Os bastidores da falência do Rio de Janeiro, onde
a corrupção ergue e derruba governos — e sobrevive
Era noite de sexta-feira, dia 11 de outubro de
2019, quando o carro oficial do estado do Rio de Janeiro e batedores de
giroflex ligados deixaram o então governador Wilson Witzel (PSC-RJ) no Palácio
Laranjeiras. Dirigindo-se à varanda, cumpriu a rotina de descompressão que
costumava praticar às quintas ou sextas-feiras. Afrouxou a gravata e contemplou
a mesa de jantar na varanda, em que uma toalha branca de linho abrigava uma
caixa de charutos cubanos da marca Cohiba, queijos e vinhos. Entre uma tragada
e outra, acompanhado da mulher, Helena Witzel, e de dois convidados, passou
três horas divagando sobre o cenário político nacional, quase sem se referir a
assuntos ligados à administração de seu estado.
Na conversa que invadiu o início da madrugada, Witzel externava delírios. Dizia
ser o político mais popular do Brasil em razão de seu governo não ter
apresentado escândalos de corrupção e celebrava o reconhecimento
notado em suas visitas a outros estados. Dava como certa a chegada ao Planalto
em 2022 e, quem sabe um dia, brincava, ao posto de secretário-geral da
Organização das Nações Unidas. Por fim, comemorava sem pudores a hipótese de o
presidente Jair Bolsonaro não completar o mandato diante do avanço das
investigações envolvendo a vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL).
Menos de um ano depois, o futuro vislumbrado pelo ex-juiz apresenta-se com
sinais trocados. O envolvimento da família presidencial no homicídio foi
completamente descartado pela Polícia Civil fluminense, a despeito da euforia
inicial na cúpula do governo do Rio com o caso. Além disso, a possibilidade de
Bolsonaro tornar-se alvo de um processo de impeachment passou a ser remota
diante de sua aliança com o centrão, minuciosamente cultivada à base de cargos
e liberação de recursos — sem contar o impulso dado pelos R$ 600 a sua
popularidade. Contra todas as expectativas de Witzel expostas naquela noite de
outubro, quem corre sério risco de sucumbir é ele próprio.
Na quarta-feira 2, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou seu
afastamento do cargo por 180 dias após o Ministério Público Federal
(MPF) acusá-lo de corrupção e lavagem de dinheiro. O movimento pode
tornar-se definitivo caso a Assembleia Legislativa do Rio aprove o impeachment
nas próximas semanas e uma comissão composta com o Tribunal de Justiça do Rio
confirme a decisão — o que provavelmente ocorrerá devido a sua falta de apoio
popular e base parlamentar. Assume agora o cantor católico Cláudio Castro
(PSC-RJ), seu vice e até outro dia um desconhecido ex-vereador gago. Ele também
é investigado pela Lava Jato e já foi alvo de busca e apreensão por suspeitas
de também estar envolvido em corrupção.
O estado que viu seus últimos quatro governadores serem presos assiste ao
ex-juiz que se elegeu na esteira do discurso de combate à corrupção enrolar-se
em trama parecida, numa demonstração de que os esquemas que imperam no Rio de
Janeiro transcendem partidos, ideologias e personagens da política. Da mesma
forma que os antecessores Anthony e Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz
Fernando Pezão, Witzel está sendo acusado por procuradores de coordenar um
esquema de desvio de recursos valendo-se do mesmíssimo tipo de gente
e método que saqueou bilhões de reais dos cofres públicos em administrações
passadas. Um “túnel do tempo”, como descreveu o procurador Eduardo El Hage,
chefe da Operação Lava Jato no Rio e responsável pela denúncia contra o
governador afastado.
O personagem-símbolo que une os tristes enredos ao longo de duas décadas de
roubalheira é o empresário Mário Peixoto, nome conhecido da política fluminense
devido aos contratos milionários que suas empresas abocanhavam no setor público
desde o início dos anos 2000 na área de fornecimento de mão de obra
terceirizada. Somente no atual governo, seus negócios com o estado chegavam a
cerca de R$ 900 milhões. Segundo a Lava Jato, Witzel se beneficiou enquanto
entregava licitações para Peixoto. Entre as demonstrações mais
cristalinas de vantagens obtidas pelo governador está o fato de o escritório de
advocacia de sua mulher, Helena, ter fechado três contratos de cerca de R$ 260
mil, sem comprovação de prestação de serviços, com empresas ligadas ao
empresário. A delação premiada do ex-secretário de Saúde do Rio Edmar Santos
guiou a rota do dinheiro.
Desde a campanha de 2018, a relação de Witzel com Peixoto era alvo de críticas
de seus adversários, como demonstra o vídeo que viralizou nos últimos dias, em
que o senador Romário o questionava com essa pergunta no debate da TV Globo.
Embora ele sempre tenha negado tal proximidade, ÉPOCA apurou dois episódios que
revelam como o empresário deu, sim, as cartas na campanha, graças ao
relacionamento construído com o ex-secretário de Desenvolvimento Lucas
Tristão, ex-homem de confiança de Witzel, e o pastor Everaldo Dias Pereira,
mandachuva do PSC nacional. Os dois foram presos na semana passada acusados de
se beneficiar dos desvios no estado. Peixoto foi preso em maio na operação que
desbaratou o esquema de desvios em contratos da Saúde do estado, perpetrados
durante a pandemia.
Há dois anos, o advogado Bernardo Santoro foi designado para fazer o programa
de governo de Witzel. Ele já havia feito o mesmo em 2016, quando Flávio
Bolsonaro se candidatou à prefeitura do Rio pelo PSC. Em determinado momento do
primeiro semestre, Santoro foi avisado de que o capítulo sobre a Saúde seria
redigido por Peixoto, justamente a área de seu interesse no estado com o avanço
das Organizações Sociais (OS). O advogado se irritou tanto que Peixoto acabou
topando suavizar a intromissão apresentando-lhe apenas slides que serviram de
base para o texto final do programa de governo.
Posteriormente, a interferência do empresário foi ainda mais explícita. Peixoto
passou a discordar da comunicação da campanha e tentou colocar duas pessoas
suas na área digital. O publicitário Alexandre Borges, marqueteiro da campanha,
foi obrigado a almoçar com o empresário e ouvir todas as suas reclamações.
Antes de agosto, acabou deixando Witzel, o que fez com que Peixoto desse ele
mesmo palpites na estratégia do então candidato que depois venceria Eduardo
Paes (DEM-RJ) no segundo turno. Procurado, Witzel afirmou que não sabe dos
fatos apresentados. “Desconheço a relação entre Alexandre Borges e Mário
Peixoto. O meu programa de governo foi escrito por Bernardo Santoro”, respondeu
em nota.
Mário Peixoto é apenas um dos vários empresários entranhados no setor público
do Rio desde o início do século que colocam suas fichas em diferentes campanhas
eleitorais para depois faturar milhões em contratos. Graças a suas relações com
os ex-presidentes da Assembleia Legislativa do Rio, os caciques emedebistas
Jorge Picciani e Paulo Melo, e depois com Witzel, conseguiu manter-se bem
posicionado independentemente do resultado nas urnas.
Segundo o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio, os governos passam e
os mesmos grupos corruptos continuam sugando os cofres públicos criminosamente
porque o dinheiro sujo fluminense chegou ao nível máximo de corromper até quem
deveria investigar os desmandos. “As licitações do governo acabaram
virando um ‘toma lá, dá cá’ e os sistemas de controle, como Tribunal de Contas
do Estado (TCE) e Ministério Público, chegaram até mesmo a ser cooptados.
Eram eles que deveriam ter atuado de forma preventiva”, disse Ismael.
Em quatro anos, a Lava Jato no Rio denunciou representantes de Executivo,
Legislativo e Judiciário, além de ex-chefes do Ministério Público do
Rio e do TCE. Para financiar tamanha engrenagem, três segmentos movimentaram
bilhões de reais no Rio nos últimos 20 anos. O fornecimento de mão de obra
terceirizada, liderado por Peixoto e pelo notório Arthur Cesar de Menezes
Soares Filho, mais conhecido como Rei Arthur; a construção civil, que levou a
Delta de Fernando Cavendish e a Odebrecht a colocarem de pé o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) lulista; e as concessões na área de transporte
público, em especial as empresas de ônibus, que criaram a chamada “caixinha da
Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do
Rio)”.
A perenidade dos sistemas de corrupção persistiu ainda que
adversários políticos tenham se revezado no poder. O casal Garotinho, que
governou o estado entre 1999 e 2006, abriu espaço para vários dos protagonistas
dos esquemas da era Cabral, seu inimigo declarado até hoje. Foi pelas mãos de
Garotinho e Rosinha que a Delta e o Grupo Facility, do Rei Arthur, conquistaram
os primeiros contratos no governo do estado. Naquela época, Mário Peixoto ainda
engatinhava nos negócios com uma cooperativa e não ameaçava o concorrente
Arthur, já poderoso no segmento de mão de obra terceirizada.
As investigações da Lava Jato destrincharam mais a relação pessoal entre
Garotinho e Benedito Júnior, executivo da Odebrecht e atualmente com delação
premiada homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Benedito Júnior
confessou em seu acordo que repassou R$ 20 milhões em caixa dois para o
ex-governador financiar as campanhas de Rosinha para a prefeitura de Campos,
Rio de Janeiro, em 2008 e 2012, e a do próprio Garotinho ao governo do estado,
em 2014. O ex-governador é tão próximo do executivo da Odebrecht que, quando
divulgou em seu blog as históricas fotos da “gangue do guardanapo”, em Paris,
omitiu que Júnior lá estivesse e o poupou do noticiário negativo. Garotinho,
que aparece com o apelido de “Bolinha” nas planilhas da Odebrecht, nega as
acusações.
Depois que Cabral assumiu, a partir de 2007, todos os fornecedores antes
fechados com Garotinho passaram a se relacionar com o novo inquilino do Palácio
Laranjeiras, este muito mais ávido por obter vantagens ilícitas, segundo as
investigações do MPF. A Odebrecht repassou R$ 79 milhões em propina a Cabral
para ganhar contratos de peso, como a reforma do Maracanã para a Copa do Mundo.
Fernando Cavendish, da Delta, bancou campanhas do MDB e presenteou a
ex-primeira dama Adriana Ancelmo com joias de R$ 800 mil depois de ganhar
contratos de reurbanização de favelas. Mas foi o Rei Arthur que custeou o mais
ousado pedágio. Comprou por US$ 2 milhões os votos de delegados que escolheram
o Rio como sede da Olimpíada de 2016. Todos os episódios já foram confessados
por Cabral em sua delação premiada homologada pelo STF.
O sistema de propinas confessado por executivos das empresas de ônibus em
delações premiadas homologadas pela Justiça também foi o mais democrático
possível em 20 anos. Inimigos que se enfrentarão nas eleições municipais em
novembro, o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM-RJ) e o prefeito Marcelo Crivella
(Republicanos-RJ) são apontados pelo ex-presidente da Fetranspor Lélis Teixeira
como recebedores de recursos ilegais em disputas eleitorais. Os dois negam os
episódios. Em uma campanha que se anuncia sangrenta, contudo, não poderão usar
a acusação contra o rival, para evitar o efeito bumerangue.
O cientista político Sérgio Praça, do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV),
enxerga mais dois pontos que tornam os esquemas de corrupção do Rio
persistentes a qualquer troca de governo, que vão além do já conhecido fato de
correntes políticas rivais e órgãos de controle terem sido corrompidos. “O Rio
se diferencia do resto do Brasil nesse período por ter presença muito baixa dos
partidos brasileiros mais programáticos, o PT e o PSDB, que têm políticas
públicas mais definidas. Além disso, há uma cultura política ligada à
violência, com a mistura no ambiente político de partidos, milícias e tráfico
de drogas”, afirmou.
De fato, crime e política muitas vezes se confundiram na história recente do
Rio — e este é um problema ainda mais profundo do que os desmandos desvendados
pela Lava Jato até agora. Um relatório deste ano do setor de inteligência da
Polícia Civil fluminense aponta que 1.413 favelas do estado são comandadas pelo
crime organizado — 81% ficando nas mãos de traficantes de três facções e 19%
com as milícias. Muitas vezes, é preciso negociar com o poder paralelo para
fazer campanha ou até mesmo expor material nessas áreas.
O Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ) já está atento para os movimentos
desses grupos em 2020 devido ao histórico recente de aproximação com o poder
oficial. Num emblema de como não há constrangimento por parte dos grupos
criminosos em atuar no setor público, há a história dos irmãos Natalino
(ex-deputado estadual) e Jerominho Guimarães (ex-vereador), acusados de
comandar a Liga da Justiça, o mais perigoso grupo paramilitar do Rio, e que há
14 anos apareceram ao lado de Cabral em comícios. Depois de anos presos, eles
retornaram às ruas e de novo buscam projetos políticos. A filha de Jerominho,
Carminha, será candidata a vereadora, e sua prima, Jéssica, será a vice da
chapa de Sued Haidar (PMB) na disputa pela prefeitura do Rio.
A Justiça também monitora o tráfico. Já mapeou que a maior facção criminosa do
Rio quer eleger um vereador neste ano. E que o irmão de Márcio dos Santos
Nepomuceno, conhecido como Marcinho VP, Cristiano dos Santos, pretende se
candidatar a prefeito de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Se a bandidagem
do tráfico, a das milícias e a empresarial não têm qualquer pudor em usar o
aparato eleitoral para se entranhar no poder público, espera-se que a Justiça
também não se acanhe em cumprir seu papel.
Por Thiago Prado, na Revista Época
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