segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A cartilha que ninguém deveria desejar



Tão logo o Brasil superou a fase da ditadura militar, a inteligência nacional tratou de mobilizar esforços para revitalizar e oxigenar o aparelho de estado e dar fim ao lixo e ao entulho acumulados em duas longas décadas de autoritarismo.

Neste aspecto, a Constituinte de 88 muito auxiliou, embora tenha perpetuado algumas distorções embebidas de puro corporativismo.

De lá para cá, muita água correu por debaixo da ponte e a realidade mudou. Órgãos e instituições mais eficazes foram criados, a imprensa conseguiu livrar-se das mordaças e a sociedade civil se fortaleceu.


Dentre as boas novas advindas da redemocratização estão as ONGs.

As Organizações Não Governamentais são instituições da sociedade civil criadas para implementar ações e projetos, valendo-se substancialmente da mobilização comunitária e da opinião pública. Como não almejam lucro financeiro, foram moldadas para atuar em parceria e fina sintonia com o estado, fazendo às vezes de um operativo braço executivo. A idéia originária sempre foi ganhar em qualidade vez que – em tese - a própria comunidade trataria de executar e fiscalizar as ações das quais se beneficiaria em primeira mão.

Todavia, se o estado de direito assegura espaços privilegiados para que a sociedade organizada se mobilize em função de seus projetos, necessidades e expectativas, também abre o flanco para que quadrilhas e grupos de interesse incrustem-se em brechas institucionais para – qual uma doença maligna – garrotear e aparelhar a organização estatal.



É o que de certo modo vem ocorrendo com as ONGs.

Ainda no primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio criou o que deveria ser um de seus programas de governo mais vistosos e destacados, o Brasil Alfabetizado.

Criado em 2003 sob a guarida do Ministério da Educação, o programa estipulou como objetivo estratégico: se constituir num “portal de entrada na cidadania”.

Pois bem; na oportunidade, o MEC descobriu que nada menos que 72% das ONGs auditadas não se encontravam em situação de regularidade, apresentando diferentes tipos de problemas e desvios.

O crime mais recorrente é o velho e surrado expediente das notas fiscais frias e dos recibos falsos apresentados nos processos de prestação de contas.


Mas é no processo de execução da atividade que a falcatrua assume ares de todo surrealistas.

Para perpetrar as tramóias, as ONGs criaram duplicidade, triplicidade e até quadruplicidade de turmas. Dessa forma, “ensinavam” 25 alunos, mas comprovavam – com todo o rigor documental - que haviam alfabetizado 100. E não se contentando com a engenharia do mal, criaram classes fantasmas, inventaram professores capazes de ministrar aulas em três lugares diferentes e no mesmo horário, além de terem cadastrado e incorporado ao processo alfabetizadores que sequer sabiam da existência do programa. O tal do professor-laranja já existe.

Seria um crime comum, mais um para figurar no folclore da política nacional não fosse o fato de grande parte dessas instituições estarem vinculadas às corporações sindicais e partidos políticos.

O problema ganhou tal dimensão que muitas ONGs conveniadas com o Brasil Alfabetizado só existiam no papel, unicamente no cartório, daquelas coisas criadas para inglês ver. Cumpriam todas as exigências e formalidades legais, mas não alcançavam existência real, não se materializavam: nada d sede, telefone, servidores, nada, simplesmente nada, tudo redondinho e funcionando unicamente no papel, um verdadeiro castelo de areia, um elefante branco cartorial. Na época, apenas três dessas entidades chegaram a receber do FNDE R$ 2,2 bilhões para alfabetizar 50 mil brasileiros. O dinheiro foi para o ralo (melhor dizendo, para os espertalhões) e 50 mil pessoas deixaram de ser alfabetizadas. Um investimento do porte de R$2,2 bilhões e ninguém ensinou rigorosamente nada, e ninguém aprendeu rigorosamente nada.


Este caso apenas ilustra o que historicamente vem ocorrendo no Brasil: corrupção e mais corrupção, desvio e mais desvio de recursos públicos, bandidagem e malandragem explícitas. Neste caso, a cartilha caprichosamente elaborada foi o ABC do crime contra a educação, a cartilha que ninguém deveria desejar.

Felizmente, de lá pra cá, as instituições se fortaleceram, os órgãos de controle passaram a atuar com maior qualidade e, o próprio MEC se deu conta do tamanho do buraco e tomou providências para estancar a sangria. Uma delas, bastante simples, mas eficaz, foi substituir o pessoal contratado pelas ONG’s por professores da rede pública. Numa outra ponta, o governo editou portaria normatizando o repasse dos recursos federais para as ONGs e as organizações da sociedade civil de interesse público.

Há um turbilhão de dinheiro nessa jogada. Não é pouca coisa. São bilhões e bolhões de reais destinados a essas entidades. Por baixo, calcula-se que existam no Brasil 260 mil ONGs. São números por demais expressivos. Os órgãos de controle, os Tribunais de Contas, o Ministério Público e a sociedade de forma geral devem manter-se atentos, vigilantes porque se existe alguma coisa escorrendo ralo abaixo não é água servida, é o nosso dinheiro, o fruto do esforço e da labuta coletiva.

Artigo de Antônio Carlos dos Santos publicado no portal da Associação dos Professores de São Paulo