Procurador critica Bolsonaro por
falar em fim da corrupção e da força-tarefa. Ele também diz que se houver
prorrogação do estado de calamidade para manter gastos, como o do auxílio
emergencial, país perderá o controle do endividamento e poderá ter estagflação
A
distribuição das investigações da Lava-Jato para outros estados pode gerar
perda de qualidade dos trabalhos. É o que defendeu o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira. Em entrevista ao programa CB.Poder,
parceria entre o Correio e a TV Brasília, ele rebateu comentários de políticos
de que os inquéritos da operação deveriam ser descentralizados. Atualmente, a
"sede" da Lava-Jato é em Curitiba.
Oliveira, que
atuou no impeachment da presidente Dilma Roussef, ao apontar as pedaladas
fiscais da petista, fez um alerta sobre o rombo fiscal causado pelo auxílio
emergencial e as consequências de uma eventual prorrogação do benefício para
depois de 2020. De acordo com ele, isso poderia gerar consequências econômicas
que deixariam a sociedade em um patamar parecido com o dos anos 1980, com
inflação galopante e o país estagnado. Confira e entrevista:
O presidente Bolsonaro disse que a Lava-Jato não é mais necessária porque
acabou a corrupção no
governo. Acabou mesmo?
De modo algum. Foi uma frase muito infeliz e equivocada do presidente. Há mais
de 400 inquéritos, de investigações em curso, só na força-tarefa de Curitiba.
Há muito trabalho a
ser feito, e não cabe ao presidente da República acabar ou não com a Lava-Jato.
Isso é uma consequência do esgotamento dos fatos a serem investigados, que
acontecerá em algum momento, e é uma atribuição do Ministério Público e do Poder Judiciário. Não tem razão para
o Poder Executivo pretender interferir em uma operação como essa, que não só é
uma das maiores da história do país, como, talvez, uma das maiores do mundo no
combate à corrupção.
No Rio de Janeiro, há um estudo recente sobre a relação das milícias com o
crime organizado. Como o senhor vê essa questão?
A situação da segurança pública no
Rio é gravíssima. Há muitos anos, vem se desenvolvendo esse quadro de
incapacidade da segurança pública de
dar uma resposta à sociedade carioca, para que o cidadão possa andar na rua com
tranquilidade e paz. Há morros dominados por tráfico e outros pelas milícias e
agora que eles estão se associando, a expectativa é de que tenham um poder
ainda maior. O estado tem de se equipar, com pessoas, materiais e inteligência.
O Judiciário tem de dar uma resposta nos processos penais que são propostos. O
sistema penitenciário tem de funcionar bem para isolar as lideranças,
desmantelar as organizações. Todo um conjunto de órgãos tem de se articular
para um enfrentamento dessa magnitude.
Tivemos o caso do André do Rap, que foi solto pelo ministro Marco Aurélio
Mello, do STF. O deputado Lafayette, autor desse artigo que permitiu a soltura,
disse que a ulpa não foi dele, e, sim, do ministro. O que acha?
Todos estão, a meu ver, errados. O deputado, que fez a introdução da norma,
porque, do ponto de vista da exequibilidade, da operacionalidade, é
inexequível. Os juízes não podem parar de julgar os casos para ficarem o tempo
todo fundamentando novamente as prisões preventivas que já estão acontecendo.
Isso é um volume de trabalho que
vai tirar a eficiência do Judiciário. No caso do Supremo, tem o problema da
distribuição de processos que permitiu que os advogados entrassem com nove
habeas corpus e, depois, desistiram, porque não caíram com um ministro que
achavam que seria simpático à causa. Quando caiu com o ministro Marco Aurélio,
ele foi em frente e concedeu a ordem.
Essa prática é permitida?
Isso é uma fraude processual,
que o sistema falho permitiu. Acontecia nos tribunais, mas foi eliminado por
uma regra no novo Código de Processo Civil. O primeiro juiz para quem foi
distribuído fica prevento. Se houver desistência depois do ingresso de uma nova
ação, vai cair para ele. Então, não adianta fazer isso. No Supremo, isso não
estava sendo observado. Agora, o ministro Fux (presidente do STF) disse que, a
partir de agora, será. A meu ver, o ministro Marco Aurélio tem todo o direito
de ter suas próprias convicções, mas acho lamentável que a gente não leve em
consideração as consequências do funcionamento do sistema criminal das decisões
que são tomadas. A gente não pode adotar aquele princípio jurídico
"faça-se a justiça e pereça o mundo". Se não olharmos para a
realidade, nunca vamos aplicar o direito bem. Só para recapturar esse traficante
já se gastaram mais de R$ 2 milhões. E esse não é o principal problema, mas é
todo o mal que ele poderá fazer liderando a organização criminosa dele. É muito
esforço no combate ao crime para depois colocar todo mundo em liberdade com
essa facilidade.
E a segunda instância no Congresso?
Isso, a sociedade está esperando. A prisão em segunda instância é estrutural,
dela depende o funcionamento efetivo do sistema penal, especialmente sobre os
crimes de colarinho-branco. O autor do crime percebe que não tem chance de ser
punido, então, pratica o crime. E se for descoberto, contrata advogado e espera
o processo prescrever, como todos os outros fazem. Esse sistema incentiva a
prática do crime.
Tivemos vários filhos de ministros, e até ministros, envolvidos em escândalos que,
até hoje, não foram explicados. Como fica isso dentro do TCU?
É grave. O ideal é que esses inquéritos evoluam o mais rápido possível, para se
ter esclarecida a inocência ou culpa do envolvido. Eu não entendo porque não é
tão rápido. Está na Procuradoria-Geral da República, essas investigações passam
de um procurador para o outro. Realmente, há uma diferença de agilidade nas
investigações que acontecem em Curitiba e as que acontecem na PGR. Desde o
início da Lava-Jato foi assim. Isso é uma consequência negativa desse foro
privilegiado que não tem mais razão de existir.
Há, agora, a polêmica da vacina. O governo não quer que seja obrigatória, não
aceita a da China, quer a da Oxford. Está certo?
É preciso fundamentar as decisões. Se vai comprar de um e não de outro, tem de
mostrar quais as vantagens, mostrar a comparação. Os estudos clínicos, a
comissão de cientistas da Anvisa, o Ministério da Saúde é que têm de fazer essa avaliação. Não deveria existir
nenhum tipo de discriminação da vacina pela origem.
Não comprando, e a vacina sendo eficiente, pode ser considerado improbidade
administrativa?
Se ele deixar de comprar uma eficiente para comprar uma ineficiente, sem
dúvida. Se essa hipótese ocorrer, pode acabar na Justiça. Mas a gente ainda
está distante de estabelecer a eficácia dessas vacinas.
E a obrigatoriedade da vacina?
Do ponto de vista lógico, faria sentido, porque a pessoa que não toma vacina
não está colocando em risco apenas a si, mas também a comunidade. Mas, do ponto
de vista operacional, político, não há como fazer isso de forma obrigatória. A
gente precisa convencer as pessoas dos benefícios da vacina. Mas o ideal é que
não precise ser obrigatório. É preciso que haja campanhas de conscientização
para que o governo não precise ser autoritário.
O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, falou sobre a possibilidade de um
plebiscito para a revisão da Constituição. Qual é o seu ponto de vista?
Extremamente temerária essa declaração e essa ideia. Seria: vamos refundar o
Brasil do zero. Primeiro, teria de ter uma eleição só para isso, porque os
atuais parlamentares não têm legitimidade para isso. Eles têm legitimidade
conferida para fazer PECs, emendar partes. Fazer uma nova Constituição do zero
teria de ser um sentimento nacional muito forte e com pessoas eleitas apenas
para essa finalidade, que não poderiam se misturar com os congressistas. Isso
foi um erro da Constituição de 1988, porque muito daquilo que foi estabelecido
na Constituição foi estabelecido em benefício dos próprios congressistas. A
nossa Constituição não é ruim, é muito boa. Os problemas de governabilidade que
temos, grande parte decorre de má gestão econômica. Quando o país estava
crescendo, com a situação fiscal bem, ninguém falava de Constituição, estava
todo mundo feliz. Outra coisa é esse presidencialismo de coalizão. Presidente
tem de angariar aliados mediante a distribuição de cargos, liberação de
emendas. Isso é o que traz ingovernabilidade. O deputado disse que os juízes e
procuradores são causa de ingovernabilidade. Não são as instâncias que lutam
contra a corrupção que
deixaram o Brasil ingovernável. São esses que atuam apenas movidos pelo
interesse da corrupção.
Governo tem outro problema pela frente: o fim do auxílio emergencial. Tem toda
uma discussão em relação à prorrogação. Qual é a saída?
Nós não vamos ter dinheiro para prorrogar no nível que foi gasto. Já foi
prorrogado até dezembro, mais duas parcelas. Estamos gastando R$ 254 bilhões
com auxílio emergencial, em um país que tem uma receita corrente líquida de R$
1 trilhão, R$ 1,2 trilhão. Então, estamos gastando 20%, 25% da nossa receita
corrente líquida com auxílio emergencial. É insustentável. Isso em gastos até o
fim do ano. Os R$ 600 não são muito dinheiro, mas, para um país onde há muita
pobreza, um sistema arrecadatório ineficiente e que está com endividamento
alto, nós gastamos mais do que podíamos. Então, o Brasil foi um dos países que
mais gastaram com a pandemia em proporção do seu PIB. Vamos ter de reduzir, e
bastante, esses valores.
Como fazer isso?
Se ele insistir na ideia do Renda cidadã, precisa mostrar as fontes de
recursos. Ele vai juntar programas já existentes, ou talvez, criar um imposto
para financiar. Essa licença que a legislação da pandemia concedeu ao governo
para se endividar por essas despesas acaba quando acabar o período de pandemia.
Então, você não pode manter um programa continuado de custeio com recursos de
endividamento. Uma hora a dívida explode e ela já está em um patamar muito
elevado.
Mas, para o primeiro trimestre de 2021, tudo indica que o estado de pandemia
será o mesmo.
Se prorrogarem o estado de calamidade para autorizar esse tipo de gasto,
estaremos aumentando o buraco fiscal. Não existe mágica. E os investidores
estão vendo. Nossa dívida vai explodir este ano. Se nós continuarmos nessa
trajetória, vamos perder o controle da dívida. Vamos entrar naquela situação de
dominância fiscal, em que a política monetária já não faz mais efeito para
estimular ou não a economia. Voltaremos ao período pré-plano real. Aí, você joga
taxa de juros para o alto, vive um quadro de estagflação: um país estagnado e
com alta inflação. É o pior dos mundos. Hoje (ontem), o presidente editou um
decreto da estratégia federal de desenvolvimento,
em que ele coloca três cenários: um de referência, em que há o controle fiscal
sem muitas reformas; um otimista, transformador, em que muitas reformas são
feitas, o Brasil ganha produtividade e a economia cresce; e outro ruim, de
descontrole da dívida pública, em que nós vamos perder o bonde da história. Esse
cenário ruim tem uma possibilidade considerável de ocorrer. Eu sei que a
vontade política é de fazer o bem, permitir à sociedade ter esse benefício, mas
o fato é que ele é insustentável.
Por Denise Rothenburg, Israel Medeiros, Bruna Pauxis,
no Correio Braziliense
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