Maiores valores pagos para magistrados por determinação judicial ou administrativa são por conta de verbas e férias acumuladas
As folhas de pagamento do Judiciário registraram,
entre setembro de 2017 e agosto deste ano, cifras que superam as estampadas em
plaquetas de lotéricas Brasil afora. No último dia 12 de setembro, a Mega Sena
sorteou um prêmio de R$ 6 milhões, meno s do que recebeu em dezembro de 2017 a
pensionista de um magistrado do Ceará.
Os 15 desembolsos mais altos, analisados pela Folha, decorrem de decisões
administrativas ou judiciais determinando a concessão de verbas acumuladas para
juízes da ativa e inativos e, em alguns casos, seus dependentes.
A maioria dos beneficiários recebeu os valores altos uma única vez, ao reclamar
pensões e pedir revisão de aposentadorias, ou mesmo foi indenizada por férias
não usufruídas no momento de pendurar a toga. Como a magistratura tem 60 dias
de descanso assegurado por ano, o dobro do trabalhador comum, o acúmulo desses
períodos não é raro.
Nas tabelas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), aparecem casos de julgadores
que formaram um colchão de mais de 500 dias, convertido em dinheiro ao se
retirar.
A reforma administrativa em discussão no Congresso, que não atinge juízes e
outras carreiras da elite do Estado, acaba com as férias de mais de 30 dias
para algumas categorias do funcionalismo.
Dei5 pagamentos mais polpudos, nove são de TRTs (tribunais regionais do Trabalho).
Em dezembro de 2017, o da 7ª Região (Ceará) desembolsou R$ 8,2 milhões brutos
para Francisca de Assis Alves, valor referente ao reconhecimento de pensão de
um juiz. A decisão foi da Justiça, num processo que chegou ao Supremo Tribunal
Federal.
A pensão passou a ser paga em setembro de 2005, mas valores devidos de 1993 até
aquele ano ficaram na planilha de passivos administrativos, aguardando
disponibilidade orçamentária, segundo a corte.
O principal da dívida era de R$ 1.6 milhão. mas, com juros e atualização
monetária, passou a ser de R$ 8,2 milhões em dezembro de 2017. Com os
descontos, o rendimento foi de R$ 7,2 milhões.
Em caso semelhante, o TRT7 também pagou naquele mês R$ 883 mil (683 mil com
descontos) a Lucinea Ferreira da Costa por pensões retroativas de 2010 a 2014.
o direito à pensão foi reconhecido por ato próprio do tribunal.
Também em dezembro de 2017, o TRT-5, da Bahia, pagou R$ 3,5 milhões brutos para
quitar débito com o juiz Antônio Jorge da Cruz Lima.
Em 2002, ele foi aposentado por invalide z p elo tribunal, após dois anos de
afastamento médico, mas questionou a decisão por suposto descumprimento de
dispositivos legais. Um dos argumentos foi o de que a aposentadoria foi
decidida de forma monocrática, e não colegiada. Anos depois, o CNJ lhe deu
razão.
O valor recebido (R$ 2, 8 milhões líquidos) refere-se principalmente à
diferença entre os proventos de inativo para os de magistrado da ativa entre
dezembro de 2002 e setembro de 2014, informa o tribunal.
Em outro processo, o TRT5 desembolsou naquele mês R$ 729 mil (R$ 660 mil com
descontos) por causa de ajuste na pensão paga a Maria Auxiliadora Silva
Ribeiro. Os créditos, explica a corte, foram apurados e pagos por causa de
decisão do TCU (Tribunal de Contas da União).
No topo da lista, também aparecem dois pagamentos de R$ 1,2 milhão brutos cada
(cerca de R$ 850 mil líquidos) feitos pelo TJ-PE (Tribunal de Justiça de
Pernambuco), em novembro e dezembro do ano passado, a juiza Marylusia Pereira
Feitosa de Araújo.
Ela integra um grupo de magistrados que recebeu quantias elevadas do TJ naquela
época. Entre eles, também consta Fausto de Castro Campos, com rendimentos
totais de R$ 767 mil em novembro (R$ 699 líquidos).
A corte não se pronunciou. Na ocasião dos repasses, alegou que, em geral,
decorrem de férias acumuladas.
O tribunal informou que Marylusia ficou afastada das funções e foi reintegrada
por um mandado de segurança. Assim, a corte teve que pagar valores retroativos
por forçada lei. O motivo do afastamento e os detalhes do pagamento não
foram detalhados.
No TRT-15 (Campinas), o juiz Hamilton Luiz Scarabelim e o desembargador Jorge
Luiz Costa se aposentaram em 2019 com direito a R$ 932 mil (R$ 818 mil
líquidos) e R$ 652 mil (R$ 643 líquidos), cada.
Os valores são de acertos da gratificação por exercício cumulativo de
jurisdição, custeio médico, gratificação natalina e indenizações de férias não
gozadas, entre outras verbas, explicou o tribunal.
Scarabelim recebeu por 460 dias não usufruídos e mais 87 trabalhados nas
férias, totalizando R$ 886 mil; já Costa, por 390 dias não aproveitados (R$ 624
mil).
Caso semelhante se deu no Tribunal de Justiça do Paraná em setembro de 2017. A
aposentadoria do juiz Mareio Geron gerou um holerite de R$ 640 mil (R$ 622 mil
líquidos), referentes a 452 dias de férias, informou a corte.
Em Minas Gerais, o TJ pagou R$ 760 mil (R$ 750 mil líquidos) em abril de 2019 a
Paulo Antônio de Carvalho. Segundo o TJ, ele integra grupo de magistrados que
receberam, quando da aposentadoria, por férias e férias-prêmio não
gozadas.
Foi também por conta de férias represadas, de acordo
com o TRT-3 mineiro, que Rogério Valle Ferreira obteve R$ 558 mil (R$ 536 mil
com descontos) ao se aposentar.
Pelo mesmo motivo, o TRT9, do Paraná, pagou R$586 mil
(R$ 572 mil líquidos) na aposentadoria de seu ex-corregedor, Ubirajara Carlos
Mendes. Ele não tirou todas as férias porque, segundo o tribunal, acumulou
atividades, como a substituição de ministros do TST (Tribunal Superior do Trabalho).
Houve também casos como o do desembolso de R$1,1
milhão brutos para, segundo o TRT de Minas, quitar débitos com o espolio da
magistrada Maria Auxiliadora Machado Lima.
Em Rondônia, o juiz Leo Antônio Fachin, do Tribunal de
Justiça, foi aposentado compulsoriamente em 2010. Contudo, via recursos, obteve
a revisão de valores, disse a corte. Em junho do ano passado, essas diferenças
foram quitadas nos valor de R$ 555 mil (R$ 428 mil com abatimentos).
Considerados pela Folha, os tribunais afirmaram que os
pagamentos se deram a partir de decisões da Justiça ou administrativas deles
próprios, do TCU e dos Conselhos Superior da Justiça do Trabalho (CSJT)
e Nacional de Justiça (CNJ), baseados em leis e em normas desses
colegiados.
No caso do pagamento de férias, o CNJ aprovou em 2011
resolução que autoriza a indenização de dias não gozados, “por absoluta
necessidade do serviço, após o acúmulo de dois períodos”.
O mesmo texto libera outras verbas e foi editado a
título de equiparar direitos dos juízes com os de outras categorias, como as de
promotores e procuradores do Ministério Público, evitando “discriminação,
contrária ao preceito constitucional”, e “desequilíbrio entre as
carreiras”.
Na época, o colegiado também alegou a necessidade de
“preservar a magistratura como carreira atrativa face à paridade de
vencimentos”.
Professora do Departamento de Ciência Política da UFMG
(Universidade Federal de MG) e coordenadora do Observatório da Justiça no
Brasil e na América Latina, Marjorie Marona diz que muitos dos passivos pagos à
magistratura são, de fato, pelo reconhecimento de benefícios previstos em
normativos legais.
Ela afirma que a carreira se estruturou ainda sob o
legado de “instituições autoritárias”. Na fase de redemocratização, a
reorganização buscou assegurar direitos e prerrogativas aos juízes como forma
de preservar um “elevado grau de independência - princípio fundamental em
democracias”.
A professora ressalta que, embora não seja possível
fazer uma análise sobre decisões administrativas específicas, trabalhos
acadêmicos apontam genericamente para o fato de que, ainda que os conselhos da
magistratura e do Ministério Público tenham sido criados sob uma
discurso de maior controle sobre as classes, na prática eles atuam muito mais
na afirmação da posição institucional dos respectivos órgãos ou Poderes.
“Isso passa por uma afirmação das carreiras. Conselhos
não aumentam o controle da atuação do Judiciário e do MP, ampliam a capacidade,
aposição institucional desses corpos”, comenta.
Ela afirma, por exemplo, que o CNJ, segundo estudos,
ama mais na expansão da autonomia do Judiciário do que propriamente em seu
controle.
Conselhos [da magistratura e do Ministério
Público] não aumentam o controle da atuação do Judiciário e do MP, ampliam a
capacidade, a posição institucional desses corpos
Marjorie Marona Ciência Política da UFMG e coordenadora do Observatório da
Justiça no Brasil e na América Latina
Teto salarial é obedecido e está defasado, diz
associação
Refratárias a reforma, entidades reclamam que
remuneração não é corrigida
OUTRO LADO
Associações de classe da magistratura afirmam que os pagamentos que vêm sendo
feitos a juízes de todo o país obedecem ao teto salarial constitucional e que,
na prática, as remunerações estão defasadas.
O presidente da Ajufe (Associação dos Juizes
Federais), Eduardo André Brandão, afirma que os magistrados dessa esfera do
Judiciário recebem vencimentos limitados ao teto salarial.
“Notícias de pagamentos superiores ao limite
estabelecido pela Constituição não se referem à realidade da Justiça Federal”,
afirmou em nota.
Ele alega que os magistrados têm direito a revisão
anual dos salários, equivalente ao dissídio coletivo das carreiras privadas,
para repor a inflação.
“Nos últimos 16 anos, só houve seis revisões. Esses
descumprimentos constantes permitem, no caso dos magistrados estaduais, pedidos
nas Assembleias Legislativas, o que pode ter gerado algumas discrepâncias. Mas
essas situações não se aplicam à Justiça Federal.”
Brandão afirma que uma eventual reforma administrativa
focada no corte de extras salariais seria inócua no âmbito da magistratura
federal.
“Na esfera da Justiça Federal, essas verbas
simplesmente não existem. Se for seguir esse caminho, será uma reforma sem
nenhum ganho concreto”, escreveu.
A Folha questionou o Conselho da Justiça Federal
(CJF), mas o órgão não informou quais verbas podem ser pagas pelos tribunais
regionais federais e quais, não.
O presidente da Ajufe diz que o governo tomou a
decisão correta ao não incluir a magistratura na proposta de reforma
administrativa enviada ao Congresso.
“A Ajufe concorda com o Poder Executivo e valoriza a
segurança jurídica buscada, já que qualquer proposta de reforma administrativa
para o Judiciário tem que partir do STF (Supremo Tribunal Federal). Pois se
trata de outro Poder e não pode haver interferências.”
A presidente da Anamatra (Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho), No emia Aparecida Garcia Porto,
sustenta que essa esfera do Judiciário tem contracheques simples, com o
pagamento de poucos extras salariais. Tanto que a média do contracheque,
segundo os dados do CNJ, é de R$ 40 mil brutos.
Ela cita como exemplos de verbas pagas os auxílios
alimentação, pré-escola e natalidade, a gratificação por acúmulo de jurisdição
e o abono-permanência (para profissionais em condições de se aposentar).
“Auxílio não sei o quê, auxílio-livro, essas coisas
não fazem parte da nossa realidade, porque a gente se submete à legislação
federal”, comenta.
Porto destaca que a Anamatra sempre defendeu o regime
de subsídio (salário) único para os magistrados, “de valor transparente e com
reajuste anual”, conforme previsto na legislação.
Contudo, segundo ela, os aumentos não vêm sendo
aplicados e há atualmente uma defasagem nas remunerações. “Até abril de 2019,
as perdas acumuladas, retirando os seis reajustes que aconteceram, beiravam os
40%.”
Isso se soma às graves dificuldades orçamentárias,
afirma, pois em 2016 a Justiça do trabalho sofreu corte
orçamentário.
A magistrada alega que a situação da Justiça do Trabalho destoa
da verificada na esfera estadual, na qual houve a criação de extras que não se
aplicam à realidade dos TRTs.
“É difícil dizer o que levou cada TJ a essa criação
por lei dessas parcelas. Anão observância dessa fórmula [de reajuste
anual] é um dos fatores que acabaram contribuindo - não é o único - para essa
proliferação de parcelas.”
A presidente da Anamatra diz ainda que a entidade é
“refratária” à reforma administrativa como está posta, tanto para servidores
quanto para magistrados, pois ela implica a precarização do serviço
público.
No caso da magistratura, ela diz que mudanças dessa
natureza têm, sim, por imposição constitucional, de partir do próprio
Judiciário.
“Juizes não são servidores públicos. Eles ocupam uma
carreira de Estado. Para manter minimamente o equilíbrio entre os Poderes, para
[a reforma] atingir membros de um Poder, tem de ser iniciativa do próprio
Poder. Porque senão, cada um - o Legislativo de vez em quando, o judiciário
algumas vezes fica nas mãos dos governos de plantão. Acaba com a higidez da
ideia de separação dos poderes”, comenta.
Procurada pela Folha, a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), que congrega principalmente entidades representativas de
juizes estaduais, disse que a magistratura deve ser remunerada “de acordo coma
Constituição, considerando todas as especificidades, limitações e atribuições
que o cargo impõe”.
“Valorizar a magistratura é fortalecer o sistema de
Justiça para que todas as funções sejam cumpridas com independência, autonomia
e transparência”, disse a presidente da entidade, Renata Gil, em nota.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça
Por Folha de
S. Paulo
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