A
recém-lançada biografia de Samuel Wainer, criador do histórico jornal Última
Hora, escrita pela jornalista Karla Monteiro, tem um de seus pontos altos na
ênfase que confere à relação entre o biografado e seu êmulo Carlos Lacerda.
Os
dois jornalistas, os dois passionais, os dois bons de briga, os dois com falhas
de caráter, os dois a alternar períodos de glória e desgraça, encarnaram uma
subtrama, na trama maior da história brasileira entre Getúlio Vargas e o golpe
de 1964, digna de uma parceria entre Shakespeare e Freud — Shakespeare para
destacar a grandiloquência do drama, Freud para sondar-lhe as origens nos
desvãos das almas.
No primeiro
ato da trama foram amicíssimos. O jovem Wainer frequentava o sítio dos Lacerdas
em Vassouras e Lacerda convivia com a família Wainer. “Lacerda tomou-se de
simpatia por ele. E Samuel podia passar horas ouvindo-o, sem se entediar”,
escreve Karla Monteiro. Na revista Diretrizes, criada por Wainer em 1938,
Lacerda foi um dos colaboradores. Lacerda era do Partido Comunista, Wainer não,
mas também se situava na esquerda. No confuso episódio em que escreveu um
artigo com críticas ao PCB e acabou expulso do partido, Lacerda foi procurar
consolo, altas horas da noite, na casa em que Wainer vivia com a primeira
mulher, Bluma Chafir. Segundo relato de Wainer, o amigo esmurrou e chutou a
porta até acordar o casal. Quando a porta lhe foi aberta, desabou, bêbado, no
chão. “Ele não parava de chorar e gemer, balbuciando sempre a mesma frase:
‘Mataram minha mãe, sou órfão’?”, contou Wainer.
No segundo ato
foram inimicíssimos. Na guerra contra a Última Hora, único título relevante a
apoiar Getúlio, travada pelos outros jornais e pelos políticos da UDN como
subproduto da guerra contra o presidente, Lacerda tocava o primeiro violino.
Denunciava em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, o financiamento governamental
de que gozara o jornal de Wainer. Pedia uma CPI para apurar os fatos. Lembrava tenebrosas transações do
passado de Wainer, como a contribuição que recebeu da Embaixada da Alemanha
nazista — ele, um judeu — para Diretrizes.
Wainer
lembrava de seu lado que Maurício Lacerda, o pai de Carlos, considerava o filho
como “morto”, por ter apoiado a mãe na belicosa separação entre Maurício e a
mulher. “Tudo nele é falso”, escreveu Wainer sobre o ex-amigo, “desde o seu
cristianismo ao seu anticomunismo, do seu oposicionismo à sua ética
profissional”. O mais certeiro golpe contra Wainer veio na manchete do Diário
de São Paulo: “Nasceu na Bessarábia!”. Até então, Wainer dizia ter nascido em
São Paulo, não nessa região do Império Russo (hoje da Moldávia). A notícia,
segundo o livro de Karla Monteiro, só pode ter vindo de Lacerda, que conhecia a
família na intimidade. Não sendo brasileiro nato, Wainer não poderia ser dono
de jornal.
A CPI, transmitida ao vivo na TV, grande
novidade naquele ano de 1953, levou a Última Hora e seu dono ao chão. Getúlio,
pressionado, retirou o apoio financeiro aos empreendimentos de Wainer, e os
anunciantes debandaram. Nelson Rodrigues, um dos colunistas-estrelas do jornal,
escreveu: “Meu Deus, podem pendurar um sujeito numa forca ou crivá-lo de balas,
ou beber-lhe o sangue como groselha. Mas ninguém tem direito de fazer o que a CPI fez com Samuel Wainer”. Aí veio o
espetacular suicídio de Getúlio e a maré virou. Nelson Rodrigues escreveu, no
dia seguinte ao suicídio: “Ele (Getúlio) apertou o gatilho e, antes que
morresse o som do tiro, Carlos Lacerda caía, lá de cima, do alto de sua ambição
cesariana. Sim, Lacerda estava à beira da onipotência e subitamente a perdia.
(…) A mesma unanimidade que pedira a cabeça de Samuel Wainer agora queria beber
o sangue de Carlos Lacerda. Carlos Lacerda era o assassino de um suicida”.
O livro de
Karla Monteiro (Samuel Wainer — O homem que Estava Lá, editado pela Companhia das
Letras), bem pesquisado e de leitura fluente, nos lembra que períodos de
polarização são tão velhos quanto a política. O de 1954 foi tão agudo que até
produziu um ilustre cadáver. O comentário de Nelson Rodrigues, tão mais
brilhante quanto disparado à queima-roupa, a poucas horas do trágico evento,
espelha o Júlio César, de Shakespeare, em que o discurso de Marco Antônio,
diante do cadáver de César, leva a multidão, antes anticesarista, a mudar de
lado. O conflito entre Wainer e Lacerda vai até 1964 e um pouco além, e termina
com dupla derrota. Lacerda apoiou o golpe, mas foi engolido pela ditadura
subsequente. Wainer perdeu a Última Hora, acumulou dívidas, conheceu o exílio e
morreu pobre.
Por Roberto Pompeu de Toledo, na Revista Veja
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