Os olhos vendados da deusa da justiça Thêmis simbolizam a indeterminação dos destinatários nos julgamentos da Justiça. Pouco importa quem está sendo julgado: todo mundo deverá receber o mesmo tratamento.
Os
princípios da imparcialidade e do juiz natural são exemplos de valores
estabelecidos para garantir a total e absoluta lisura do processo -a não
contaminação das decisões oriundas do Poder Judiciário.
Eis
que Eduardo Ubaldo Barbosa, um ex-assessor do Ministro Marco Aurélio, do STF,
que se desligou do tribunal há poucos meses, no exercício da advocacia
criminal, apresenta-se junto com sua sócia Ana Luísa Gonçalves Rocha para a
defesa de seu mais novo cliente, o rico e poderoso André do Rap, já condenado
há mais de 25 anos de reclusão em dois processos, com confirmação pela 2ª
Instância.
Poderoso
sim, pois numa das condenações, o objeto do crime de tráfico internacional de
drogas eram 4 toneladas de cocaína, e na data de sua prisão após quase um ano
de trabalho exaustivo da Polícia Civil de São Paulo, em sua mansão milionária
foram apreendidos dois helicópteros avaliados em cerca de 6 milhões de reais
cada, barcos de luxo, além de 4 milhões de reais em dinheiro vivo, entre outros
bens.
O
cliente, que ostenta posição de extrema relevância na hierarquia do crime
organizado no Brasil, com ligações estreitas com a italiana Ndrangheta,
considerada a principal organização criminosa em operação no mundo hoje, foi
beneficiado pelo ajuizamento de diversos habeas corpus no STF. Quando se
percebia que a distribuição não apontava o destinatário obviamente pretendido
desde o início, desistia-se do pedido.
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Até
que alguma das ações finalmente foi distribuída para o ministro Marco Aurélio e
foi mantida. E a manobra representa ato de quebra do princípio do juiz natural,
mascarada de legalidade. O princípio visa impedir a existência do chamado 'juiz
de encomenda', expediente que frustra a justa e ética distribuição da justiça,
violando o juiz natural.
Mesmo
assim, cabia ao ministro dar-se por impedido de apreciar a ação, pelo vínculo
que manteve até pouco tempo com o advogado, seu ex-assessor. Na dúvida, a
preservação da imparcialidade com o primado da ética para evitar conflitos de
interesses sempre deve falar mais alto. Entretanto não se declarou impedido de
julgar.
E
o ministro Marco Aurélio acolheu o pedido feito pelo escritório seu
ex-assessor, para colocar em liberdade o megatraficante, com base num
dispositivo criado pela Lei 13.964, sancionado em 24 de dezembro de 2019, o
chamado pacote anticrime, que, no caso, em verdade, nenhuma característica
anticrime possui, vez que foi introduzido no projeto na forma de 'jabuti'
legislativo de autoria do deputado federal Lafayette de Andrada, do
Republicanos-MG.
O
dispositivo, que tem ares suíços para realidade tupiniquim, mudou as regras da
prisão preventiva, passando a exigir sua reavaliação a cada 90 dias. São
inúmeros os precedentes já interpretando este dispositivo no sentido de que
esta revalidação é exigível antes da sentença. A partir do momento da sentença,
quando o juiz determina que o condenado deve aguardar o resultado de eventuais
recursos preso, como é o caso de André do Rap, a revalidação não mais faria
sentido.
Ainda
que se considerasse que o ministro Marco Aurélio divirja da interpretação que
prevalece absoluta, se entendesse que o juízo de primeiro grau deveria
revalidar a prisão trimestralmente, que determinasse o envio dos autos para tal
juízo para que se pronunciasse sobre a revalidação ou não, especialmente diante
das circunstâncias do caso, que não dizem respeito a um ladrão de galinhas ou a
um batedor de carteira de estação ferroviária.
Infelizmente,
resolveu o ministro ignorar os precedentes e o bom senso elementar. E
determinou a soltura pedida, atendendo o pedido radical conveniente do
ex-assessor. E, como já explicado, ter sido ele o magistrado a decidir o caso
não foi obra do acaso.
Poderia
diante disto a PGR recorrer ao presidente do STF imediatamente, ante a urgência
do caso. Afinal houve um hiato de tempo entre a divulgação da decisão (sexta) e
a soltura do preso (sábado). Mas o pedido foi tardio. Feito somente após a
libertação do megatraficante e, por isto, de nada adiantou a revogação da
soltura decidida pelo presidente do STF.
Porque
obviamente o endereço que o Ministro Marco Aurélio 'exigiu' fosse indicado para
ser encontrado o preso era frio (como se isto gerasse alguma espécie de
segurança para a sociedade, endereço este obviamente que o gabinete do digno
Ministro do STF não checou a veracidade) e, mesmo com acompanhamento terrestre
de agentes policiais, num determinando ponto da rota, há informações de que um
avião particular transportou André do Rap para local desconhecido e partir dali
a Polícia obviamente não tinha como manter o acompanhamento.
Os
acontecimentos deixam um sabor de profunda amargura e desesperança, decorrente
da constatação de que o sistema não nos protege de criminosos perigosos. Ao
contrário, concede-lhes indevidamente a liberdade, mas com base em lei aprovada
no Congresso, no momento em que bem quiserem sob nossos narizes, depois de anos
de trabalho e depois de consumir recursos investidos em processos para edificar
inutilmente suas punições.
Para
que esta terrível experiência deixe algum legado positivo para a cidadania
brasileira, é imprescindível que a Câmara dos Deputados se reposicione de forma
ampla, orientando-se pela supremacia do interesse público e observe a
necessidade de aprovarmos a prisão após condenação em segunda instância (como
faz o mundo democrático ocidental), pendente de deliberação, assim como o
ajuste neste dispositivo legal que permitiu a soltura de André do Rap.
Que
preste extrema atenção no relatório ainda clandestino, já que não protocolizado
formalmente, elaborado pelo relator deputado federal Carlos Zarattini,
referente ao PL 10887/18, cujo teor propõe suavização inaceitável das punições
a corruptos, por exemplo a supressão pura e simples do artigo 11 da Lei de
Improbidade, lei esta que se constitui no mais importante e mais utilizado
instrumento legal de combate à corrupção no Brasil.
Que
se preste atenção nos trabalhos da Comissão instituída para 'rever' a Lei de
Lavagem de Dinheiro, tendo como integrantes os advogados de Geddel Vieira Lima,
de Eduardo Cunha e Lula, sem composição paritária com membros do MP e cujo
relator é o magistrado federal Ney Bello Filho, que concedeu prisão domiciliar
ao mesmo Geddel e que relatou a rejeição de uma das denúncias criminais
oferecidas em face de Michel Temer.
Além
disto, que o Senado cumpra sua missão republicana rejeitando duas indicações
que lhe foram feitas em nome da supremacia do interesse público. De Kassio
Nunes Marques, acusado de crime de falsidade ideológica acadêmica para o STF e
de Jorge Oliveira, afilhado do presidente, seu fiel escudeiro, escalado para
fiscalizar as contas da União e via de consequência, do próprio padrinho, no
TCU.
Isto
significaria que entre 'mortos e feridos, muitos se salvaram' e que falou mais
alto a preponderância do interesse da sociedade, que sempre inspirou o digno
exercício da magistratura de Celso de Mello que hoje se aposenta no STF,
exemplo vivo de independência, devoção sacerdotal à função jurisdicional,
defesa intransigente da constituição e dos direitos fundamentais, de notável
saber jurídico e reputação ilibada. É o que se espera. Com a palavra, o
Congresso Nacional.
Por
Roberto Livianu, no Poder 360
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