segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Quem ganha e quem perde com a liberação dos táxis?



Por Paulo Springer

O mercado de táxis no Brasil sofreu um abalo recentemente, com a entrada da Uber, uma empresa que permite contratar serviços similares, sem possuir autorização específica das prefeituras. As manifestações de repúdio em São Paulo envolveram carreatas, buzinaço, ações na justiça e, segundo relatos informais, intimidação aos motoristas não regulados ou aos seus veículos. Projetos de lei já foram votados em São Paulo e Brasília proibindo táxis alternativos. Essas manifestações não foram exclusivas do Brasil. Em outros países em que a Uber atua, houve protestos ou ações legais para impedir a ação da concorrente.

O serviço de táxi é regulado pela Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587, de 2012). Curiosamente, seus arts. 12 e 12a estabelecem que qualquer interessado poderá explorar os serviços de táxi, desde que atenda aos requisitos mínimos de segurança, conforto, higiene e qualidade de serviços determinados pelo poder público municipal.

Ainda assim, a maioria das grandes cidades brasileiras (ou talvez, todas) adota o sistema de permissão, com número limitado de licenças. A prefeitura abre um edital oferecendo determinado número de placas (licenças) e estabelece critérios. Aqueles candidatos que fazem maior pontuação obtêm a placa gratuitamente e, na prática, por tempo indeterminado.

Observe-se que essa não é a única forma de alocar as placas. Poderia ser feito um leilão, onde o vencedor seria aquele que oferecesse o maior valor pela licença ou o menor preço para a corrida. O mercado poderia ser também completamente liberado, como parece ser o comando (não obedecido) da Lei nº 12.587, de 2012. Cidades como a Cidade do Panamá e Lima liberaram os serviços de táxi. Qualquer indivíduo que satisfaça determinados pré-requisitos (como bons antecedentes, dispor de carro com condições de segurança e higiene, etc) paga uma taxa para a prefeitura e obtém a licença para dirigir. É uma situação semelhante à de abrir um restaurante. Qualquer pessoa pode abrir um restaurante, desde que satisfaça determinadas condições (aprovação da Anvisa, do Corpo de Bombeiros, etc).

Liberar o transporte público individual remunerado de passageiros para qualquer empresa é quase que equivalente a permitir que qualquer indivíduo (observados os pré-requisitos) possa ter uma placa de táxi1. Voltamos então à pergunta deste artigo: quem ganharia e quem perderia com tal liberação? Conforme veremos a seguir, consumidores inequivocamente ganham; antigos motoristas de táxi perdem no curto prazo, mas ficam neutros no longo prazo, enquanto novos motoristas ganham no curto prazo, e também ficam neutros no longo prazo. Os únicos que inequivocamente perdem são os detentores das placas de táxi.

Antes de começar a análise, gostaria de registrar a estranheza de os debates focarem nos impactos sobre os motoristas, quando o principal objeto deveria ser, obviamente, os consumidores. Afinal, o objetivo último do serviço de transporte individual remunerado é prestar um serviço público, e não garantir a renda ou o emprego de quem o presta! Se, ao longo da história, a manutenção do emprego e da renda de profissionais afetados por inovações tivesse sido mais importante que a própria inovação, ainda veríamos pelas ruas os acendedores de lampião, e toda ligação telefônica ainda seria intermediada por uma telefonista.

Como dissemos, os consumidores inequivocamente ganham. De imediato, a entrada de novos concorrentes, no mínimo, aumenta a oferta. Não só aumenta o número de carros disponíveis, como também é possível uma maior adaptação do produto a gostos específicos. É possível atender a diferentes nichos de mercado, como carros de melhor padrão, que oferecem DVD, lanches, etc, ou carros mais simples (desde que atendam às condições de segurança). Certamente há pessoas dispostas a pagar mais para ter um produto de luxo, assim como pessoas dispostas a abrir mão de algumas conveniências (como ar condicionado, acabamento sofisticado, etc) e pagar tarifas mais baixas.

Os que defendem a manutenção do status quo argumentam que o sistema de táxis atual garante maior segurança, pois o motorista é obrigado a fazer cursos, é registrado, é obrigado a manter o carro limpo e em condições, etc. Com o mercado liberado, os usuários não teriam como saber se estariam em mãos seguras ou não. Aqui há uma evidente confusão entre liberalização e desregulamentação. Obrigar motoristas e automóveis atenderem a requisitos mínimos de segurança não é incompatível com liberar o número de licenças. Em verdade, não há nenhuma relação entre as duas coisas. Vale lembrar a analogia com restaurantes. Faria sentido dizer que uma cidade só pode ter um número “x” de restaurantes para garantir a higiene de suas cozinhas? É claro que não. O processo de obtenção de alvarás e fiscalizações da vigilância sanitária, em tese, garantem a segurança do estabelecimento. Alguém irá certamente lembrar que há restaurantes devidamente autorizados e com más condições de higiene. É verdade, mas esse é um problema de fiscalização, que ocorreria mesmo se houvesse um limite para o número de licenças.

A propósito, todo mundo tem um caso a contar sobre motorista de táxi que tenha sido rude, que tenha tentado enganá-lo, utilizando uma rota mais longa, ou que o carro estivesse com ar condicionado quebrado ou sujo. Além de casos extremos (esses, felizmente raríssimos e que se tornam manchetes de jornais) de motoristas envolvidos em tráfico de drogas ou estupros. Especificamente em relação à segurança, empresas alternativas costumam registrar o nome do motorista e, em alguns casos, a rota, tornando-as até mais seguras do que o táxi convencional.

Para o resto da análise, é importante distinguir os motoristas dos donos das placas, ainda que, em alguns casos, sejam a mesma pessoa2. Quando alguém adquire a permissão para ter um táxi, essa pessoa não necessariamente irá conduzi-lo. Em verdade, pelas conversas informais que travo com motoristas, fico surpreso em ver que, na grande maioria das vezes, principalmente entre os mais jovens, eles não são os donos do carro (e nem da placa). Há vários arranjos: o dono da placa atua, de fato, como motorista, sendo o único a dirigir seu carro; o dono da placa atua como motorista em alguns dias/horários e aluga seu carro para terceiros no restante do tempo; o dono da placa não atua como motorista e aluga seu carro para alguém, ou o dono da placa contrata motoristas para conduzir seu carro (esse último caso é mais raro).

Para os que são apenas motoristas, é importante distinguir dois grupos. Aqueles que já estão no mercado obviamente perdem no curto prazo. Afinal, para um determinado número de passageiros e uma dada tarifa, haverá mais carros disputando as corridas, caindo a demanda por táxi e, consequentemente, a receita. Para quem ainda não está no mercado, a liberalização é benéfica, pois o sujeito que trabalhava em alguma outra atividade3 ou que estava desempregado pode agora ter um táxi. Com o tempo (e, acredito, nem tanto tempo assim, não mais do que cinco anos, tendo em vista o baixo custo de entrada e o baixo investimento necessário), contudo, a situação do motorista é indiferente, conforme explicarei a seguir.

Motoristas de táxi podem ser considerados como mão de obra de qualificação média. A decisão de ser motorista de táxi compete com outras que requerem habilidades semelhantes, como motoristas particulares ou de empresas, trabalho no comércio, serviços de reparação em geral, entre outros.

Em um mercado de trabalho normal, se o rendimento de determinada ocupação está acima do das demais (que exigem qualificação semelhante), mais pessoas afluem para essa ocupação, aumentando a oferta de trabalho daquele setor e levando à queda nos rendimentos até que o equilíbrio volte a ser restabelecido.

Já o mercado de motoristas de táxi, no marco regulatório atual, é diferente de um mercado de trabalho normal. Se os motoristas de táxi ganham acima do mercado, isso atrairá mão de obra para a ocupação. Ocorre que o número de táxis é limitado. Alguma flexibilidade existe, no sentido que o dono de um carro pode decidir alugar o carro por mais um turno. Mas, de forma geral, dado que o número de permissões é fixo, o número máximo de motoristas de táxi também será fixo. Isso não geraria uma oportunidade de ganhos permanentes? Não, o ganho (ou perda) vai para o dono da placa.

Imagine que há um aumento na demanda por táxis. Isso ocorreu na maioria das cidades brasileiras nos últimos anos, pois a população cresceu, a renda aumentou, e o número de licenças ficou praticamente estagnado. Em Brasília, por exemplo, o número de licenças está estagnado há mais de 30 anos! Com maior número de corridas por dia, e, consequentemente, maior receita, mais pessoas iriam querer ser motoristas de táxi. Digamos que o faturamento líquido de um motorista de táxi (ou seja, as receitas obtidas com as corridas, descontados os custos com gasolina, manutenção de carro, etc) atingisse R$ 7 mil por mês. Se a mão de obra com nível de qualificação equivalente estiver ganhando R$ 3 mil mensais, várias pessoas tentarão migrar para a ocupação.

Ocorre que não haverá táxis para dirigir! O que farão então os candidatos a motorista? Irão oferecer um aluguel para o dono da placa. Pensemos em um candidato. Se ele oferecer R$ 1 mil para o dono da placa, poderá ficar ainda com R$ 6 mil livres no final do mês, enquanto sua capacidade de remuneração, dada pelo mercado, é de R$ 3 mil. Mas outro candidato a motorista, mais esperto, irá oferecer R$ 1,5 mil ao dono da placa, pois, dessa forma, ficaria com um ganho líquido de R$ 5,5 mil, o que ainda seria vantajoso. Não é difícil perceber que haveria uma espécie de leilão, e que, ao final, o dono da placa receberia R$ 4 mil e o motorista de táxi, R$ 3 mil. Ou seja, independentemente de haver Uber, táxi pirata, aumento ou diminuição no número de permissões, o rendimento do motorista de táxi continua determinado pelo mercado de trabalho, considerando pessoas com qualificação equivalente. No exemplo dado, o mercado sempre se equilibraria em R$ 3 mil mensais.

Falta, por fim, analisar o que ocorre com o dono da placa do carro. Com a liberalização do mercado, ou com a entrada de concorrentes como a Uber, conforme dissemos anteriormente, o motorista sofrerá perda de receitas. Diante desse novo cenário, a tendência será que esse motorista de táxi desista de sua ocupação e procure outra. Suponhamos, continuando o exemplo anterior, que, agora, o faturamento líquido caia para R$ 5 mil (observem que isso pode decorrer tanto da entrada de concorrentes como a Uber, quanto por uma iniciativa da prefeitura de aumentar as licenças). Após deduzir os R$ 4 mil pagos ao dono da placa, o rendimento líquido do motorista cairia para R$ 1 mil. Ora, se o salário de um profissional com qualificação semelhante é de R$ 3 mil, o motorista de táxi irá preferir abandonar a profissão. É claro que isso não ocorre imediatamente. Há contratos em andamento com o dono da placa que não podem ser rompidos, pode demorar um tempo para que o motorista encontre outra colocação no mercado ou para que se certifique que a situação do mercado se deteriorou de forma definitiva. Com o tempo, entretanto, a tendência será o esvaziamento da profissão, com consequente queda na demanda pelo direito de dirigir um táxi. O aluguel da placa então cairá, até que atinja o valor de R$ 2 mil, de forma que o rendimento efetivo (ou seja, já descontadas todas as despesas, inclusive o aluguel da placa) do motorista de táxi volte para os R$ 3 mil.

Assim, as variações no mercado de serviços de táxi, no longo prazo, acabam se refletindo no aluguel da placa, e não no rendimento do motorista4. Se o valor do aluguel da placa cai, também cai o valor da placa. Esse é um princípio básico de precificação de ativos: quanto maior o rendimento (dado um nível de risco), maior seu valor. Por exemplo, imóveis que geram alugueis mais altos têm preços mais elevados, e se o valor do aluguel cai, o valor do imóvel também cai; ações de empresas que distribuem mais dividendos são mais caras, e, se o lucro cai, o preço da ação também cai; e assim sucessivamente. No limite, se houver total liberação do mercado de táxis, o valor do aluguel cairia para zero – afinal, por que alguém pagaria para outrem o direito de dirigir um táxi, se pode obter esse direito gratuitamente na prefeitura? Nesse caso, o valor da placa também cairia para zero.

Conforme relatos de motoristas, uma placa de táxi custa, em Brasília, nada menos que R$ 100 mil, e rende ao seu dono um aluguel mensal em torno de R$ 3 mil. Em São Paulo, onde a permissão para táxi está associada a um ponto, a placa para poder atuar em um ponto em um bairro nobre como Moema custa R$ 250 mil. Para ter o direito de pegar passageiros no Aeroporto de Congonhas, são necessários R$ 800 mil. E, se alguém quiser ter uma permissão para pegar passageiros no Aeroporto Internacional de Guarulhos, terá de desembolsar nada menos que R$ 1,2 milhão (confesso que não acreditei nesse número, porém mais de um motorista de táxi em São Paulo me confirmou essa cifra)! Diante disso, não é de se estranhar que haja tanta pressão para proibir a presença de concorrentes ou a liberação do mercado de táxis. O que é de se estranhar é que a sociedade ache natural o Estado transferir gratuitamente para alguns premiados um patrimônio que lhes rende um aluguel equivalente ao de um apartamento de dois ou três quartos em área nobre da cidade, sem trazer nenhum benefício palpável para o consumidor!

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1 Não é exatamente igual porque a marca “taxi” tem algum valor. Dessa forma, mesmo permitindo empresas alternativas, como a Uber, o motorista de táxi convencional tende a ter alguma vantagem de mercado.

2 Em verdade, podemos dividir em três grupos: motoristas, dono do automóvel e dono da placa (permissão para dirigir). Às vezes o motorista é dono do carro, mas aluga a placa de um permissionário. O mais comum, entretanto, é o dono da placa e do carro serem a mesma pessoa. Na análise que se segue, irei supor, para simplificar, que o dono da placa e do carro seja a mesma pessoa. Do ponto de vista analítico, é o fato de haver um dono da placa que torna o mercado de trabalho do motorista de táxi diferente de outros, e é sobre esse aspecto que iremos nos focar.

3 Para o sujeito que abandonou outra atividade e passou a trabalhar como taxista, sua situação, na pior das hipóteses, ficou constante, sendo que, mais provavelmente melhorou. Afinal, se não fosse para melhorar, ele teria se mantido na atividade original.

4 Observe-se que estamos nos referindo a variações específicas no mercado de serviços de táxi. É claro que o rendimento dos motoristas flutua em função das condições gerais do mercado de trabalho. Em períodos recessivos, como o atual, é provável que os motoristas de táxi passem a ganhar menos, tal como ocorre com a maioria dos trabalhadores.


Paulo Springer - Editor do Brasil-Economia-Governo, Consultor Legislativo do Senado Federal e Professor do Programa de Mestrado em Economia do Setor Público do Departamento de Economia da UnB.