Evolução do cérebro não acompanha o bombardeio de informações. Por isso, é preciso descanso |
Uma ótima entrevista publicada pelo ‘Estadão’, no
caderno Aliás, em 2015, e que vale a
pena reler:
Contemplar
o capim
Em livro, neurocientista desmonta o mito das
multitarefas e mostra que descansar a mente libera espaço para as grandes
ideias
Folgo e convido minha alma,
deito-me e folgo à vontade vendo
uma lança de capim no estio.
(CANÇÃO DE MIM MESMO, POEMA DE FOLHAS
DE RELVA, DE WALT WHITMAN)
Quem tem tempo de se espalhar na grama e admirar a
lança de capim em vez de conferir a tela do smartphone? Em 1855, o poeta Walt
Whitman não sabia nem precisava saber o que era ser multitarefas, mas já ensinava,
em seu poema clássico, que a mente precisa vadiar. Vivemos uma era de
aceleração de fontes de informação como nenhuma outra na história da
humanidade. Mas o nosso cérebro tem a mesma capacidade fisiológica de enfrentar
esse ataque de dados que tinha o cérebro do poeta. Em um livro best-seller
escrito para você e para mim, não para cientistas, o celebrado autor Daniel
Levitin oferece recursos para impedir que o leitor seja soterrado pela
avalanche diária de informação. A Mente Organizada combina a
apresentação das descobertas recentes em estudos sobre o cérebro e sugere
rotinas para assumir o controle do ecossistema de informação, e não ser
controlado por ele. Levitin é um neurocientista, especialista em psicologia
cognitiva e músico, autor de outro best-seller, A Música no Seu Cérebro.
Ele dirige um laboratório de percepção musical na
McGill University, em Montreal, e é cofundador e diretor do programa de
Ciências Sociais do Projeto Minerva, universidade fundada em 2012 em San
Francisco. O Minerva é um programa de graduação com 120 alunos que visa a
reformar a educação superior do século 21 para enfrentar as rápidas mudanças em
vários campos de conhecimento. “Não achamos honesto cobrar altas anuidades de
estudantes que, ao se formar em certos campos profissionais, não podem mais
usar o que aprenderam porque seu conhecimento já está superado”, diz Levitin,
em entrevista exclusiva ao Aliás. “Temos foco em pensamento
crítico, solução de problemas e 25% do currículo é concentrado em promover a
comunicação efetiva.” Engraçado: na era dos nerds esquisitões da tecnologia,
uma escola de vanguarda privilegia o diálogo.
Em A Mente Organizada, Levitin observa
o que têm em comum as pessoas bem-sucedidas e produtivas. Sugere estratégias de
organizar a memória – esvaziá-la com exercício e instrumentos que chama de
extensões do cérebro, como calendários eletrônicos, smartphones e cadernos de
anotação.
Curiosamente, ele notou, entre seus mais ocupados
interlocutores, um apego físico a objetos analógicos, pequenos cadernos de
anotação, fichas, canetas e lápis. E especula sobre as vantagens de manter esse
hábito.
O cérebro precisa de resets neurais. São esses
resets que nos tiram de situações como a de um carro atolado na lama. É
frequente, depois de uma pausa de repouso, encontrar a solução para um problema
que parecia fora de alcance. A neurociência, conta Levitin, comprova que
contemplar a natureza oferece um poderoso reset – até mesmo olhar imagens da
natureza.
A eficiência em organizar a informação nos torna
mais do que produtivos. É um instrumento de libertação para o ócio, para os
momentos em que podemos contemplar a grama e ter grandes ideias. Como ter
inspiração para escrever o maior clássico da poesia norte-americana.
Por que falamos em sobrecarga de informações?
Para os cientistas, a sobrecarga é a diferença
entre a quantidade de informação com que somos bombardeados e a capacidade do
nosso cérebro de lidar com ela.
O que é a obsolescência evolucionária, que o senhor
aponta como parte do obstáculo para lidar com o excesso de informação?
Todos os organismos vivos estão constantemente se
adaptando ao meio ambiente. A seleção natural exerce influência sobre essa
adaptação. Por exemplo, nós nos adaptamos à erosão da camada de ozônio e
pessoas que adquirirem maior resistência aos raios ultravioleta transmitirão
aos descendentes o gene de sobrevivência a eles. Mas é um longo e lento
processo. Nosso cérebro evoluiu para lidar com um ambiente que existia há
10, 20 mil anos. O genoma humano precisa de tempo para se adaptar. Para você
ter uma ideia, em 30 anos quintuplicou a quantidade de informação que recebemos
a cada dia. Pense nisso como o equivalente a ler 175 jornais de ponta a ponta
diariamente. Outro número extraordinário: em 1976, nos Estados Unidos, havia
cerca de 9 mil produtos únicos à venda num supermercado. Hoje, há cerca de 40
mil. O consumidor americano, que compra uma média de 150 produtos, tem que
navegar entre uma quantidade muito maior de escolhas.
Embora a evolução do cérebro
esteja “atrasada”, há duas gerações essa obsolescência era muito menos
sentida, certo?
Vamos considerar um aprendizado que foi necessário
para nossos avós. Eles tiveram que aprender a usar o telefone uma ou duas vezes
– tiveram que fazer chamadas com ajuda de telefonistas e depois aprenderam a
discar. Hoje, os smartphones não param de mudar. Você troca de modelo e tem que
aprender inúmeras funções, que daqui a poucos anos serão trocadas.
Há um site chamado “Deixe eu googlar isto pra
você” inspirado na exasperação que muitos sentem quando alguém faz
uma pergunta que pode ser respondida online. Qual a importância de ter
tanta informação disponível em poucos segundos?
Quando eu cursava a Universidade Stanford, na
Califórnia, gostava de estudar dentro da enorme biblioteca principal. Havia ali
respostas para tudo o que eu queria saber. Mesmo se eu me distraísse e quisesse
conferir algo que não tinha ligação direta com o trabalho em questão, era
preciso levantar, localizar um livro ou publicação num sistema de
classificação. Hoje, a nossa atenção é desviada o tempo todo para novas fontes
e isso afeta a possibilidade de recuperar o foco inicial. Há enorme variação na
nossa capacidade de virar a chave da atenção. Mulheres e jovens tendem a ser
mais rápidos do que homens e idosos. Mas varia muito. Se me distraio de algo,
demoro uns cinco minutos para retomar a concentração.
A palavra multitarefas, executar
várias tarefas ao mesmo tempo, é indissociável da rotina do século 21. Mas
o senhor diz que multitarefas não passam de ficção.
Não existem multitarefas, é um mito. O cérebro
simplesmente não comporta isso. A pessoa pensa que está lidando com várias
coisas ao mesmo tempo quando, de fato, o cérebro está experimentando rápidas
mudanças de foco que mal percebemos, o que resulta numa atenção fragmentada a
várias coisas e nenhuma atenção sólida a uma que seja. Recentemente ficou
provado que conseguimos prestar atenção a, no máximo, três ou quatro coisas de
uma vez. O cérebro é eficaz em provocar autoilusão. Achamos que estamos no
controle das coisas. Mas executar várias tarefas ao mesmo tempo libera um
hormônio de estresse, o cortisol. O cortisol tem um papel evolucionário, mas
também provoca ansiedade, nervosismo e afeta a clareza de pensamento. Comparo o
ato de fazer várias tarefas ao mesmo tempo com uma espécie de embriaguez. Há
trabalhos que exigem essa capacidade, como tradutor simultâneo ou controlador
de tráfego aéreo. E não é à toa que, nessas funções, as pessoas são obrigadas a
fazer várias pausas de descanso para recuperar a capacidade de se concentrar.
No entanto, há uma noção de que as pessoas
bem-sucedidas, e o senhor entrevistou mais de 100 para escrever o
livro, são as que têm o poder de acumular mais tarefas do que os outros.
Exato, mas a história e a ciência de laboratório
nos provam o contrário. Estudos mostram que o trabalho de quem mantém o foco
numa tarefa é mais criativo. Isso vale tanto para grandes empresários, atletas
e inovadores como para artistas. Valia para Da Vinci e Michelangelo. Olhe para
o alto na Capela Sistina, considere grandes conquistas como o cubismo, a 5ª
Sinfonia de Beethoven, a obra de William Shakespeare – tudo é resultado de
atenção sustentada ao longo do tempo.
Por que o senhor diz que as crianças devem
aprender na escola, já aos 10 anos, a enfrentar a sobrecarga de
informação?
Qualquer criança alfabetizada sabe que pode
encontrar uma informação em segundos. Mas a maior parte do que está online é
desinformação. Ficções mascaradas de fatos. Até estudantes universitários se
deixam confundir. Recolhem informações sem perguntar quem está por trás. Como
saber que a fonte é confiável? Na escola, os professores devem ensinar, para
começo de conversa, que websites não são iguais. Devem incutir um
questionamento crítico na pesquisa. À medida que os alunos crescem, vão
adquirindo mais nuances para se informar. Por exemplo, se a criança quer um
brinquedo, pode-se ensinar a ela que o website do fabricante não é a fonte mais
confiável sobre a segurança do brinquedo. Antes, no ecossistema analógico,
tínhamos curadores de informação, era mais fácil distinguir a credibilidade de
fontes.
O senhor diz que as pessoas mais produtivas
são as que melhor estabelecem prioridades.
A maioria de nós chega ao trabalho hoje em dia e é
bombardeada com o “por fazer”. É como entrar cambaleando num ambiente em que há
muitas exigências e começamos a atacar o que passa pela frente. Não fazemos um
esforço consciente e deliberado de evitar que o ambiente em volta nos domine.
Isso aumenta o cansaço e diminui a produtividade. Todas as pessoas altamente
bem-sucedidas com quem converso têm em comum o fato de que elas anotam o que há
por fazer e já começam a trabalhar cientes de prioridades.
O senhor diz que uma ferramenta útil para
priorizar são os chamados exercícios de limpeza da mente.
Sim. O David Allen, um guru da produtividade e
autor de A Arte de Fazer Acontecer, aponta para a importância de
externalizar a informação. Recomenda anotar tudo o que está se passando na sua
cabeça, coisas que têm a ver com a tarefa em questão e preocupações que podem
distrair a pessoa. É um processo neurológico, porque o cérebro teme esquecer o
que é importante. Quando o cérebro sabe que a informação foi arquivada
externamente, nas anotações, e o efeito é de nos acalmar, é libertador. Retira
o entulho mental que prejudica a atenção.
A sobrecarga de informação se estende ao
excesso de objetos. Por que o senhor defende uma gaveta de bagunça?
Um profissional precisa saber exatamente onde estão
seus instrumentos. Pode ser um cirurgião, um dentista, um bombeiro. Este
tipo de organização nos libera para pensar e tomar decisões. Mas excesso de
organização é contraprodutivo, uma perda de tempo. O importante é deixar
visíveis os objetos que utilizamos regularmente. Quantas vezes você encontra um
parafuso, uma peça e não se lembra de onde vem? Jogue na gaveta de bagunça, a
que tem objetos de utilidades diferentes. Isso é uma forma de fazer economia
cognitiva, porque não é preciso classificar tudo.
O senhor aponta a correlação entre eliminar o
excesso de informação e de pertences e a felicidade.
Se quiser destilar tudo o que se conhece sobre
pessoas que se consideram felizes, a frase é a seguinte: elas se satisfazem com
o que têm. E são as que querem conquistar algo, não receber prêmios e elogios.
O que é diferente de não ter ambição pessoal ou criativa. O empresário Warren
Buffett, o terceiro homem mais rico do mundo, com uma fortuna de mais de US$ 70
bilhões, mora na mesma casa há mais de cinco décadas. Ele inventou o neologismo
“satisficing”, sobre as coisas que bastam. Não perde tempo com o que não
lhe interessa e tem uma agenda diária de trabalho quase vazia, de poucas reuniões,
que o deixa livre para ser produtivo.
O Estado de S. Paulo