As contas públicas entraram recentemente na lista de temas discutidos
pela população e ganharam destaque no noticiário nacional. Mas não para Gil
Castello Branco. Ele tem acompanhado as contas do governo há mais de 20 anos.
Economista, especializou-se no assunto quando as contas públicas atraíam pouco
ou nenhum interesse do público. Em 2005, fundou a Associação Contas Abertas,
com o objetivo de fiscalizar e acompanhar a execução orçamentária da União, dos
estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
A Contas Abertas, inclusive, foi a primeira a apontar manobras fiscais
do governo da presidente Dilma Rousseff em 2014, que depois vieram a ser
conhecidas como pedaladas fiscais.
Mesmo com a troca de governo, a situação fiscal do país permanece grave,
segundo ele. E agrava o quadro o caos nas contas dos estados - que ele atribui
a uma 'irresponsabilidade compartilhada' entre os três poderes. Gil Castello
Branco fala também sobre o futuro da regra do teto de gastos da União, e afirma
que implementar a regra será mais difícil do que foi aprová-la. Diz também que
agora, com o teto, a reforma da Previdência é necessária, ainda que sua
tramitação no Congresso permaneça uma grande incógnita.
Você trabalha com contas
públicas há muitos anos, e acho que nunca se falou tanto sobre elas. Qual o
impacto disso?
Eu acho que o legado positivo – se é que ele pode existir – do petrolão,
do mensalão, e da própria crise fiscal que o país está passando, é justamente
esse : o interesse muito maior no acompanhamento das contas públicas, por parte
não só de entidades especializadas mas da sociedade brasileira de uma maneira
geral. Foi um processo. Ainda no governo Dilma, na fase das maquiagens fiscais
e da contabilidade criativa, entidades do exterior, embaixadas, bancos e grupos
brasileiros começaram a nos procurar. Ali, era um pouco para saber a verdade
sobre as contas públicas, muitas pessoas pediam para que confirmássemos valores
ou perguntavam o que estaria acontecendo se as contas públicas não estivessem
sendo maquiadas. Agora, com a crise fiscal estampada, o interesse passou a ser
muito maior, porque os diversos segmentos da economia brasileira que estão
sendo afetados pela crise começaram a querer saber se a crise será demorada.
Você falou da desconfiança
de várias entidades com relação aos números de contas públicas. Isso tem
diminuído? As entidades têm mais confiança no governo?
Eu acho que essa confiança no governo aumentou, porque, veja, nós
tivemos a contabilidade criativa, em 2013. Depois, em 2014, as pedaladas – que
acabaram levando ao impeachment da presidente. Aquilo foi surpreendente para
grande parte da população, até mesmo para aqueles que acompanhavam as contas
públicas. Mesmo no mercado, não se tinha uma previsão de que o país fosse ter
um déficit fiscal como o de 2016, de aproximadamente R$ 160 bilhões. Assim que
o novo governo assumiu, ele apontou para aquilo que era estarrecedor.
Era uma situação que não se
podia mais esconder?
A situação fiscal é extremamente grave. As consequências que o governo
anterior sofreu ao ter escondido ou maquiado a situação fiscal acabou fazendo
com que esse governo se visse até obrigado a tentar expô-la com maior clareza.
Não foi só uma questão de princípios, até porque muitos dos que estão nesse
atual governo estavam no anterior. E foi até uma forma de dizer: 'a culpa pelo
que está acontecendo não é minha, já veio do governo passado'.
O cenário fiscal para esse
ano também não é animador, com uma expectativa de déficit de R$ 139 bilhões.
Isso foi herdado da administração passada?
Com certeza, não dá para se atribuir a esse governo, ainda, os R$ 139
bilhões. O que pode se atribuir a esse governo é uma série de medidas até
incoerentes, como, diante de um problema dessa magnitude, ter concedido
inúmeros aumentos de salários de servidores públicos, inclusive comprometendo
orçamentos futuros. Eu acho que dessa incoerência, evidentemente, esse governo
pode ser acusado.
O orçamento para esse ano é
factível?
Eu acho que ainda há dificuldades que o governo poderá enfrentar, para
viabilizar algumas receitas que estão previstas, como concessões e outorgas e
até mesmo uma nova repatriação de recursos. O governo apostou de uma forma
otimista em relação à receita e pode ter surpresas desfavoráveis. Agora, é um
momento de muita incerteza. Eu brinco que o conceito de planejamento mudou
nesse momento: você está planejando para longo prazo o que está imaginando que
vai acontecer daqui a três meses – o médio prazo é amanhã, e o curto prazo é
hoje.
O governo apostou de uma
forma otimista também no crescimento da economia, e tem falado em uma
expectativa de alta de 1%, enquanto o mercado espera só 0,5%.
Acho que há sinais favoráveis, que podem se confirmar. Mas, por outro
lado, também ainda há os negativos. Os positivos são a inflação em queda, e,
junto com a inflação, a redução da taxa de juros. Por outro lado, há
indicadores negativos, como a própria arrecadação, que continua caindo, ainda
que a uma proporção menor do que vinha há algum tempo atrás. Sem contar com a
variável que é desconhecida, que são os efeitos da Lava Jato.
Como a Lava Jato pode
afetar?
Eu lembro daquela frase: 'no balanço das horas, tudo pode mudar'. É
exatamente isso. Basta a Lava Jato atingir a cúpula do governo Temer que essas
expectativas favoráveis vão por água abaixo. Ainda há a questão do julgamento
do TSE [que pode cassar o mandato de Temer]. Portanto, eu acho que é tudo muito
incerto. É uma crise econômica entrelaçada a uma crise política, e com uma
crise moral e ética de graves proporções. Quem disser que sabe o que vai
acontecer é porque está mal informado.
As questões políticas estão
causando essa imprevisibilidade no cenário brasileiro?
Exatamente. Os resultados da delação da Odebrecht e o julgamento do TSE
irão nos dar uma perspectiva. A partir daí, tudo pode tomar um novo rumo. Que
país do mundo pode ter uma situação de ter cinco presidentes em três anos?
Vamos lá: tivemos Dilma em 2016, seguida por Temer. Em 2017, podemos ter Temer
e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia [se Temer for retirado do cargo], temporariamente.
Aí o Congresso pode ter que indicar um novo presidente, até 2018. Na pior das
hipóteses – sob o ponto de vista de solavancos políticos, que acabam gerando
solavancos na economia, você teria então: Dilma, Temer, Rodrigo Maia, o outro
eventual político indicado, e depois o novo eleito em 2018. Isso é uma situação
de absolutamente intranquilidade. Só um louco estaria disposto a grandes
investimentos em um país em que se tem tamanha perspectiva de instabilidade.
A Lava Jato tem escancarado
alguns números de Corrupção que parecem enormes. Era possível prever a dimensão
da Corrupção que estamos vendo?
Há alguns anos, em 2010, a Fiesp fez um estudo que indicava que a
Corrupção brasileira gerava em torno de R$ 40 bilhões e R$ 70 bilhões por ano.
Era uma estimativa que se apoiava no índice de percepção da Corrupção e cruzava
isso com outras variáveis. Era o equivalente a algo entre 1,7% e 2,3% do PIB
daquela época. Aqueles números me pareceram impressionantes. Hoje me soam até
modestos. Eu acho que valerá a pena toda essa incerteza se de fato avançarmos e
conseguirmos nos afastar de toda essa prática extremamente corrupta, ou pelo
menos se reduzirmos expressivamente a Corrupção no país.
O que é preciso fazer,
dentro das estatais, para que elas parem de ser alvo de Corrupção?
Costumo dizer que as estatais são ainda a Disney dos corruptos, e acho
que isso ficou muito claro tanto no mensalão quanto no petrolão. É muito mais
fácil, sem dúvida nenhuma, desviar recursos nas estatais do que na
administração direta. Nas estatais, a transparência é muito menor. Além disso,
o investimento nelas é mais do que o dobro dos investimentos da União e ainda
há muita ingerência política. As estatais movimentam por ano cerca de R$ 1,3
trilhão – é mais ou menos o PIB da Argentina. Elas sempre alegaram que, por
atuarem em um mercado competitivo, se elas fossem transparentes, isso as
prejudicaria competitivamente. Elas negam informações às vezes sobre
patrocínios esportivos, dados banais. Acho que as estatais deveriam ser muito mais
transparentes para que essa perspectiva de que sejam o paraíso dos corruptos
seja totalmente afastada.
O que é preciso fazer para
controlar a situação fiscal? O teto de gastos é suficiente?
Diante o buraco fiscal em que o país se encontra, é muito difícil
imaginar que a solução virá só do lado de cortar despesas. Nós vamos precisar
do crescimento, sem dúvida nenhuma. O governo tem procurado, na medida do
possível, abrir frentes para que isso possa acontecer. Seja por meio da
legislação, pela liberação das contas inativas do fundo de garantia ou pela
maior agilidade no processo de concessões, privatizações e outorgas. Mas a
questão central aí é a credibilidade. Ao mesmo tempo que o governo sinaliza
alguma medida de austeridade, ele cria novamente ministérios e concede aumento
de salários. Ele não gera essa confiança, e não gerando essa confiança,
dificilmente você vai ter aquilo que mais precisávamos: recursos de terceiros.
O governo já conseguiu
aprovar a PEC do teto de gastos, e agora propõe ao Congresso novas reformas,
como a da Previdência. Como deve ser a tramitação dessas reformas?
Por um lado, a reforma da Previdência é emblemática, no sentido de que,
se ela não passar, você pode ter um desastre. A PEC do teto sem a reforma da
Previdência é inócua. A própria implementação da PEC, ao meu ver, vai gerar
grandes turbulências. Passar a regra foi fácil – você cria um teto, pega o
gasto em 2016, corrige pelo IPCA e esse é o teto. Até aí, tudo bem. Temos que
ver quem vai se indispor a perder algum tipo de benefício ou privilégio para
que você consiga efetivamente implantar a PEC. Para ter eficácia, ela precisa
acertar os grandes grupos de despesa – saúde, educação, Previdência,
assistência social e pessoal. E todos esses grupos são muito bem articulados.
Mexer nesses cinco grandes
grupos do gasto público, além de ir contra interesses de grupos específicos,
também tem um peso grande na opinião pública, não é mesmo?
Exatamente. Eu acho que isso é uma casa de marimbondos. Ao tocar ali,
vai sair ferroadas. O governo Temer tem como característica um baixo apoio
popular. Ele pode até ter apoio parlamentar, mas não popular. E aí, todas as
vezes que tentar tocar nesses grandes grupos de despesa, ele vai enfrentar
adversários organizados e fortes. Sem contar a oposição do próprio PT, que
também tem ligação estreita com alguns desses grupos. Temer está confiando no
apoio parlamentar. No entanto, não podemos esquecer que vamos estar às vésperas
de eleições e que deputados e senadores vão tentar renovar os seus mandatos ou
se eleger para outros cargos públicos em seus estados. De um lado, os
parlamentares têm a pressão do governo para que aprovem essas medidas, muitas
delas impopulares. Por outro lado, a pressão desses grupos extremamente
organizados. Como esses parlamentares vão reagir? A partir do segundo semestre,
os partidos já começam a se alinhar, a tomar posições para as eleições de 2018,
e é uma eleição extremamente importante. Os partidos vão marcar posição, não
vão se abraçar a causas impopulares.
Você escreveu em artigos que
o fato de os estados declararem calamidade financeira é uma forma também de
burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Como o governo poderia evitar isso?
Veja, teoricamente, nós tínhamos
uma boa lei. A Lei de Responsabilidade Fiscal é uma boa lei, com toda a
certeza. Existem órgãos que poderiam ter alertado que situação fiscal vinha se
agravando. E, a meu ver, os Tribunais de Contas dos municípios e dos estados
não cumpriram o papel que lhes era cabido, de guardiões da responsabilidade
fiscal, até porque os tribunais foram politizados. Nós temos situações, no
próprio Rio de Janeiro, de relatórios de auditores dizendo que os números eram
fictícios e que as contas não deveriam ser aprovadas. Mesmo assim, elas foram
aprovadas por unanimidade. Houve uma irresponsabilidade compartilhada entre o
Executivo, o Legislativo e do próprio Judiciário. Tudo veio à tona quanto a
recessão econômica provocou a queda da arrecadação. Ninguém estava preocupado
com esses aspectos, até porque a arrecadação aumentava. E, se não aumentava, os
governos elevavam os impostos. A partir do momento em que se tornou
politicamente inviável aumentar impostos, tudo caiu.
E o Tribunal de Contas da
União?
O TCU padece do mesmo mal que os tribunais de contas estaduais e
municipais. Eu sou absolutamente contrário à forma de indicação dos ministros,
como também sou contrário à forma de indicação dos conselheiros. Diversos
ministros que lá estão não eram especialistas em contas públicas e chegaram ao
tribunal por indicações políticas. Eles não permitem que o tribunal atue com a
isenção que deveria. Jamais poderia acontecer de você ter como ministro da
corte de contas pessoas que estão sendo citadas na Lava Jato.
Época Negócios/BR