Como
os indicadores do índice global de inovação colocam nosso aparato normativo em
cheque
Refiro-me à edição do
Índice Global de Inovação (GII) em que o Brasil ocupava a 62ª posição entre 131
países[1]. A colocação mediana não seria tão alarmante analisada de maneira
isolada. O alarme soa ao olharmos no detalhe quais são os indicadores
utilizados para atribuição da nota do país. Nessa análise, é possível perceber
que a principal falha no desenvolvimento da inovação está em nossas
instituições públicas e que os problemas apontados são crônicos na organização
administrativa brasileira.
Para falar de inovação no setor público, é preciso definir certas premissas
básicas do uso do termo[2]. Primeiro, inovação não é necessariamente tudo
aquilo relacionado ao universo digital-tecnológico. Melhorias em processos
administrativos, alterações de arranjos contratuais, definições de novos parâmetros
de controle podem ser enquadrados como inovação. Segundo, quando se fala em
inovação e Estado, existem dois grandes tipos. A inovação endógena seria o
dever estatal de incorporação de aprimoramentos em sua estrutura. A exógena
seria aquela pensada sob a ótica do fomento ao setor privado, na lógica de
criação de incentivos. Na prática, é certo que determinados projetos estarão na
interseção dos conceitos.
Ambos os tipos de inovação estão abarcados no indicador 'Instituições' do GII,
cujos três pilares são o ambiente político, o regulatório e o de negócios. Se
no ranking geral estamos na 62ª posição, neste indicador específico somos o
82º. As piores notas atribuídas foram em eficiência governamental (97º de
131º); qualidade regulatória (94º de 131º) e facilidade de se iniciar um
negócio (106º de 131º). Outros aspectos relevantes contribuem para a formação
do indicador, como a segurança jurídica, o respeito ao devido processo legal e
a estabilidade política.
Ao pensar no diagnóstico do GII juridicamente, a pergunta que vem de imediato é
se nosso aparato normativo é suficiente à inovação. Em termos de volume, não há
dúvidas de que sim. A Lei da Inovação (Lei nº 10.973/04), com suas alterações
promovidas após a Emenda Constitucional nº 85/2015, trouxe aberturas relevantes
para ampliação do leque de políticas possíveis ao poder público. Em sequência à
lei, vieram diversos documentos orientadores, regulamentações e regulações,
tratando de temas específicos como o contrato de encomendas tecnológicas
(ETEC).
Essa modalidade contratual, prevista no art. 2º-A, inciso V, da Lei de
Inovação, ganhou certo protagonismo na pandemia em virtude da sua utilização
pelo Ministério da Saúde para
o desenvolvimento da vacina de Oxford pela Fiocruz, em parceria com o laboratório
Astrazeneca. Um exemplo na interseção da inovação endógena e exógena, operado
por contrato, em casos de incerteza científica e risco tecnológico. O poder
público auxilia com estrutura pública, financiamento e know-how de seus
recursos humanos e a entidade privada do mesmo modo.
Fora a previsão na Lei de Inovação, a ETEC é regulada a nível federal pelo
Decreto nº. 9.283/2018, com apoio de documentos consultivos de entidades
federais como o 'Projeto de Contratação de Inovação para a Administração
Pública do Tribunal de Contas da
União (TCU)' e o
'Guia Geral de Boas Práticas de Encomendas Tecnológicas do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)'. Além de todas as previsões normativas,
o TCU ainda formulou
diversas recomendações e determinações à ETEC da Vacina[3], o que agrega ao
controlador um papel quase regulatório na utilização de instrumentos normativos
da inovação.
O exemplo da ETEC acaba sendo um retrato do que tem sido a aplicação normativa
prática da inovação: os controladores, muitas vezes, extrapolam suas
competências ou analisam com parâmetros muito tradicionais projetos que fogem
do comum à administração. A contratação do desenvolvimento de um produto
científico difere do sistema de um pregão para
fornecimento de bens ou serviços, inegavelmente. Por isso a necessidade de
lentes diversas. Essa insegurança jurídica gerada pelo controle dificulta, sem
dúvidas, a tomada de decisão do administrador.
A 'culpa' do controle excessivo, entretanto, não recai só na ampliação da
atuação de controladores. Boa parte das críticas e dos problemas atrelados a
projetos de inovação é de transparência. Questão de valor constitucional.
traduzida como o princípio da publicidade, no rol do famoso art. 37, dirigido à
administração pública de todas as esferas. Se há um problema latente e em quase
qualquer área do poder público é como operacionalizar a transparência na
prática administrativa. Isso envolve ter um mínimo de qualidade da informação,
atualidade e clareza. E há exemplos sem fim sobre como ainda estamos muito
aquém de um sistema satisfatório, o que faz com que o TCU e outros órgãos controladores
continuem reproduzindo recomendações nesse sentido.
Outro ponto que contribui para o controle excessivo é o da qualidade
regulatória. Nos últimos dois anos, o boom da análise de impacto regulatório
(AIR) veio quase messianicamente trazer o que seria o ponto ótimo da motivação
em processos normativos e regulatórios conduzidos no Poder Executivo. . Dentre
normas (como a Lei das Agências Reguladoras Federais, a Lei de Liberdade
Econômica e o Decreto Federal de AIR Federal) e guias, há um longo caminho até
a AIR se tornar rotina na administração. Conduzir um processo administrativo
demonstrando que aquela escolha é a mais acertada em um tema de impacto
socioeconômico parece algo desejável. No papel, entretanto, o que parece o
melhor dos mundos pode ser uma porta para excesso de dispensas formais ou fugas
aos padrões definidos - com a criação de parâmetros específicos em novas
normas.
Para contribuir com a inovação, a qualidade regulatória pode começar com passos
pequenos, meramente não abandonando projetos em curso. Se a transparência já
melhorou muito após 2012 (com a Lei de Acesso à Informação) em nível federal,
essa melhoria pode e deve ser incentivada em outros entes. A própria AIR - e a
ideia por trás dela, de melhoria regulatória - pode ter instrumentos
intermediários entre a ausência completa de motivação e uma exigência tão
complexa e que não é imediatamente compatível com a nossa organização
administrativa. Tudo isso contribui para a eficiência governamental, um dos
pilares do GII em que estamos bem abaixo da média.
Fora isso, potenciais mudanças abruptas de entendimento e aplicações legais
também afetam a segurança jurídica e o ambiente regulatório. Um dos elementos
de um sistema de inovação é o sistema de patentes. Atualmente, encontra-se em
discussão no Supremo Tribunal Federal (ADI nº 5.529, rel. Min. Toffoli) a
constitucionalidade de um dispositivo da Lei de Propriedade Industrial que
confere aos depositantes de patente um prazo mínimo em vigor de seu invento,
nos casos de ineficiência do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (art.
40, parágrafo único). O mecanismo é de garantia contra a potencial ineficiência
da autarquia - que, em muitos casos, pode levar mais de quinze anos para
concluir um processo administrativo.
Se o STF declarar o dispositivo inconstitucional, haverá uma mudança abrupta
sistêmica, que afetará milhares de patentes (incluindo aquelas de universidades
e entidades públicas) e nosso sistema de inovação. Consequentemente, dentro da
lógica de instituições, a insegurança jurídica gerada pelo Poder Judiciário
contribui para redução da nota do Brasil. As patentes servem como estímulo ao
desenvolvimento da inovação do país e possibilitam a atração de investimentos
em pesquisas relevantes. Não à toa as universidades, em acordo de
desenvolvimento de tecnologia, preveem a proteção patentária de seus inventos,
para poderem explorar royalties e outras modalidades de retorno financeiro.
Uma dentre as seis recomendações do GII para pensar a inovação, no contexto de
crise, é que os formuladores de políticas públicas pensem em estratégias para
mitigar efeitos danosos à promoção da inovação em seus territórios. Isso
representa avaliar, de maneira consistente e consciente, se o que precisamos é
de mais normas ou mais uniformidade na atuação em prol da inovação. De nada
adianta criar marcos normativos arrojados e negligenciar diagnósticos
anteriores na execução de projetos. Já avançamos em muito no tema no país - mas
não podemos acreditar que só marcos normativos resolverão os problemas
identificados, sob risco de irmos na contramão da inovação.
[1] Cornell University,
INSEAD, and WIPO (2020). The Global Innovation Index 2020: Who Will Finance
Innovation? Ithaca, Fontainebleau, and Geneva.
[2] Sobre tipologia da inovação: CALIL, Ana Luiza, Inovação no setor
público: o desafio de equilibrar o papel do Estado e do Direito, in: FERRARI,
Isabela, BECKER, Daniel (orgs.) Regulação 4.0: novas tecnologias sob a perspectiva
regulatória. Rio de Janeiro: RT, 2019.
[3] Processo TC 014.575/2020-5.
Por Ana Luíza Calil, no Jota (com adaptações)
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