O que era temido
aconteceu: os brasileiros vão ter de pagar 10 bilhões de reais a mais nos cinco
meses que restam deste ano para abastecer seus veículos com gasolina, etanol ou
diesel. Mas isso não significa que os tanques vão ficar mais cheios. Na verdade,
esses recursos irão para os cofres públicos. No dia 20 de julho, o governo
anunciou a elevação das alíquotas dos impostos PIS e Cofins que incidem sobre
os combustíveis, uma medida tomada para tentar atingir a meta fiscal de um
déficit de 139 bilhões de reais neste ano.
A repercussão, no
entanto, não será apenas para quem anda de carro, pois o encarecimento dos
combustíveis afeta os serviços de transporte e, portanto, os custos das
empresas país afora. O banco Safra já estima que a inflação deste ano será de
3,5%, e não mais de 3,1%, como esperava anteriormente. A consultoria MB
Associados aposta que a taxa básica de juro cairá para 8,25% até dezembro, mas
não aguarda novos cortes depois disso.
'Tanto a incerteza
fiscal quanto a possibilidade de novos aumentos de impostos podem colocar o
Banco Central novamente em modo cauteloso', diz Sergio Vale, economista-chefe
da MB. Essa mudança retarda o impulso que a política monetária pode dar à
recuperação econômica. E o que todos esses números mostram é que, diante da
dificuldade de ajustar o orçamento oficial, a principal saída do governo é a
mesma de sempre: tirar mais da população em geral.
Enquanto o Brasil
passa pela maior crise de sua história, uma série de privilégios na máquina
pública, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário continua incólume - e as
corporações lutam para mantê-los. Essas regalias se traduzem em reajustes
salariais acima da inflação, remunerações que ultrapassam 100?000 reais ao mês,
auxílio-moradia para quem já tem casa própria e não se desloca entre cidades
para trabalhar e pagamento de escola para os filhos.
É também o caso de
órgãos que desperdiçam dinheiro público com aluguéis caríssimos em bairros
nobres, nas diárias de empregados e nos serviços terceirizados. 'Mudanças
nessas coisas seriam importantes como disciplinadoras da gestão pública', diz o
ministro Dyogo Oliveira, do Planejamento. 'Mas, para as contas públicas, o mais
importante mesmo é atacar a despesa com a Previdência.'
Realmente, os
privilégios isoladamente podem ter pouca representatividade. Mas juntos têm um
efeito significativo. Um estudo da Consultoria de Orçamento e Fisca-lização
Financeira da Câmara identificou 8 bilhões de reais em contas que o governo
conseguiria economizar por ano se barrasse o aumento de despesas com passagens
aéreas, compra de material de consumo e contratação de terceiros, por exemplo.
De grão em grão,
seria o equivalente a 80% do aumento do imposto dos combustíveis que recaiu
sobre os contribuintes. 'Não há problema em valorizar carreiras com salários
altos, desde que não se usem penduricalhos para as remunerações triplicarem e
saírem do teto constitucional', diz Ricardo Volpe, diretor da consultoria da
Câmara. 'Em todos os órgãos do Estado há espaço para cortar esses gastos.'
Na situação atual,
iniciativas para cortar essas despesas deveriam ser consideradas. Ainda mais
porque a reforma da Previdência, que deve estancar o crescimento dos gastos com
aposentadorias, está demorando a sair. Aqui também os servidores públicos têm
peso. A previdência dos funcionários civis e militares da União atende 980?000
pessoas, ante 32,7 milhões do sistema dos trabalhadores do setor privado.
Mas o regime da
União tem um déficit que equivale a metade do buraco do regime da iniciativa
privada. A diferença decorre da herança de benefícios dos servidores. Quem se
aposentou até 2003, quando foi feita uma reforma, recebe como benefício mensal
o maior salário da carreira, o que não é a realidade do trabalhador do setor
privado. E quem se aposentou depois de 2003 pode parar cinco anos mais cedo.
'Já fizemos duas
reformas constitucionais, mas permanecem alguns privilégios. Fora isso, há um
estoque de aposentados ultraprivilegiados no setor público', diz o economista
Pedro Nery, consultor do Senado. A atual proposta de reforma que tramita no
Congresso iguala a idade mínima para se aposentar dos setores privado e
público.
Com tantas benesses
na máquina pública, não é de surpreender que o Brasil saia da curva na
comparação internacional. Há situações inusitadas em todos os poderes. No
Brasil, 12% da força de trabalho são funcionários públicos, ante a taxa média
de 21% da OCDE, o grupo dos países ricos. Só que o Brasil gasta a mesma quantia
com pessoal que esses países, na proporção do produto interno bruto. Ou seja:
pagamos praticamente o mesmo por menos servidores proporcionalmente.
A despesa com a
Justiça brasileira chega a 1,3% do produto interno bruto, enquanto não
ultrapassa 0,15% na Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido. E o que faz
grande diferença é o gasto com pessoal. 'Temos um número relativamente mediano
de magistrados, mas nosso Judiciário é composto de muitas pessoas com
remunerações expressivas, colocando sua despesa entre as mais altas do mundo',
diz Luciano da Ros, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
responsável pelos dados. Por aqui, um juiz ganha, em média, 46?000 reais por
mês, com casos que chegam a 160?000 reais, segundo estudo da Escola Brasileira
de Administração Pública, da Fundação Getulio Vargas.
Os parlamentares
também têm sua cota de regalias. O salário de um deputado brasileiro, de 33 700
reais por mês, equivale em valor absoluto ao de seus pares de países ricos. Ou
seja, eles vivem no Primeiro Mundo. Mas a realidade da nossa economia está
longe disso. O salário anual- dos deputados aqui representa 15 vezes o valor do
PIB per capita, ante uma relação de três vezes na Alemanha e nos Estados Unidos
- os americanos não reajustam desde 2009 a remuneração dos parlamentares,
depois da forte crise financeira que atingiu o país.
E a conta não
inclui o aparato à disposição de cada deputado brasileiro, como os 25
assessores e uma cota de dinheiro para o exercício parlamentar. 'Nos momentos
de corte de gastos, o Executivo promove ajustes, mas os demais poderes acabam
não fazendo esse esforço', afirma Zeina Latif, economista-chefe da gestora XP
Investimentos. 'A crise descortina essas injustiças.'
É preciso
considerar que há um esforço do governo para controlar as contas, com a adoção
até mesmo de medidas impopulares. No ano passado, começou a valer um limite ao
crescimento das despesas da União conforme a inflação do ano anterior. Chamada
de 'teto dos gastos', a medida causa um aperto no curto prazo, mas expõe a
necessidade de mexer nos tabus da máquina pública. O aumento de impostos,
apesar de indesejável, foi visto por economistas como um sinal do
comprometimento com a meta fiscal. Sem isso, a perda de confiança poderia
causar ainda mais estragos na economia.
Outra medida tomada
foi contingenciar 5,9 bilhões de reais, que só serão liberados se o governo
conseguir receitas adicionais - já haviam sido bloqueados 42 bilhões de reais
no início do ano. Em relação ao inchaço da máquina, o Ministério do
Planejamento está atacando a conta de 1 bilhão de reais -anuais de energia elétrica,
com a meta de economizar 600 milhões de reais nos próximos anos.
O Executivo prepara
um plano de demissão voluntária dos funcionários, esperando 5?000 adesões. E,
nas estatais, espera-se desligar mais 20 000 pessoas até o fim do ano, de um
quadro de 523.000. Uma nova normativa impedirá que os funcionários cedidos
pelas estatais para cargos comissionados na administração direta tenham acúmulo
de salários. 'Não estamos compactuando com o que se chama de inchaço da
máquina', diz Fernando Soares, secretário de Coordenação e Governança das
Empresas Estatais. 'Estamos buscando a redução de despesas.'
Já a arrecadação
continua anêmica: cresceu apenas 0,8% em termos reais de janeiro a junho, em
relação ao mesmo período do ano anterior. O fato de o governo estar
enfraquecido após as delações dos donos do frigorífico JBS, com a acusação de
corrupção do presidente Michel Temer, não ajuda a agenda de ajuste. Está
difícil contar com receitas extraordinárias, que dependem da força de Temer
perante os parlamentares.
Um novo programa de
financiamento de dívidas com a União, por exemplo, foi tão esvaziado no
Congresso que saiu de uma projeção de arrecadação de 13 bilhões para 420
milhões de reais. Virou uma proposta de perdão generalizado. O ministro
Henrique Meirelles, da Fazenda, falou publicamente para as empresas aderirem ao
programa até 31 de agosto nas condições vigentes via medida provisória, já que
depois disso ela pode expirar e talvez não haja lei para substituí-la.
O governo também
não conta mais com uma receita de 4 bilhões de reais que viria com a aprovação
de outra medida provisória, que tratava da reoneração da folha de pagamentos,
diante da baixa disposição do Congresso em aprovar a matéria ainda neste ano.
Segundo os cálculos da Instituição Fiscal Independente, essas renúncias
tributárias correspondem a 4,5% do PIB em 2017 e, se metade fosse revertida, o
déficit primário chegaria próximo de zero. 'É nítido que a equipe econômica não
tem respaldo político para fazer os ajustes impopulares ou malvistos', diz
Bruno Lavieri, economista da consultoria 4E.
Defesa das
vantagens
Também há pressões
vindas do setor privado para manter regalias. O caso do BNDES é o mais
evidente. Em abril, o governo editou uma medida provisória para criar uma nova
taxa de remuneração dos empréstimos do banco: a Taxa de Longo Prazo, que
entrará em vigor gradualmente até 2022 e seguirá um título público de cinco
anos que rende um juro fixo mais a inflação. A ideia é acabar com a distorção
de dar crédito a juro baixo via taxa atual, chamada de TJLP, ao custo de
captações do Tesouro a taxas maiores.
A pressão contrária
às mudanças no BNDES contribuiu para a renúncia da ex-presidente Maria Silvia
Bastos Marques e de três diretores nomeados por ela. 'Parte do empresariado
quer que o BNDES continue a emprestar a uma taxa menor do que o custo de
captação. Não interessa se gera desequilíbrio nas contas públicas', diz Samuel
Pessôa, economista da FGV.
A luta por manter
as vantagens não para. No ano passado, em meio à forte crise econômica, o
governo concedeu um reajuste aos servidores da Câmara dos Deputados, do
Tribunal de Contas da União, da AdvocaciaGeral da União, da Polícia Federal, do
Banco Central, do Poder Judiciário, entre outros órgãos, que vai exigir um
gasto extra de 64 bilhões de reais até 2019. Em sua defesa, o Planalto diz que
a gestão anterior já tinha acordado com as categorias e que, de lá para cá,
nenhum outro aumento foi concedido. Hoje, esse dinheiro faz falta.
Neste ano, em 17 de
julho, pouco antes do recesso parlamentar, o Senado aprovou quatro destaques ao
projeto de lei do orçamento de 2018 que exemplificam o esforço do
corporativismo para preservar o status quo. Um deles garante que o
auxílio-alimentação e a pré-escola pagos aos funcionários do Judiciário, do Legislativo,
do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União poderão ser
reajustados pela inflação no próximo ano.
Originalmente, o
relator do texto, deputado Marcus Pestana (PSDB-MG), havia vetado que o valor
desses benefícios ultrapassasse os mesmos subsídios que são pagos pelo
Executivo federal, que são tradicionalmente menores. 'São despesas com valor
marginal no orçamento, mas simbolicamente importante, pois coisas essenciais
estão sendo cortadas', diz Pestana. 'A crise fiscal é brutal e as pessoas
parecem não ter consciência de que o Brasil está numa armadilha.'
No Congresso, o
relatório do orçamento para 2018 foi aprovado com uma meta de déficit de 129
bilhões. Segundo uma nota técnica da Instituição Fiscal Independente, o dado é
otimista, uma vez que o déficit no ano que vem poderá chegar a 169 bilhões de
reais. Agora, o governo tem até 31 de agosto para apresentar ao Congresso sua
proposta de orçamento para o ano que vem.
O cenário político
conturbado piora a qualidade do ajuste, recaindo sobre a população. O governo
está congelando gastos com despesas sociais e com obras de infraestrutura: de
janeiro a maio, foram cortados 8 bilhões de reais do pagamento de programas
como o de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa, Minha Vida. O reajuste do
Bolsa Família no ano foi suspenso.
Já nas emendas
parlamentares, somente em junho, após a delação da JBS, o presidente Temer
distribuiu 2 bilhões de reais para que deputados e senadores invistam nos
redutos eleitorais - em troca, é claro, de apoio na votação que haverá no
Congresso sobre as investigações de corrupção. 'As emendas não elevam os
gastos, porque já eram despesas obrigatórias previstas, mas não podem mais ser
contingenciadas', diz a economista Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver
Wyman.
Além de pagar pelo
ajuste via aumento de tributos, a população também sofre com a piora dos
serviços públicos. À medida que o aperto fiscal vai avançando, os órgãos do
governo começam a sentir os efeitos. Os mais notórios foram a suspensão da
emissão de passaporte pela Polícia Federal e dos serviços prestados pela Polícia
Federal Rodoviária, como resgate aéreo e escolta de cargas. Pelo país, há
vários exemplos de piora da segurança, das escolas e da saúde. Muitas obras de
infraestrutura estão paradas - sem falar das que nem saem do papel.
As agências
reguladoras têm sofrido com a falta de recursos para repor os funcionários e
atender a população. Na Agência Nacional de Transportes Terrestres, por
exemplo, o quadro de pessoal não preenche nem 60% das vagas disponíveis. A
Anatel anunciou que pretende reduzir o período de atendimento de sua central
pública. A área de ciência e tecnologia sofreu um contingenciamento de 40% da
verba neste ano. Na Embrapa, com uma retenção financeira de quase 30%, há
pesquisadores com metade da verba de pesquisa. A empresa diz que tem procurado se
adaptar ao cenário e que não suspendeu nenhum dos 300 projetos até agora.
A regra do 'teto
dos gastos' trouxe uma nova realidade para as contas públicas. Agora começou a
disputa pelos recursos do governo, cada vez mais limitados. Mas há pressões de
todos os lados para manter ou aumentar os privilégios. A verdade é que, na hora
do aperto, quando todos os setores deveriam fazer sua parte para o país voltar
a crescer, nem todos parecem dispostos. Pior para os de sempre.
Por Flávia Furlan São Paulo, no Portal Exame