O problema é que o foro privilegiado,
independentemente de o aceitarmos ou não, pode ser um insuperável obstáculo
para os rumos da operação Lava Jato
Em toda essa história da prisão de Eike Batista, um aspecto pareceu
bastante curioso. A naturalidade com que as pessoas encaram as prisões
especiais para quem tem diploma de curso superior. Se a pessoa tem diploma, é
destinado a algo mais civilizado. Caso contrário, vai para a prisão comum, com
todas as suas misérias e a sua severidade. Já passei por várias cadeias do Rio,
inclusive Água Santa, num outro contexto, o do governo militar, e essas
distinções não tinham, pelo menos no nosso caso, a mínima importância.
Se tivessem, estaria perdido de todo jeito, pois não tenho diploma de
curso superior, assim como milhões de brasileiros. Nesse caso, não somos também
cidadãos de segunda classe? A maioria das pessoas de bem não pensa nisso porque
não considera, com razão, a hipótese de ir para a cadeia. Por que então
levantar essa tema? A cadeia especial para quem tem diploma é prima pobre de um
dispositivo muito mais nefasto: o foro especial no Supremo para as pessoas que
têm mandato político.
Mais uma vez, quem não tem mandato parlamentar ou cargo no governo pode
se sentir um cidadão de segunda classe. Além de ser julgado pela Justiça de
primeira instância, ele é destinado às cadeias com um nível inferior de
conforto e higiene. Não tenho ânimo de levantar questões morais num domingo,
sobretudo neste mundo onde tantas barbaridades são vistas como naturais. O
problema é que o foro privilegiado, independentemente de o aceitarmos ou não,
pode ser um insuperável obstáculo para os rumos da operação Lava Jato.
Com a delação da Odebrecht, pelo menos 200 políticos serão implicados.
Será preciso montar um esquema ampliado de investigação. Mas o que fazer com
tantos projetos que chegam ao Supremo com ministros asfixiados pelo grande
número de processos que já existem por lá?
Será simplesmente impossível um desfecho razoável para todos esses casos
antes das eleições de 2018. A Lava Jato corre o risco de prender empresários,
recuperar o dinheiro, mas não conseguir atingir com força o braço político do
esquema. Não há saída. O foro privilegiado, que expressa a tolerância dos
brasileiros com um tratamento diferenciado e antidemocrático, passaria a ser o
grande entrave objetivo para a renovação política.
Em síntese, não se trata mais de discutir se o tratamento diferenciado
às pessoas deve ou não prosseguir num país que considera natural essas
distinções aristocráticas. O foro privilegiado não se tornou apenas iníquo: é
burro porque pode inviabilizar uma operação como a Lava Jato, que é tão
importante para o Brasil e ganhou um respeito internacional. O que fizemos de
melhor, na presunção de que a lei vale para todos, será combatido por nossas
crenças que consideram natural que ela seja aplicada de forma diferente, entre
diplomados e não diplomados, titulares de mandatos ou pessoas comuns. No caso
das cadeias brasileiras, a transição para a democracia penal ainda será lenta.
Independentemente de terem ou não diplomas, milionários não podem ser
misturados a bandidos pobres pois correm o risco de sofrer 50 sequestros por
dia.
Lembro-me que na Papuda, em Brasília, havia essa preocupação específica,
separando presos famosos ou ricos para que conseguissem sobreviver. Outro
aspecto que parece natural aqui no Rio é raspar a cabeça dos presos, ainda que
detidos em prisão preventiva. Prefiro o método da Lava Jato em Curitiba que
prende, mas permite que a pessoa mantenha sua identidade, na qual o cabelo tem
um importante papel. Compreendo as reações iradas que uma posição dessas
desperta. Por que se preocupar com presos que jogaram o Rio nesse buraco? Não
se trata apenas deles, mas de uma filosofia, de um norte na relação entre o
estado e o prisioneiro. Para mim, o problema central sempre foi o de desmontar
essa gigantesco processo de corrupção, julgar e prender todos os envolvidos.
A supressão da liberdade é uma punição exemplar, desde que consigamos
que as pessoas respeitem as leis dentro das cadeias. Sérgio Cabral, sua mulher,
Eike Batista são presos singulares, que nadaram em dinheiro, enquanto o estado
quebrava, que sentavam seus bumbuns em privadas polonesas aquecidas, enquanto a
população viaja de pé e espremida nos ônibus. Eles têm um pouco de Maria
Antonieta pelo desprezo aos pobres e seus martírios. Pedir à multidão que os
poupe é totalmente fora de propósito, no momento. Sérgio Cabral foi o
adversário mais arrogante que enfrentei em minha vida política, era um predador
irresponsável, sabendo que nadava em dinheiro e que o Rio apoiava sua
megalomania.
Não desejo para ele nem para os presos da Lava Jato nenhum tipo de
humilhação. Basta o cumprimento da lei. Em vez de nos alegrarmos com sua
desgraça, o melhor seria canalizar a energia para as vantagens de um Brasil que
conseguiu prender todos os ricos ladrões e precisa completar as aspirações da
máxima que dominou o período: a lei vale, igualmente, para todos.
Por Fernando Gabeira, em O Globo
___________
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |