Os efeitos de uma crise incomum como a provocada pela
pandemia não podem ser tratados de forma usual, mas a opção que o governo
brasileiro adota para financiar o necessário aumento de gastos não abre espaço
de ação e compromete a retomada da economia, os investimentos e um programa de
transferência de renda mais robusto, avalia o economista Nelson Marconi,
professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Ele reconhece que o aumento da dívida pública é um problema que merece atenção.
“A questão é como o governo escolheu financiar isso”, afirma. A transferência
de reservas do Banco Central ao Tesouro Nacional é importante, bem como o uso
da conta única, “mas o governo deveria ter adotado a mesma estratégia de países
como Estados Unidos, Inglaterra e Japão, que é se financiar com emissão
monetária, vender títulos para o BC”, ele diz, observando que a proposta exige
uma emenda à Constituição.
Assim, segundo Marconi, haveria mais espaço para gastos na pandemia e sem que o
Tesouro tivesse que oferecer títulos longos com taxas muito elevadas, como
exige o mercado, o que aumenta sua carga de despesas com juros.
Ele reforça que a ação precisaria ser acompanhada de uma sinalização de que a
situação fiscal melhorará à frente, para “tirar pressão” sobre a dívida pública
junto ao mercado. “Teria condições de enfrentar a crise, fazer esses gastos e
sair dela inclusive. Mas com a estratégia adotada, o governo está em uma
situação fiscal muito difícil e assim deve ficar.”
Marconi pondera também que o financiamento via emissão monetária não pode ser
corriqueiro.
“Estou falando da adoção em uma situação muito específica. Se fizer sempre, tem
aumento grande da oferta de moeda e o Banco Central perde o controle do seu
instrumento de política econômica, que é a taxa de juros”, afirma. Mas ele
também rebate a crítica comum de que uma medida do tipo agora pode gerar
pressão sobre os preços da economia. “Com queda de mais de 9% no PIB [Produto
Interno Bruto do segundo trimestre], algo entre - 6% e -7% para o ano, acho que
não é momento de pensar que haverá impacto inflacionário.”
Da forma como foi apresentado anteontem, insistindo na mesma estratégia de
financiamento e na irredutibilidade do teto de gastos, o Orçamento para 2021
“não tinha espaço para fazer muita coisa mesmo”, diz Marconi. “Não vejo nenhum
estímulo para a retomada.”
O setor exportador ajuda a minimizar a queda do PIB, mas outra parte da
recuperação precisa vir do investimento público, “porque o privado
despencou e não será nesse cenário que vai se recuperar”.
O problema, segundo ele, é que o governo corta ainda mais as despesas com
investimento no próximo Orçamento e faz “malabarismo” para justificar gastos
dentro das despesas emergenciais. Para Marconi, os investimentos públicos precisam
ficar fora do teto. Eles poderiam ser financiados por um fundo, alimentado com
recursos, por exemplo, da taxação de dividendos, de parte da reserva cambial
(algo como 10%) e da redução de subsídios setoriais. “O TCU [Tribunal
de Contas da União] apontou que subsídios federais somam mais de R$ 300
bilhões, se cortar 10% disso você já arrumou R$ 30 bilhões para investimentos
sem pressionar a dívida pública.”
A essência correta do gasto fiscal é ser contracíclico, observa Marconi, e o
fundo serviria como “contra peso” para manter o investimento público no
nível necessário mesmo nas crises, sem dispensar uma desejada melhora no
arcabouço institucional para projetos.
Ter alguma forma de controle sobre as despesas, sobretudo as correntes, é
“muito importante”, mas o economista defende que a regra do teto é inviável
desde sua criação. “Se a gente tivesse uma distribuição de renda melhor, eu até
entenderia, mas em um país com tanta desigualdade, vemos a necessidade de
investimento em saúde, educação, ciência, tecnologia. Colocar um teto que só é
corrigido pela inflação inviabiliza o país”, afirma. Marconi defende outro
critério para controle das despesas correntes, como evolução do PIB ou do PIB
per capita, bem como “válvulas de escape” para gastos sociais em períodos de
crise.
O impacto do auxílio emergencial escancarou essas desigualdades e,
independentemente de intenções eleitorais, ter um programa de transferência de
renda mais abrangente é importante, diz Marconi. Nesse caso, porém, o
financiamento precisa vir da parcela mais rica da sociedade, com a taxação de
lucros e dividendos, impostos sobre herança e, eventualmente, mudanças na
alíquota de Imposto de Renda. Ou seja, para ele, o programa deve ser
acompanhado de uma reforma tributária e também não pode estar dentro da lógica
atual de financiamento e investimento. “Senão, fica engessado. Tanto que o
governo recuou na proposta [do Renda Brasil], porque viu que, com esse
arcabouço que está aí, não tem espaço.”
Apesar do esforço recente do presidente Jair Bolsonaro para prorrogar o
auxílio, viabilizar o Renda Brasil e aumentar investimentos, Marconi diz não se
tratar de uma “guinada desenvolvimentista”. “Estratégia desenvolvimentista não
é só gastar mais e aumentar déficit, é saber investir, onde arrumar os
recursos, como expandir a dívida, com responsabilidade fiscal. O que está
colocado é mais por sobrevivência política do grupo do presidente do que
por desenvolvimento.”
Além disso, “não está no DNA” da equipe econômica liderada por Paulo Guedes
“usar o Estado em período de crise”, diz Marconi, que é também coordenador
executivo do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo (CND) da FGV. “Eles
não sabem o que fazer ou se recusam. Parte do governo começa a perceber isso e
o embate é esse. Do meu ponto de vista, o Guedes ainda está lá porque ele
aceita essa pressão, mas não acho que o presidente esteja achando ele mais tão
essencial assim."
Por Anaïs
Fernandes, no Valor Econômico
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