O Tesouro constatou a possibilidade de encerrar este ano com um uma insuficiência de R$ 46 bilhões entre o caixa de recursos livres (sem vinculações orçamentárias) e suas despesas programadas (incluindo restos a pagar).
Isso indica um crescente risco de descumprimento da Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) no futuro. No início do ano, essa estimativa
estava positiva em R$ 42 bilhões para o fechamento de 2020. A virada de mais de
R$ 80 bilhões aponta uma tendência preocupante, e significa que o governo está
consumindo muito rapidamente sua reserva financeira, embora essa regra só
poderá configurar uma ilegalidade se for descumprida pelo governo em 2022.
Por conta da piora nesse quadro, o Ministério da Economia
alertou em seu último relatório bimestral para a necessidade de se discutir uma
maior desvinculação de recursos orçamentários, para cobrir o buraco que começa
a aparecer no horizonte. O artigo 42 da LRF proíbe que os poderes e órgãos do
setor público assumam nos dois últimos quadrimestres de seus mandatos despesas
que não possam ser cumpridas integralmente dentro dele. Nesse cenário, se algo
ficar para o ano seguinte, é necessário reservar caixa em volume suficiente
para fazer frente a esses restos a pagar.
Essa regra tem sido uma fonte de contenção importante dos
ímpetos de prefeitos e governadores em ano eleitoral. No caso da União, que
sempre teve um enorme caixa, isso nunca foi problema.
Mas, com essa reserva financeira consumida rapidamente por
conta da sucessão de déficits fiscais nos últimos anos, agravada pela pandemia
da covid-19, esse elemento é mais uma fonte de preocupação. “O valor divulgado
no relatório bimestral relativo ao mês de setembro de 2020 evidencia que, se
forem executadas todas as despesas financiadas por essas fontes livres ou eventualmente
por outras fontes vinculadas que estejam apresentando frustração de
arrecadação, as disponibilidades de caixa das fontes ordinárias ‘livres’, ao
final do ano, não serão suficientes em R$ 46,1 bilhões para o pagamento ou para
inscrição integral em restos a pagar dessas despesas, se não houver
providências para adequação das fontes”, explicou o Tesouro em nota ao Valor .
Por um acerto com o Tribunal de Contas da União (TCU), o
órgão precisa apurar essa relação entre seu caixa e as despesas contratadas
anualmente, mesmo com a lei falando apenas do último ano de mandato. O Tribunal
cobra do governo que evite a chamada “inversão de fontes”, jargão técnico que
indica que o caixa de recursos é menor do que os compromissos assumidos em
determinadas rubricas do orçamento.
Esse saldo negativo leva o governo a buscar autorização do
Congresso para descarimbar recursos de áreas com superávit para bancar as
deficitárias. Há uma discussão de técnicos se caberia apurar essa relação entre
o caixa e as obrigações por fonte de recursos.
A leitura é que a interpretação mais restritiva adotada pelo
Tesouro tem objetivo político de estimular a discussão sobre revisão das
vinculações no orçamento federal. É que a lei não explicita qual a forma
correta de apuração e, na visão de alguns, bastaria calcular a relação geral
entre o caixa total e as obrigações, o que praticamente eliminaria o risco de
um resultado negativo.
“Uma coisa é flexibilizar o saldo existente, outra é revogar
a vinculação. O Executivo talvez esteja querendo acabar com as vinculações
orçamentárias estabelecidas pelo Congresso, o que acho mais complicado... E
tenhamos claro que o problema não são as vinculações.
Elas existem em outros países, como nos Estados Unidos”,
disse o especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro. “O problema é não
avaliar o custo e o benefício das vinculações periodicamente por meio de um
sistema transparente e objetivo. Boas vinculações devem ser mantidas”,
completou o economista. Ribeiro reforça que o artigo 42 é para final de
mandato. “Faz muito sentido para eleição que teremos neste ano no nível
municipal.
A União está querendo usar como narrativa para defender a
agenda de desvinculação do Guedes. Sem dúvida, escolheram mal a base do
argumento no aspecto técnico”, acrescentou. Outros especialistas apontam na
mesma direção e enxergam uma espécie de “terrorismo fiscal” patrocinado pelo
próprio governo para tentar emplacar sua agenda de desvinculação.
O Tesouro, porém, se justifica. “Apesar desse dispositivo
mencionar apenas os últimos quadrimestres do mandato presidencial, o princípio
da boa gestão fiscal, também preceituado pela LRF, requer que esse
acompanhamento e monitoramento sejam permanentes, de forma a evitar desvios
capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”, disse na nota ao Valor .
“Note-se que a metodologia da apuração realizada pelo
Tesouro decorre de interpretação da LRF e da necessidade de observar a
legislação vigente quanto às vinculações de recursos existentes no arcabouço
normativo” acrescentou o órgão, referindo-se a apuração “fonte por fonte”.
O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, em recente
entrevista ao Valor , comentou que o objetivo de se projetar essa relação entre
fontes e despesas é uma boa prática. “O objetivo é que a gente tenha um
acompanhamento para que, em 2022, quando tiver os dois quadrimestres anteriores
à virada de mandato, que é o período crítico, os restos a pagar não sejam
maiores do que as fontes livres. É para não ser surpreendido na hora”, afirmou.
“A apuração em todo ano é questão de boa prática,
transparência e de um acompanhamento próximo de algo que é importante, mas
mirando em 2022”, disse, defendendo o projeto do deputado Mauro Benevides
(PDT-CE) que promove uma ampla desvinculação de recursos de fundos públicos.
Por Fabio Graner, no Valor Econômico
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