de emissão dos papéis em R$ 7,07 por ação, com base na média dos últimos 120 dias de pregão, período bem acima do usual, com cotação 10% acima daquela observada no dia do anúncio do negócio. Os R$ 7,07 também estavam 33% acima da cotação média dos últimos 30 dias, parâmetro que costuma ser usado nesse tipo de operação. O plano era captar R$ 2,55 bilhões. O banco justifica que seu parâmetro nessas operações de compra de participação não é a cotação da empresa em bolsa (que é observada), mas, sim, fluxo de caixa descontado, que é o parâmetro mais usado por investidores de longo prazo como a BNDESPar, e já considerando os efeitos da aquisição que seria feita com o dinheiro captado.
Apesar do preço salgado, de novo o BNDES não entrou sozinho. A maior parte dos investidores privados acompanhou o aumento de capital e aportou mais R$ 520 milhões na JBS. O banco investiu R$ 336 milhões diretamente e mais R$ 661 milhões via um fundo de participações criado especialmente para a transação. Segundo Joesley em depoimento aos procuradores, Luciano Coutinho, presidente do banco, considerou o investimento alto demais e sugeriu que se chamasse os fundos de pensão das estatais a participar.
José Cláudio Rego Aranha, então chefe de mercado de capitais do BNDES, procurou a Angra Partners e solicitou a criação do FIP Prot, de proteína. A Angra já havia trabalhado com o banco e com Previ (Banco do Brasil) e Funcef (Caixa) na reestruturação financeira e venda da Brasil Ferrovias para a América Latina Logística entre 2005 e 2006. A ideia era atrair Previ, Funcef e Petros (Petrobras) para a JBS. “A Previ declinou”, disse Joesley.
RETORNO DO BNDES COM INVESTIMENTOS NA JBS
Uma pessoa próxima à Previ na época diz que o fundo conseguiu segurar a pressão do governo para entrar na JBS alegando que já estava muito maduro do ponto de vista atuarial, com elevado percentual de renda variável em carteira, além de já estar exposto ao setor por meio da BRF. “Seguraram a pressão com base nas políticas internas bem construídas”, disse esse executivo. Anos depois, novamente a Previ seria o único dos três fundos a ficar de fora do aporte na Eldorado Celulose, da família Batista. “A avaliação que se fazia da Eldorado é que estava inflada do ponto de vista do preço da celulose e volume de produção”, relatou uma pessoa com participação no episódio. O investimento de Petros e Funcef na Eldorado, por meio do FIP Florestal é investigado pela Operação Greenfield da Polícia Federal.
Aos procuradores, Joesley relatou que pagou propina aos dirigentes das duas fundações. “Guido era o coordenador dos fundos Funcef e Petros”, disse, completando que nas operações envolvendo as fundações, 1% ia para os dirigentes delas, 1% para o PT, por meio de João Vaccari Neto, e 1% ele creditava na chamada “conta mãe” de Guido Mantega. “Eu conheci os dirigentes dos fundos nessa operação (Prot)”, disse. O empresário afirmou não se recordar se já nesse aporte houve pagamento aos dirigentes Wagner Pinheiro, da Petros, e Guilherme Lacerda, da Funcef. “Com certeza no próximo negócio em diante começou.”
No FIP Prot, a BNDESPar ficou com 45% das cotas — cabendo a parcela restante, de R$ 790 milhões, aos fundos de pensão Petros e Funcef. A J&F entrou com R$ 252 milhões.
BERTIN, UM PROBLEMA
Na JBS, se dependesse apenas do BNDES, os aportes se resumiram aos R$ 2,2 bilhões alocados para impulsionar a internacionalização da JBS, compatíveis com o apoio dado ou previsto para outras empresas do mesmo setor. Mas dois fatores motivariam um terceiro aporte na empresa, elevando o compromisso total aos conhecidos R$ 8,1 bilhões — cifra que inclui R$ 2,5 bilhões originalmente investidos no Bertin.
O de menor peso foi o fato de o Departamento de Justiça americano ter barrado a compra da National Beef, citando problemas concorrenciais. Como a injeção de capital de 2008 tinha como um dos destinos a compra também dessa empresa, o banco poderia ter pedido parte do dinheiro de volta, conforme opção de venda prevista em contrato. Mas havia outras empresas baratas disponíveis por causa da crise do subprime nos EUA, e o BNDES aceitou adiar para 2010 a validade da opção de venda, dando mais prazo para a JBS fazer uma aquisição que se encaixasse no racional econômico da National Beef.
No fim de 2009, a produtora de frangos Pilgrim’s Pride, em processo de recuperação judicial, surgiu no radar. Diversificar as operações pelos quatro cantos do planeta era o jeito de diluir riscos sanitários e geográficos. Se o Brasil sofria restrições internacionais devido ao status de risco de febre aftosa, a Austrália e os EUA estavam livres. Se consumo de carne bovina patina, por que não produzir frangos? A entrada em alimentos processados com marca, mais adiante, seguiria a mesma lógica.
O capítulo Pilgrim’s retrata algo que fica claro nos relatos de concorrentes e parceiros da JBS: a falta de ousadia de outras empresas nacionais deixou o caminho aberto para que os Batista avançassem internacionalmente. Quando a processadora de frangos americana entrou em apuros, Luciano Coutinho chegou a incentivar Nildemar Secches, da Perdigão, a fazer a aquisição. Mas ouviu como resposta que a empresa não daria conta de aventurar-se no exterior ao mesmo tempo em que fazia a fusão com a Sadia, que havia quebrado por conta de apostas pesadas em derivativos cambiais em 2008.
A compra da Pilgrim’s sairia mais cara que a da National Beef para a JBS, o que talvez justificasse o complemento ao aporte feito em 2008, para reforçar a estrutura de capital, ainda que a empresa não fosse extrapolar limite de indicador financeiro previsto em contratos de financiamento se fizesse apenas essa aquisição. Mas o que realmente motivou o BNDES a fazer o terceiro aporte foi o fato de a JBS, em paralelo à compra da Pilgrim’s, negociar a fusão com a brasileira Bertin. Ao se juntar com o antigo concorrente, a JBS minimizava o risco de que o BNDES tivesse que reconhecer perda com o investimento de R$ 2,5 bilhões na compra de 27,1% das ações do Bertin em 2008.
Pouco depois do aporte do banco, o Bertin começou a apresentar resultados negativos, atribuídos a perdas com derivativos, mas, principalmente, à restrição de crédito e perda de foco da administração, uma vez que os controladores tinham investido em diferentes projetos de infraestrutura, notadamente em energia.
Embora funcionários do BNDES tenham alegado que havia alternativas para salvar o investimento no Bertin, que não a associação com a JBS, a proposta da família Batista, de R$ 10 bilhões pelo capital — praticamente a mesma avaliação feita pelo banco um ano antes —, era muito superior aos R$ 4 bilhões que a Marfrig oferecia. Outra vez, a JBS compraria um grande frigorífico tirando das costas do BNDES o ônus que sua quebra lhe acarretaria. “A relação com o BNDES se solidifica com o Bertin. As compras no exterior foram mérito dos Batista e, até então, havia vários campeões do setor”, pontuou o executivo de um banco.
O que até hoje suscita dúvidas é o que levou à avaliação por preço tão alto de uma empresa com percepção de risco grande, a despeito das razões estratégicas e ganhos de sinergia que a JBS pudesse alegar para fechar o negócio do Bertin. Havia ainda o mistério sobre a acionista Blessed, uma offshore cujo beneficiário final nunca foi conhecido e que surgiu na estrutura societária da empresa logo após a fusão. Esses ingredientes alimentaram a suspeita de fraude na transação, como alega a Receita Federal.
“Numa operação de fusão com troca de ações, é comum que avaliações sejam infladas, porque isso cria uma companhia resultante com maior valor de mercado”, diz um executivo que participou da fusão entre JBS e Bertin. Outro executivo diz que, posteriormente, houve um ajuste de preços. “A JBS encontrou mais esqueletos do que imaginava e, por isso, os Batista compraram o restante das ações dos Bertin por preço mais baixo, irrisório”, relatou. “Os Bertin ficaram com 42% da holding de controle e sem cláusula de saída. Ficaram reféns dos Batista”, narrou executivo próximo aos Bertin.
Tomando essa versão como base, teria havido prejuízo aos minoritários da JBS, que não se beneficiaram do ajuste posterior. Ao considerar um valor mais alto para o ativo, porém, também foi originado um maior ágio na incorporação, com benefícios fiscais igualmente partilhados pelos minoritários.
Quanto à Blessed, que foi objeto de briga entre as duas famílias, duas pessoas com conhecimento do assunto dizem que foi criada para que parte do pagamento aos Bertin pudesse ser feita com dinheiro não declarado que os Batista mantinham no exterior. Na largada, a Blessed reproduziria a mesma composição acionária da holding de controle das duas famílias no Brasil, a FB Participações. Posteriormente, os Batista também teriam comprado as ações restantes. Reforça a tese o fato de Wesley e Joesley terem declarado a compra das ações da Blessed em 31 de outubro de 2016, último dia do programa de anistia promovido pelo governo para regularização de recursos não declarados no exterior.
Oficialmente para sustentar a compra da Pilgrim’s, mas também para dar fôlego financeiro para a JBS assumir a Bertin, o BNDES acabou fazendo o terceiro aporte, de US$ 2 bilhões (ou R$ 3,4 bilhões, na época), em dezembro de 2009. Mas dessa vez não houve aumento de capital tradicional — e nem a participação de investidores minoritários privados, que não precisavam se desfazer do problema Bertin.
O instrumento usado foi uma debênture mandatoriamente conversível em ações. A primeira opção prevista era a conversão em ações da JBS USA, que deveria abrir o capital até dezembro de 2010. Caso isso não ocorresse, a JBS pagaria uma espécie de multa de 15% sobre o valor aportado, e ganharia mais um ano para fazer o IPO da unidade americana. Em duas hipóteses a conversão seria na JBS S.A., no Brasil: se a multa não fosse paga ou se, após dois anos, no fim de 2011, não tivesse havido a abertura de capital da subsidiária dos EUA.
“Quem se mudou para os EUA para fazer a integração das empresas? O Wesley, o irmão mais pé no chão”, disse um ex-executivo do BNDES
Poucos meses depois, já em maio de 2010, a JBS indicava que não levaria adiante o plano do IPO da JBS USA, tendo optado por fazer nova chamada de capital — desta vez por oferta pública de ações, subscrita totalmente por investidores de mercado, sem participação do BNDES, em que captou mais R$ 1,6 bilhão. E, de fato, a abertura de capital não ocorreu nos EUA, o que levou a um momento de estresse na relação entre os irmãos Batista e o BNDES.
Em dezembro de 2010, Joesley não queria pagar a multa de R$ 522 milhões. Conforme relatos, Coutinho foi firme em defender a posição da área técnica de que não havia negociação. Sem a multa paga, o BNDES converteria as debêntures em ações da JBS no Brasil.
Joesley saiu da reunião sem confirmar que iria pagar. No dia 26 de dezembro, a companhia divulgou fato relevante com duas informações. A primeira dizia que a empresa havia iniciado o pagamento dos prêmios aos debenturistas na antevéspera do Natal. A segunda dava conta de que havia negociação avançada para substituir as debêntures por outra, no valor de R$ 4 bilhões, com prazo de cinco anos, juros de 8,5% ao ano e preço de conversão de R$ 9,50 por ação ao fim do período.
Mas o “estágio avançado” de negociação citado pela JBS, segundo pessoas próximas da transação, não era tão avançado assim. Tanto que a saída encontrada foi outra, por meio de aumento de capital em que as debêntures puderam ser usadas para subscrição, a um preço de R$ 7,04 por papel, em maio de 2011.
Esta teria sido a primeira de duas vezes que a JBS tentou usar o mercado para fazer valer uma posição sua não totalmente negociada com o BNDES. A segunda foi no anúncio do plano de transferir a sede da empresa para a Irlanda, no ano passado, que também acabou sendo frustrada pelo acionista estatal. A reorganização societária, que previa ainda a instalação de domicílio fiscal no Reino Unido e a migração dos negócios com as ações para a bolsa americana, foi informada ao mercado, e muito bem recebida, em maio de 2016. Mas não havia sido combinada com a BNDESPar, que tinha direito de veto.
Embora a administração da empresa se esforçasse para destacar a redução de custo de capital que a mudança de sede traria para o grupo, o impacto fiscal da reestruturação, desenhada pela PwC, também seria relevante. Bom para a empresa, mas ruim para a arrecadação no Brasil. Além disso, o papel do banco de fomento de desenvolver o mercado de capitais brasileiro poderia ser questionado se a liquidez com as ações da “campeã nacional” deixasse o mercado local.
Mais uma vez, Joesley teria usado sua proximidade com o poder para influenciar a decisão. Na conversa gravada com Michel Temer (PMDB) no Palácio do Jaburu na noite de 7 de março, o empresário diz ao presidente que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB) havia lhe relatado “todo empenho e esforço” sobre “aquela operação” que envolvia o BNDES. E Temer retruca dizendo que ele, pessoalmente, havia tratado do assunto com a então presidente do banco, Maria Silvia Bastos Marques. O banco confirma o encontro de Temer com a executiva para tratar do assunto em 24 de outubro. Mas nega que o presidente tenha solicitado que a diretoria alterasse sua decisão.
Naquele dia 24, contudo, apenas BNDES e JBS sabiam da posição do banco. Dois dias depois do encontro a companhia divulgou fato relevante expondo a oposição do banco à transação. Para uma fonte, a mera existência da reunião com Temer seria uma forma de pressão. Conforme agenda oficial de Maria Silvia, aquele foi o segundo encontro com o presidente da República desde a posse dela em junho de 2016, o que seria indicativo de que não era praxe o chefe do Executivo se envolver diretamente em decisões da BNDESPar.
Após a família Batista ser contrariada, a saída anunciada no início de dezembro, com apoio do BNDES, foi a listagem de ações da subsidiária JBS Foods International, nos EUA. Mas mantendo a sede da JBS S.A. no Brasil e suas ações na bolsa brasileira B3. “Não deu de um jeito, mas deu do outro, tá e pronto, deu certo”, afirmou Joesley a Temer no Jaburu.
À PGR, Joesley revelou que pagou propinas de US$ 150 milhões referentes a contratos no BNDES, a maior parte para internacionalização da JBS. Não fossem as declarações do próprio empresário atestando que a liberação de recursos foram acompanhadas de pagamentos a Mantega, muitos custariam a acreditar, apesar dos questionamentos levantados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e que embasaram a Operação Bullish. Deflagrada pela PF poucos dias antes de a delação dos Batista ser conhecida, a operação investiga aportes do banco no grupo.
À PGR, Joesley disse ter certeza de que os pagamentos a Mantega foram fundamentais para aprovar os aportes, e ao mesmo tempo procurou isentar de irregularidades Luciano Coutinho, que assumiu a presidência do BNDES em maio de 2007, e o corpo técnico do banco. O empresário relatou sempre ter recebido um tratamento duro da área técnica e também de Coutinho. Pessoas com conhecimento do assunto relatam ter ocorrido ao menos uma reunião em que Mantega convocou Coutinho para conversar e o surpreendeu com a presença de Joesley. Teria sido tentativa de pressionar o presidente do BNDES. O empresário menciona o encontro no depoimento, dizendo que Coutinho ficou “claramente constrangido”.
Em recente entrevista à revista “Época”, Joesley disse: “Era só o Guido dizer no BNDES que não era mais do interesse do governo investir no Agronegócio. Pronto. Bastava a mudança de diretriz de governo para acabar com o nosso negócio. O trabalho técnico pode fazer todo sentido, mas vai por água abaixo se não houver diretriz de governo”, afirmou.
Haveria ainda uma segunda possibilidade de pagamento de propina para liberação de recursos sem que a direção e o corpo técnico do banco tivessem conhecimento. Quando operadores, ou “vendedores de vento” se colocam no papel de consultores ou assessores que ajudariam na captação de recursos do banco. Esse teria sido o papel de Vic Sandri, o amigo de Mantega.
Depois que os projetos que dão entrada no BNDES em busca de crédito ou capital passam por todo o périplo técnico padronizado e chegam à diretoria para aprovação, pode acontecer de serem retirados temporariamente de pauta, caso haja dúvidas por parte dos diretores. Em tese, tal procedimento poderia abrir espaço para que pressões exercidas sobre a direção do banco surtissem algum efeito prático. Segundo Joesley, essa era a lógica que imperava na Caixa,quando o grupo J&F buscava empréstimos ou aportes do FIFGTS. O operador Lúcio Funaro, ligado a Eduardo Cunha e ao vice-presidente da Caixa Fábio Cleto, indicado por Cunha, cobrava comissão para que os projetos não fossem retirados de pauta. O mesmo se dava com Odebrecht.
Segundo Luciano Coutinho, essa fragilidade de procedimentos não ocorre no BNDES, onde um projeto só pode ser retirado de pauta em decisão colegiada e se técnicos convocados não conseguirem sanar dúvidas. Assim, não há condições objetivas para que pressões externas sobre participantes do colegiado alterem propostas técnicas que envolvem dezenas de pessoas.
A sociedade com o BNDES conferiu credibilidade aos negócios dos Batista e levou outros investidores a ampliarem sua aposta na empresa. O J. P. Morgan cumpriu papel semelhante. Entre 2005 e 2012, esteve na maioria das operações da JBS: emissão de bônus no exterior, no IPO, na compra da Smithfield Beef nos EUA, na fusão com o Bertin e também na operação de troca de ações da Vigor pela JBS, em 2012. Em algumas operações o banco fracassou, como a tentativa de aquisição da americana Sara Lee, em 2011.
A JBS arrendou um frigorífico e não o abriu até o fim do arrendamento para regular a oferta de boi para a unidade de Alta Floresta, diz Navarro
O J.P. Morgan chegou a ter exposição de quase US$ 1 bilhão em empréstimos à JBS na fase áurea do relacionamento com a empresa, e os Batista, grandes empresários também nos EUA, mantiveram relacionamento direto com o CEO global do banco, Jamie Dimon. Mas a relação estremeceu quando a Hillshire Brands, dos EUA, foi colocada à venda em 2014. A JBS participou do processo por meio da controlada Pilgrim’s, mas o J.P. Morgan escolheu assessorar a rival Tyson Foods, que acabou fechando a aquisição. Enquanto a JBS só queria dar ao banco a estruturação do financiamento, a Tyson topou contratar o financiamento e a assessoria financeira, assegurando receita maior ao J.P. Morgan. A partir daí, houve um afastamento, inclusive com redução das linhas de crédito.
Mais recentemente, Patrícia de Moraes vinha tentando comprar a Vigor, colocada à venda pelos Batista, para a americana Pepsico. O registro de ligações do celular de Joesley, anexado à delação premiada do executivo, indicou dezenas de comunicações com a banqueira.
Desde a delação dos irmãos Batista, o clima no J.P. Morgan ficou tenso e o banco abriu investigação para se certificar de os negócios e procedimentos foram realizados segundo as regras de conformidade adotadas pela instituição. “O banco está paranoico, porque se assustou com o tamanho do problema”, disse uma fonte a par do assunto.
BRASÍLIA DE NOVO
Em 10 de dezembro de 2014, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou por unanimidade, porém com ressalvas, as contas da campanha de Dilma Rousseff. Ao declarar o resultado, o então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, criticou o alto custo das campanhas. “Só nas campanhas de Dilma e Aécio foram gastos R$ 573 milhões”, disse. Sem citar nomes, afirmou que “não pode ser aceito como normal” uma empresa que tem empréstimos de bancos públicos, como o BNDES, doe R$ 353 milhões para candidatos de diferentes partidos. “Isso é abuso de poder econômico. É uma tentativa de compra do Parlamento”, afirmou, em clara referência à JBS.
O discurso revelou-se profético. Dois anos depois, em 2017, as delações trariam à luz propinas de R$ 1 bilhão. Segundo o ex-diretor de relações institucionais da J&F, Ricardo Saud, as doações beneficiaram 1.829 candidatos de 28 partidos. A empresa elegeu 167 deputados federais de 19 legendas, além de ter contribuído para a vitória de 28 senadores e 16 governadores.
A partir do segundo mandato de Lula, suas relações com o PMDB se estreitaram. E o grande agente dessa aproximação foi Saud. Ele ficou conhecido nacionalmente como “o homem da mala da JBS”, depois das imagens gravadas pela Polícia Federal que o mostraram levando mala com R$ 500 mil ao deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). Segundo as gravações apresentadas por Joesley à PGR, Loures teria sido indicado por Temer como seu emissário. Braço direito de Joesley em Brasília, Saud foi diretor do Departamento de Cooperativismo e Associativismo (Denacoop) do Ministério da Agricultura durante a gestão de Wagner Rossi, de janeiro a agosto de 2011. Entre 1999 e 2000, Rossi esteve à frente da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), antigo feudo do atual presidente da República. Além disso, é pai do deputado Baleia Rossi (SP), atual líder do PMDB na Câmara. Na delação, Joesley afirmou ter sido apresentado a Temer por Rossi ainda ministro, em 2010. O PMDB comanda a Agricultura desde 2007.
A parceria PMDB-JBS no Ministério da Agricultura prosseguiu no governo Dilma. Joesley revelou que ele, Cunha e seu operador, Lúcio Funaro, intermediaram a nomeação do advogado Rodrigo Figueiredo para o posto de secretário de Defesa Agropecuária em 2013. Segundo Joesley, Figueiredo assinou “atos de ofício” que favoreciam a J&F e renderam propinas de R$ 7 milhões a Funaro e Cunha.
Joesley, por sua vez, “utilizava os cargos para provocar desgaste na fiscalização”, relatou uma fonte. “Para fortalecer os interesses dele, Joesley não utilizava políticos do Congresso. Utilizava a Casa Civil, o ministro da Agricultura. Coisas diretas”, diz a mesma pessoa. “Os Batista sempre acharam que parlamentar e nada era a mesma coisa. Só financiaram porque alguém falou para financiar. Alguém quem? Eduardo Cunha, Temer, Lula, Dilma...”
O esquema no Ministério da Agricultura foi interrompido com a nomeação de Kátia Abreu como titular da pasta. Joesley fez forte lobby junto ao então ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, para que a presidente não a nomeasse. Em vão: Kátia demitiu Figueiredo na primeira semana como ministra.
Joesley contou ter pago R$ 30 milhões a Cunha, principal agente do impeachment, para comprar deputados em sua eleição à Presidência da Câmara. Mas a crise econômica e a avalanche provocada pelos desdobramentos da Lava-Jato acabaram por desfazer a parceria dos Batista com a “Orcrim da Câmara”.
As doações da JBS, superiores a de bancos e construtoras, chamou atenção nas eleições de 2014. A situação exigia mudança. Na JBS, a avaliação era que, depois de tantos erros do passado, Wesley tentou zerar o jogo. Mas esbarrou em Joesley. Em agosto de 2014, a JBS anunciou a contratação de Wilson Mello Neto, egresso de Wal-Mart e BRF, para o cargo de diretor de relações institucionais. Nos poucos meses em que ficou na empresa, o executivo falou em alterar o modo como doava recursos a políticos. “Não podemos doar tão mais que o Bradesco e precisamos doar com critério técnico”, defendeu. Mas seus planos não prosperariam.
No relacionamento da empresa com os governos, Mello passou a “bater cabeça” com Ricardo Saud. “Ele ia ao ministério e o Ricardinho já tinha abordado o tema. O contrário também acontecia”, disse uma pessoa. Mello tentou emplacar projetos que aprimorassem a governança, mas sempre esbarravam em Joesley. Mello procurou Wesley e afirmou que não poderia seguir daquele modo e deixou a empresa. “Imagina se o Joesley ia abrir mão? Era tirar 90% do poder do Ricardinho”, disse a fonte.
Outro caso intrigante foi o de Marcel Fonseca, da GE Healthcare, contratado em 2015 para estruturar a área de compliance da JBS. A empresa anunciou com pompa a chegada do executivo, quando a Lava-Jato já tangenciava seus negócios. Fonseca ficou apenas um ano na JBS. Sua saída, alegadamente por razões pessoais, não foi anunciada e tampouco um substituto foi contratado. A área só voltou a ter chefe após as delações, com a chegada de Marcelo Proença.
CONCENTRAÇÃO E DIVERSIFICAÇÃO
Aos poucos, a JBS constituiu plataforma que fazia inveja nos concorrentes. No auge, antes das delações, em 2016, as vendas da companhia ultrapassaram R$ 170 bilhões, o maior faturamento de empresa não financeira de capital brasileiro. Líder na Austrália e uma das três maiores dos EUA, a JBS também estabeleceu uma base no Reino Unido, de onde pretendia construir o maior negócio de carnes do Velho Continente.
A concentração de mercado em suas mãos provocou incômodos. No início de 2012, o setor de carne bovina estava em polvorosa. A cada semana, nova ofensiva da JBS. Arrendamentos e aquisições de frigoríficos de carne bovina em série. Incomodados com a situação, os pecuaristas decidiram agir. Na Câmara dos Deputados, Ronaldo Caiado (DEM-GO) chamou a atenção para o processo de concentração: estava em formação um oligopsônio.
Como fez nos 90 com os frigoríficos de carne bovina, a JBS avançou sobre escombros. Em 2012, adquiriu a Doux Frangosul no RS
“Pagam o aluguel do frigorífico para manter fechado”, disse José Evandro Navarro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Frigoríficas do Portal da Amazônia, região norte de Mato Grosso. Neste ano, o relatório final da CPI dos Frigoríficos da Assembleia de Mato Grosso chamou atenção para a concentração de mercado. Considerando os abatedouros abertos e fechados, a JBS controla mais de 50% da capacidade de abate de bovinos no Estado.
Segundo Navarro, a JBS arrendou um frigorífico em Nova Monte Verde (MT) em 2012 e nunca o abriu até setembro do ano passado, quando o arrendamento foi encerrado. Com isso, conseguia regular a oferta de boi para o frigorífico de Alta Floresta, criticou.
Entre os pecuaristas, o Cade é o alvo preferencial de críticas por permitir a concentração. “O Cade falhou e o tempo cobrou”, lamentou o diretor-executivo da Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), Luciano Vacari, ressaltando que os pecuaristas do Estado agora sentem os reflexos da falta de opções de frigoríficos.
Para um executivo da indústria, o erro do Cade está calcado em uma teoria que já foi esposada por conselheiros do órgão. Em 2011, o conselheiro Ricardo Ruiz impôs a venda de fábricas e marcas como condição para o aval à união da Sadia e Perdigão, que deu origem à BRF. A venda serviria para reestabelecer o “duopólio virtuoso” que havia quando Sadia e Perdigão concorriam, argumentou Ruiz. “Acredito que em bovinos também pensaram nisso, mas a JBS foi muito mais rápida que os concorrentes e, ao invés de um duopólio, temos um monopólio”, disse.
O peso da agressividade e determinação do grupo foi sentido pelos concorrentes no setor de aves. “Vi o movimento deles crescendo no boi e tive a certeza de que iam entrar no frango. Quando eles compraram a Pilgrim’s, imaginei que fossem gostar do brinquedo e vir para o Brasil também.” Assim o presidente do conselho de administração da mineira Pif Paf, Luis Carlos Costa, recorda o processo de diversificação de proteínas da JBS, da carne bovina para a área de frango e alimentos com marca.
Em meados de 2012, Wesley sinalizou que a hora de mexer também com frango no Brasil chegara. Ao Valor, afirmou que poderia concorrer, de igual para igual, com a líder BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão, e também com a Seara, controlada pela Marfrig.
Para um setor assolado pela severa estiagem que atingira os EUA, fazendo o preço do milho bater recorde, a chegada de um competidor capitalizado era uma “bênção”, lembrou uma pessoa da área. Líder, a BRF estava impedida pelo Cade de fazer aquisições. Endividada, a Marfrig também não tinha muito fôlego.
Assim como fez na década de 90 com os frigoríficos de carne bovina, a JBS avançou sobre escombros. A primeira aquisição na área de frango aconteceu no primeiro semestre de 2012, com a compra das operações da Doux Frangosul no Rio Grande do Sul. De origem francesa, o grupo estava quebrado e já tinha dificuldades para fornecer ração para o frango dos produtores. “Os integrados estavam desesperados. Foi um milagre para integrados e para os funcionários”, lembrou um executivo.
Em 2013, o tamanho das aspirações da JBS no segmento de aves e suínos ficaria claro. Em fevereiro daquele ano, anunciou a contratação de Gilberto Tomazoni, ex-presidente da Sadia. Já se sabia que a alavancada Marfrig poderia ter de abrir mão da Seara. E para concorrer com Sadia e Perdigão como desejavam, os Batista precisavam de uma marca e de base de produção. A Seara era o movimento da vez para a JBS.
Enquanto acompanhava o desdobramento da crise na concorrente, Joesley pressionou a Caixa a não liberar financiamentos à Seara. Naquele momento, o empresário já se valia da parceria que mantinha com o operador Lúcio Funaro e Eduardo Cunha, que comandava postos-chave no banco estatal. A Marfrig, pressionada por dívidas, vinha negociando com a Caixa um empréstimo de R$ 1 bilhão, em quatro “tranches” de R$ 250 milhões, mas o negócio parou na fase final de liberação. Recentemente, a revista “Época” informou que Funaro incluiu esse episódio entre os casos que pretende contar em sua delação.
Diante da necessidade de recursos, a Marfrig chegou a um entendimento com a JBS para vender a Seara e também a uruguaia Zenda, de couros, por R$ 5,8 bilhões. Anunciada ao mercado em junho de 2013, a transação foi oficializada em setembro daquele mesmo ano, após o aval do Cade. Assim que firmou as bases do acordo com a Marfrig, Wesley incumbiu Tomazoni de planejar a reestruturação da Seara Brasil, um negócio sabidamente ineficiente. Para resolver o problema, nada melhor do que buscar reforços na líder BRF. Melhor ainda se a concorrente abrisse mão de pessoas-chave.
Sob novo comando desde abril de 2013, quando Abilio Diniz assumiu a presidência do conselho de administração, a BRF estava decidida a fazer um corte de custos, e de pessoas. “Teve muita gente que foi maltratada dentro da BRF. Nós erramos”, admitiu um executivo próximo.
Explorando esses flancos, a Seara contratou cerca de cem pessoas diretamente da BRF, de quase todas as áreas, do marketing à qualidade de produção. Algumas eram executivos que, demitidos pelo novo comando da BRF, decidiram não aceitar acordo de não competição para reforçar o time da concorrente. Outros executivos foram buscados a peso de ouro dentro da rival, o que provocou desconforto e chegou a ensejar reclamação formal da BRF. Dada a instabilidade vivida pela BRF, os executivos recém-chegados à Seara incentivavam antigos parceiros a se incorporarem. “Trouxe umas 30 pessoas. Elas estavam inseguras e conheciam o meu trabalho”, afirmou um colaborador.
Com a equipe reforçada, a Seara tratou de reformular os produtos vendidos nas gôndolas e fazer um pente-fino na estrutura de custos agropecuários. Sob a Marfrig, a taxa de ganho de peso dos frangos da Seara era recorde, mas gastava-se muito com aditivos e medicamentos. “Eles trabalhavam com o conceito de indicador técnico. Mudamos para o indicador econômico”, afirmou um ex-executivo da Seara.
Faltava reposicionar a Seara perante os consumidores. “A JBS tinha bala na agulha. Contrataram o Washington Olivetto. Junto com o Bernstein, eles tiveram a sacada de contratar a Fátima Bernardes”, afirmou um executivo de uma grande rede varejista, citando o diretor de marketing da Seara, Eduardo Bernstein. O executivo foi um dos que saíram nos cortes da BRF.
No varejo, a JBS contou com a boa vontade dos supermercados para impulsionar a marca Seara, disseram três executivos desse setor. Para o varejo, era bom ter uma marca que competisse com Sadia e Perdigão, pois representaria margens melhores. Eles se ressentiam da arrogância “monopolista” da BRF.
WHY NOT?
Os Batista já eram grandes em carnes quando decidiram ir além. Não foram poucos os parceiros de negócios que ouviram o empresário Joesley Batista descrever o plano de transformar a holding J&F numa Berkshire Hathaway à brasileira. A Berkshire é a lendária empresa de investimentos do megainvestidor americano Warren Buffet, que tem participações em companhias tão diversas quanto uma seguradora e uma fabricante de ketchup. Joesley tentou convencer o BNDES a ser sócio também da J&F para a empreitada, mas a ideia não foi sequer encarada com seriedade no banco. “Ele queria ser o Warren Buffet, mas ele não é. Era uma questão de tempo para que algo desse errado”, disse um banqueiro com quem Joesley compartilhou suas ambições.
“O problema foi quando o Joesley começou a dizer ‘why not?’”, disse outro executivo.
O uso constante da expressão em inglês, que significa “por que não?” e batizou o iate de luxo Azimut do empresário, para muitos sintetizou uma traiçoeira falta de limites de Joesley, que teria levado o grupo à diversificação desmedida dos negócios, com consequente necessidade de elevar a um novo patamar o endividamento e as compras ilícitas de apoio político pelo grupo.
As delações dos executivos da empresa confirmaram suspeitas que há muito pairavam de que na construção da Eldorado Celulose, que entrou em operação em Três Lagoas (MS) no fim de 2012, houve propinas pagas a dirigentes dos fundos de pensão Petros e Funcef e também ao grupo de Eduardo Cunha para liberar recursos na Caixa e do FI-FGTS.
No fim de 2015, a propina também azeitou a liberação do empréstimo de R$ 2,7 bilhões da Caixa para a J&F comprar o controle da Alpargatas, colocada à venda pelo grupo Camargo Corrêa, atingido pela Lava-Jato. Com taxa de juro próxima à Selic e prazo de cinco anos, o empréstimo teve as condições vantajosas vazadas e causou furor no mercado financeiro. “Ali tivemos a certeza de que o grupo praticava irregularidades”, disse o executivo de um banco estrangeiro.
Não se tem notícias de ilícitos na aquisição, em novembro de 2011, do Banco Matone pelo Banco JBS, hoje conhecido como Original. A transação, financiada pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), entretanto, foi cercada de polêmicas. A primeira diz respeito ao financiamento do FGC em si. Enquanto o Matone precisava de R$ 650 milhões para equacionar sua deficiência de capital, o fundo acabou dando ao Banco JBS linha de R$ 1,85 bilhão para capitalizá-lo, por 15 anos, corrigida apenas pela taxa Selic. Ou seja, para assumir o banco gaúcho, o JBS acessou funding de longuíssimo prazo, por taxa bastante inferior ao seu custo de captação no mercado. A operação total acabou sendo de R$ 2 bilhões, porque o FGC concedeu outros R$ 150 milhões que foram usados para quitar dívidas do empresário Alberto Matone com três instituições financeiras, já que as ações do Matone haviam sido dadas em garantia. O fundo recebeu como garantia ações do frigorífico JBS equivalentes, na ocasião, a R$ 3,5 bilhões, segundo uma pessoa com conhecimento do caso.
“[Joesley] queria ser o Warren Buffet, mas não é. Era questão de tempo para que algo desse errado”, disse banqueiro com quem Joesley conversava
Meses depois, veio a segunda polêmica, quando a JBS revendeu a Alberto Matone a rede de lojas próprias que havia adquirido com o banco, deixando no ar a suspeita de que nunca estivera de fato interessado em usar a plataforma do Matone para desenvolver uma operação de crédito consignado, conforme chegou a anunciar. Com enorme folga de capital, os executivos do banco passaram a buscar alternativas para rentabilizar o dinheiro do fundo. Mais uma vez, Joesley espelhou-se em exemplo do mercado financeiro. Ele e Emerson Loureiro tentaram, durante meses, adquirir participações acionárias em empresas. Queriam copiar, em escala reduzida, a estratégia do banqueiro André Esteves, do BTG Pactual, até aquele momento considerada um sucesso.
Em março de 2012, ao finalizar uma quarentena de um ano após ter deixado a presidência do Banco Central, o atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, se juntaria ao grupo. Segundo o ministro, ele foi membro do conselho consultivo da J&F e sua atuação foi concentrada na orientação da montagem da plataforma digital do banco Original e assumiu, de forma transitória, a presidência do conselho de administração da J&F, cumprindo neste período apenas obrigações formais. Meirelles assina como presidente do conselho de administração da holding os balanços de 2014 e de 2015. Ele trouxe para o Original dezenas de executivos oriundos do antigo BankBoston, instituição que presidiu no Brasil e nos EUA, e implementou investimento no projeto do banco digital.
Em maio de 2012, o J&F anunciou a intenção de assumir a Delta, sexta maior construtora de infraestrutura do país. Controlada pelo empresário Fernando Cavendish, a empreiteira, envolvida em corrupção, vinha tendo seus contratos cancelados. Como ela era líder na contratação de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), logo surgiram especulações de que o J&F agia a pedido do governo. Para tentar reduzir a resistência, Joesley afirmou, em entrevista à revista “Exame”, que a ideia de comprar a Delta tinha sido da banqueira Patrícia de Moraes e que ele, como todos, também reagira mal num primeiro momento. Em poucos dias a J&F comunicou que havia desistido do negócio. Na época, Joesley sofreu dura reprimenda de Luciano Coutinho. O presidente do BNDES disse ao empresário que não admitiria que dividendos da JBS, de quem o banco era sócio, fossem repassados à holding J&F e ajudassem na compra da Delta.
Hoje, no pós-delação, as empresas amealhadas com a pretensão de construir um império à la Buffet foram colocadas à venda pelos Batista para assegurar a sobrevivência do negócio principal, a JBS. São todos ativos de valor. “Muita gente não entendeu que o grupo tem boas empresas e que vão vendê-las, pagar dívidas, e sobreviver”, disse um executivo de banco.
OUTROS NEGÓCIOS DA J&F
Com a JBS no olho do furacão, muitos acreditam que Wesley não conseguirá seguir à frente da companhia, seja como presidente ou membro do conselho de administração – como parte do acordo com o MPF, Joesley se afastou em maio. Acionista relevante, a BNDESPar pediu uma assembleia de acionistas para apreciar a saída de Wesley. Auditores também devem se recusar a dar parecer a um balanço enquanto uma ampla investigação independente não for concluída e, a depender da conclusão, a manutenção do empresário como presidente pode se mostrar um entrave para o aval ao balanço.
Mas, a interlocutores, Wesley tem revelado percepção distinta. Em seu entender, é hora de mostrar-se pessoalmente comprometido para manter a empresa rodando e segurar a equipe de executivos que montou ao longo dos anos. “Foi para isso que fizemos a delação e a leniência”, afirmou recentemente. Os irmãos Batista se decidiram pela delação quando sentiram que a água estava invadindo a soleira da sala. Perceberam também que, na ausência das construtoras, as grandes financiadoras dos partidos políticos, a sede com que os políticos vieram bater à sua porta estava ficando insustentável. E, segundo pessoas próximas, Joesley decidiu que, se era para falar, ele apresentaria as provas de que em Brasília, depois do impeachment da presidente Dilma, tudo continuou igual sob o comando do seu vice, Michel Temer, e continuaria igual nas próximas eleições, quando muito provavelmente o senador Aécio Neves estaria eleito. Achou que, ao gravá-los, apresentaria a prova cabal da Orcrim. Sua sagacidade para negócios falhou na política. Não conseguiu prever a capacidade de resistência dos atingidos em Brasília. A interlocutores, os Batista revelam também sua surpresa com o tamanho da multa que lhes foi imposta para fazer a leniência, de R$ 10,3 bilhões em 25 anos (ou ao redor de R$ 7 bilhões a valor presente), maior que a das construtoras, que montaram esquemas de formação de cartel para lesar estatais e onerar obras e serviços públicos.
Os dois irmãos estão engajados na renegociação da dívida da JBS com bancos e na venda de ativos do frigorífico e da holding e não têm demonstrado especial apego a nenhum dos negócios. A visão é pragmática. “Eles não têm medo de nada, porque não têm nada a perder. Sabem que já estão no lucro há muito tempo, porque não imaginavam que iriam tão longe, e sempre terão dinheiro para viver com luxo”, disse uma pessoa que segue próxima dos Batista.
A J&F já não será uma holding operacional com vários negócios. Em poucas semanas, a Alpargatas deve ser vendida aos controladores do banco Itaú, via gestora Cambuhy e Itausa. Em prazo semelhante o grupo espera vender a Eldorado Celulose para a chilena Arauco. A venda da fabricante de lácteos Vigor também está em andamento, embora seja mais lenta por seguir um processo de venda organizado, sob a coordenação de Bradesco e Santander. Por ora, a geradora de energia térmica do grupo será mantida. Também não há intenção de se desfazer do Banco Original, até porque parece não haver no mercado interessado na compra da instituição. A ideia, na J&F, é arrecadar cerca de R$ 10 bilhões com a venda das empresas, quitar dívida com bancos, ao redor de R$ 4,5 bilhões a R$ 5 bilhões, e manter em caixa entre R$ 5 bilhões a R$ 6 bilhões.
A JBS também lançou programa de venda de ativos para arrecadar R$ 7 bilhões, que inclui frigoríficos no Mercosul, a europeia Moy Park e a fatia de ações que detém na Vigor. Em 31 de março, último dado disponível, o índice de alavancagem (medido pela relação entre dívida líquida e Ebitda em 12 meses) estava em 4,2 vezes. O endividamento bruto da empresa totalizava R$ 58,5 bilhões, sendo R$ 17,8 bilhões com vencimento no curto prazo e R$ 40,6 bilhões no longo prazo. No caixa, a JBS tinha R$ 10,7 bilhões.
A renegociação da dívida de curto prazo está bem adiantada. A empresa já conseguiu fechar com um grupo de bancos, entre eles Bradesco, Santander, Caixa, Banco do Brasil e Rabobank, um contrato que assegura por um ano a manutenção de linhas estimadas em R$ 16 bilhões no Brasil — desse valor, cerca de R$ 2 bilhões são do Itaú e do japonês Mizuho, que não toparam o acordo. O Itaú exigiu que a JBS amortizasse imediatamente 40% das linhas. No acordo com os outros bancos, a companhia aceitou amortizar 10% da dívida no prazo de um ano, numa proporção de 2,5% a cada trimestre. Em um ano a JBS terá quitado cerca de R$ 2,5 bilhões a R$ 2,7 bilhões da dívida de curto prazo no Brasil.
A Operação Carne Fraca, que levantou suspeitas sobre a fiscalização nos frigoríficos brasileiros e levou à perda de mercados no exterior, aliada ao impacto da delação, afetou a JBS neste ano. Mas aparentemente o estrago não foi tão forte, porque a empresa vinha melhorando a margem na Seara, ajudada pela queda de preço da principal matéria-prima, o milho, pelo ciclo de queda de preço do boi e, também, pelo alívio de caixa provocado por sua decisão de não pagar mais o pecuarista à vista. Informação não confirmada pela companhia dá conta de que a empresa teria perdido em Ebitda pouco mais de R$ 100 milhões no trimestre, o que terá sido pouco diante do impacto da delação de seus donos. E a escala de abate já teria voltado às cerca de 30 mil cabeças por dia. “O futuro deles será um grupo menor. Mas não subestimaria a capacidade dos Batista de se reinventar”, opina uma pessoa próxima. Mas, segundo um banqueiro ouvido pelo Valor, a situação do grupo neste momento ainda é difícil. Bastaria os bancos terem se recusado a aderir ao acordo para as dívidas de curto prazo e o grupo, mesmo com todos os seus bons ativos, teria ido às cordas. Para não impactar ainda mais seus balanços, os bancos preferiram segurar a onda.

Por Luiz Henrique Mendes, Vanessa Adachi, Fernando Torres e Francisco Góes, no Valor Econômico
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